Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sírio Possenti

PORTUGUÊS DE MENAS

"Uns comentários", copyright PrimaPagina (www.primapagina.com.br), 4/09/01

"José Colucci Jr. escreveu uma simpaticíssima resposta aos comentários que fiz a respeito de um artigo seu publicado no Observatório da Imprensa. Lendo a resposta dele, quase me arrependi da ironia de algumas passagens de meu texto. Mas ele mostra excelente humor, e em nenhum momento deu mostras de ter-se sentido agredido ou mesmo de ter ficado chateado.

Sendo Colucci um interlocutor tão simpático e sinceramente interessado em debates, não pude resistir a uma tréplica, cujos objetivos básicos são retificar certas impressões que meu texto lhe causou e explicitar melhor alguns dos argumentos que lhe opus no texto anterior.

Primeiro, as falsas impressões: Colucci acha que me incomodou o fato de ele identificar-se apenas como engenheiro. ?Incomodar? não descreve minha sensação. Havendo tantas engenharias, o fato de ele não explicitar sua especialidade não me ajudava a afinar a imagem do interlocutor, o que me obrigava a falar um pouco no escuro.

Acrescenta que tinha esquecido do apreço que a academia tem por títulos. Mas é claro que não se trata da academia, tratar-se-ia de mim. Acho que se equivocou de novo: os títulos não me interessam, a não ser, como disse, na medida em que permitem representar melhor o interlocutor – para errar menos, ser mais adequado etc. Ocorre que ele informa no rodapé do texto que é engenheiro — e eu poderia imaginar que então os títulos interessam a ele. Mas talvez essa seja uma exigência do Observatório. Tanto é verdade que os títulos não me interessam que nada informo sobre isso. Só sobre meu trabalho.

Ele acha que eu acredito que engenheiros não devem opinar sobre gramáticas. Não me incomoda que profissionais de qualquer extração opinem sobre qualquer campo. Mas ele mesmo reconhece que não se pode sair por aí emitindo opiniões a torto e a direito. Aliás, diz que especialização é para formigas. Não sei se concordo, mas acho que entendi. Quer dizer que não é boa para humanos. Também não gosto de especializações tipo formiga para humanos – eu mesmo não faço o gênero, sou mais um generalista. Mas há limites. Por exemplo, em matéria de mel, ainda prefiro o das abelhas ao das fábricas…

Já que comentei que ele não é do ramo, Colucci informa que leu lingüistas e semioticistas. Leu Chomsky, por exemplo. Acontece que há mais de um Chomsky, mesmo esquecendo o militante político. Muitos lêem com simpatia e outros com antipatia seus ensaios filosóficos e seus argumentos em favor do inatismo. Mas saltam sua teoria sintática. Não sei o que Colucci leu dele, mas o fato de que invoca Napoleão Mendes de Almeida a propósito da incorreção de uma frase me leva a pensar que não incorporou os argumentos do Chomsky lingüista. Ou não invocaria Napoleão, primeiro porque é um argumento de autoridade; segundo por causa da teoria de Napoleão. A sintaxe de Chomsky não é normativa; a de Napoleão é. São dois mundos – talvez incomensuráveis.

Esse é um bom exemplo das razões pelas quais me opus às idéias de Colucci – não porque eram dele (ou porque ele é engenheiro), mas porque eram as que eram. Em suma, não importa qual engenharia ele cursou, se leu ou não Barthes, se um engenheiro pode ou não pode opinar sobre gramática. Em outras palavras: não importa qual seja a pessoa que opina sobre um campo qualquer. O que importa é a qualidade da opinião.

Sei que Sapir era engenheiro. Mattoso Câmara, talvez o maior lingüista brasileiro, era formado em arquitetura. O sociolingüista Labov veio da química. Mas isso só se descobre lendo as biografias. Nunca ao ler um texto deles sobre questões de língua. Porque não são eles que falam, é a teoria que seguem. Não se estribam em autoridades cuja doutrina gramatical seja incompatível com a descrição dos dados da língua que estão analisando segundo uma teoria explícita.

Se Colucci leu Chomsky e depois invoca a autoridade de Napoleão, então Chomsky foi esquecido. Seria como ler Galileu e, em seguida, basear-se na Bíblia para dizer que é o Sol que gira ao redor da Terra, ou Josué não poderia tê-lo parado. Colucci insiste na tese de Napoleão e me lança um desafio: terei que lutar não com ele, Colucci, mas com Napoleão. Seria facílimo, dispondo de uma teoria sintática como a de Chomsky – desde que Napoleão não invocasse sua autoridade, como os cardeais fizeram com Galileu.

É que a noção de função sintática da gramática tradicional é extremamente precária. Pior: reduz a sintaxe às funções, coisa que nem mesmo ela faz de fato, porque ela também trata da sintaxe de colocação (da ordem das palavras/funções). No mínimo, para ser coerente, Napoleão teria que explicar por que, na frase ?gente simpática, mas que condescende demais?, o ?que? e o ?mas? estão na ordem em que estão, mesmo que estivessem na frase para não fazer nada, o que é extremamente discutível.

Vou arriscar uma metáfora: aprendemