Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sérgio Naya está na praça há 20 anos

(De como a falência da reportagem política
e do jornalismo de cidades acaba em tragédia)

EM APENAS OITO DIAS, metade deles no tríduo momesco, a imprensa brasileira conseguiu a proeza de levantar um formidável acervo de informações sobre o grande vilão da tragédia da Barra, o engenheiro-empresário-político Sérgio Naya (PPB-MG).

De Veja ao Fantástico, passando pelas colunas de picadinho político e strogonoff mundano conseguiu-se exibir para uma sociedade horrorizada o retrato do bandido brasileiro contemporâneo: curso superior, filantropo, cosmopolita, freqüentador das altas rodas e outras nem tanto, acima dos partidos (foi ligado a Golbery e a Ulysses Guimarães), dono de uma das maiores frotas de aviões particulares do país, mãos aberta com deputados sem grana e mão fechada quando se trata de comprar materiais de boa qualidade para as obras.

Tem obras embargadas ou paralisadas em Brasília, Osasco (SP), Rio e Orlando (Flórida) há pelo menos quatro anos. Tem dívidas com instituições oficiais, financeiras ou previdenciárias, há outro tanto. Não paga multas, constrói sem licença, rompe negócios com sócios e amigos, é um dos deputados mais ausentes da atual legislatura. Raramente fala em plenário mas já se atracou quando tentaram incriminá-lo no tráfico de drogas.

Pilantra boa praça, amigo do peito de qualquer um, impávido e impune, eterno sobrevivente – este é o protótipo do emergente, o safado simpático e bem-sucedido que pinta e borda há duas décadas e continuaria pintando e bordando outras duas não fosse a tragédia que provocou.

No entanto, nossos jornais, revistas e telejornais jamais o mencionaram. Típico “pisa macio”, o nome de Sérgio Naya nunca chamou a atenção dos repórteres e colunistas de Brasília. Nosso quarto poder, mais uma vez, foi incapaz de prevenir, preferiu ficar na moita para reagir, se fosse o caso. Novamente, chegou tarde.

As obras de Naya (dirigidas aos segmentos com mais poder aquisitivo) jamais foram clandestinas, sempre bem anunciadas nos jornais. Nossos editores de cidade jamais deram-se ao trabalho de investigar prédios de luxo com 24 andares que não conseguem “habite-se”, shoppings que começam a ser construídos sem plantas aprovadas, fachadas de edifícios que se corrompem com poucos anos de uso.

E se um jornalista mais atento ousasse preparar um matéria sobre Sérgio Naya, o Rei do Trambique Imobiliário, teria a cabeça cortada pelos diligentes “porteiros do noticiário” (ver denúncia de Nivaldo Manzano na edição anterior) a serviço do departamento comercial, de marketing ou do “controlador de qualidade” da redação. (Quantos jornais de S. Paulo deram-se ao trabalho de acompanhar as denúncias deste OBSERVATÓRIO sobre o shopping contestado que está sendo construído no coração de São Paulo?).

É preciso dizer com todas as letras que os grandes jornais brasileiros são cúmplices voluntários (e bem pagos!) da degradação imobiliária de nossas cidades. E dos crimes dela decorrentes como o da Barra. Entregam-se obedientes às jogadas ilegais das dezenas de Sersans e Nayas que pululam por aí. De vez em quando publicam cartas de algum proprietário lesado ou consumidor enganado e tranqüilizam-se as consciências.

Qual foi o jornal que acompanhou o lançamento do Palace I e II de Sérgio Naya na Barra da Tijuca? Qual dos cadernos imobiliários tratou das dificuldades na concessão do “habite-se” ao menos para prestar serviço aos futuros moradores?

Dono de uma cadeia de rádios e televisões educativas (sem habilitações ou tradição no setor) Naya nunca chamou a atenção da Abert nem dos jornalistas especializados. Quantos empresários de igual probidade fazem o mesmo no interior do país ?

Como é que um jornal filiado à ANJ pode cobrar da Abert maior rigor na fiscalização no uso das concessões de rádio e TV se ambas as entidades só se empenham em garantir poderes irrestritos para continuar fechando os olhos da sociedade aos abusos dos seus apaniguados?

Hoje fala-se no escândalo da Encol mas o salafrário Ronald Levison (que não difere muito de Naya) vive num triplex em Nova York, comprou uma fábrica de diplomas universitários no Rio e paga anúncios de página inteira para promover seus projetos “culturais”. Quem se lembrará de contar todas as suas histórias se parte delas envolve políticos poderosos, jornalistas de renome e bem sucedidos empresários de jornal ?

A sucessão de triunfos de Sérgio Naya, aquele que dá certo (até que a morte de inocentes o detém) confunde-se com a recente série de desgraças da imprensa brasileira. Há uma relação de causa-e-efeito entre a irresistível ascensão de tipos como este e a resistível decadência moral que avança no meio dos fiscais da sociedade.

O problema, o grande problema da imprensa brasileira pós-Collor, é que Sérgio Naya era peixinho – não muito diferente de centenas de outros – e esta geração de repórteres se interessa apenas pelos grandes escândalos. De preferência aqueles que possam chegar ao primeiro escalão. Enquanto não conseguem, deixam que o mundo venha a baixo.

 

Em tempo: a coluna Radar, de Ancelmo Gois (Veja, 6/8/97), abordou a autorização dada ao Branco do Brasil para a rolagem da dívida de Naya. Isto não invalida, ao contrário, reforça a tese de que a mídia foi indulgente com o pilantra. A gravíssima denúncia de Ancelmo Gois deveria ter merecido suíte, até para livrar o governo de um incômodo. Assim também a acusação pública de que Naya estaria envolvido no narcotráfico e a briga com o jornalista Oliveira Bastos numa boate de Brasília.

 

DOZE DIAS DEPOIS DO INCÊNDIO que destruiu a estação de passageiros do aeroporto Santos Dumont (Rio), o assunto começou a evaporar-se dos jornais. Nenhum pauteiro se interessa em saber como andam as providências para a reconstrução do prédio, como é que os passageiros da Ponte Aérea estão sendo tratados no Galeão, o aumento (indireto) das tarifas (que já eram as mais caras do mundo), a segurança de vôo na torre improvisada, etc. etc. Depois do pique da quase catástrofe, o esquecimento. É nesta alternância de piques e omissões que a imprensa brasileira acostuma a sociedade a um comportamento de espasmos e indolência.

 

 O CORRESPONDENTE DA “FOLHA” EM WASHINGTON, Carlos Eduardo Lins da Silva, publicou na nobilíssima página 3 da edição de 23 de fevereiro um importante texto intitulado “Puritanismo Jornalístico” (ver remissão abaixo).

Refere-se aos “cardeais da imprensa americana e brasileira” que reclamaram do baixo nível das investigações nas denúncias sobre a vida sexual do presidente Clinton. O articulista é doutor em jornalismo, leciona numa universidade americana e quando manda uma matéria vira manchete (caso daquela em que antecipou a renúncia de Clinton em 26/1).

Sem favor e ironia, cardeal é ele. Este OBSERVATÓRIO e este Observador – os únicos da imprensa brasileira que reclamaram contra o midiagate – são modestos e teimosos jornalistas atentos aos seus compromissos sociais.

No final do texto, reconhece que nasceu para coisa melhor do que preocupar-se com as calcinhas de Mônica Lewinsky ou o zíper de Bill Clinton. Concordamos plenamente.

Por isso cobrou-se dele a omissão em informar os leitores brasileiros sobre o teor das quase vinte matérias que o New York Times dedicou ao episódio mais negro da história da imprensa americana. Em nenhum momento nos preocupamos com a vida sexual de Clinton, Hillary et caterva.

Que não leia o jornal dos cardeais da imprensa americana vá lá, mas que não leia o seu – onde esta crítica foi veiculada – é imperdoável.

 

RELATÓRIO DA JUNTA INTERNACIONAL para o controle de Drogas da ONU divulgou um relatório (publicado nas edições de sábado, 28/2/98) acusando a indústria da moda e da música pop de difundir o uso das drogas.

“A indústria da moda criou a expressão ‘heroína chic’, enquanto certos astros pop têm declarado que o uso das drogas como fonte de recreação é um componente normal do estilo de vida de uma pessoa” afirmou o presidente da Junta.

O presidente do Conselho Federal de Entorpecentes, em Brasília, concordou com as teses do relatório da ONU. Para ele, parte da indústria da moda e da música pop brasileira segue a tendência de glamourizar o uso de drogas.

Com a nobilitação da cobertura do mundo fashion em nossos jornalões recomenda-se a preparação de um “manual de estilo” para os que querem entrar no “clima”. Já circula outro, transcendental, ensinando aos repórteres como vestir-se num desfile.

 

A FOLHA COMEU MOSCA NA COBERTURA DO MIDIAGATE AMERICANO. Mas um de seus cardeais, Clóvis Rossi, foi o único jornalista brasileiro a chamar a atenção para a escandalosa conspiração da imprensa espanhola contra o socialista Felipe González (ver remissão para Midiagate 2, por Lu Fernandes, abaixo).

Mas errou nos pormenores. O complô envolveu apenas a imprensa direitista e católica. O diário El Mundo jamais foi de esquerda, é criação de um empresário do tipo Sérgio Naya, intimamente ligado ao banqueiro falido Mario Conde e aos próceres do Partido Popular, do primeiro-ministro José Maria Aznar.

A Esquerda Unida (ex-PCE) é que, na ânsia de acabar com a hegemonia do PSOE, foi na onda do mais abjeto denuncismo (como explica Lu Fernandes).

Aos que se interessam pela Universidade de Navarra e seus paradigmas éticos de jornalismo vale uma informação adicional: a Opus Dei, mantenedora daquela academia, é ligada a diversos elementos da conspiração.

 

É UM DOS DOCUMENTOS MAIS IMPORTANTES SOBRE A IMPRENSA BRASILEIRA publicados ultimamente. Merece desdobramentos e reflexões. Nivaldo Manzano colocou o dedo na ferida ao mostrar o sistema de mediocrização das redações através do caciquismo imperante. Vale para jornais, revistas e televisões.

Um dado a acrescentar tanto no Rio como em S. Paulo é o trânsito das curriolas que vão se substituindo no parnaso jornalístico, sempre em grupo, nos diferentes escalões de comando. Perenizam os vícios, preconceitos e, naturalmente, suas idiossincrasias. Há chefes que jamais foram repórteres e que, de jogada em jogada, vão subindo na hierarquia sem conhecer as regras mínimas de desempenho profissional. Veículos novos começam velhos, “novas fases” deterioram-se prematuramente.

Outro dado é a questão salarial. Uma pesquisa do Corporate Resource Group (da Suíça) junto às maiores empresas que operam no Brasil revela que o executivo brasileiro é o que mais ganha no mundo (cf. Gazeta Mercantil, 26/1/98, p.C-8). Isto se aplica igualmente no campo da mídia. Salários de 50 e 100 mil reais ao mês (como se paga na TV brasileira) são impensáveis nos EUA, mesmo em empresas que faturam o dobro.

O gap salarial brasileiro é também um dos mais altos do mundo. Tamanha diferença entre os ganhos de um chefe e o seu subordinado cria uma cultura peculiar, tipo Maria Antonieta, doidivanas e irresponsável. E, como subproduto, produz um tipo de “lealdade” empresarial que nada tem a ver com a busca da excelência.

O executivo jornalístico brasileiro raramente ousa discordar das ordens e paradigmas emanadas “de cima” por duas razões: a) não sabe apresentar alternativas e b) não quer perder a boca rica.

Claro que há exceções mas a regra é aquela. O Documento Manzano precisa de suíte.

 

A PÁGINA 3 DA FOLHA, NOSSA PRIMEIRA “OP-ED PAGE” (pagina oposta aos editoriais), criação de Cláudio Abramo em 1975, já teve dias melhores.

No domingo, 1/3/98, um dia depois da implosão da obra máxima de Sérgio Naya, a Folha convidou Paulo Maluf para ocupar o alto daquele que é o seu mais nobre espaço. Há uma mensagem clara nesta escolha – separar o presidente do PPB da imagem do seu dileto correligionário mineiro, hoje a pessoa mais odiada do Brasil. Não conseguiu. E reforçou a fama de malufista que persegue o jornalão.

Dias antes, o “imortal” Arnaldo Niskier, atual presidente da Academia Brasileira de Letras (o único caso conhecido de acadêmico acusado de plágio, imaginem, de uma coleção de livros didáticos de matemática) conseguiu chegar ao mesmo pódio.

Nas redações do Rio sabe-se que o imortal paga um assessoria para ser mencionado nas colunas mundanas. Estava na hora de S. Paulo conhecer as mutretas da velha Capital Federal.

 

LEIA TAMBEM

Denúncia contra os novos bárbaros, Nivaldo Manzano

Carlos Eduardo Lins da Silva, Entre aspas

Midiagate 2, versão ibérica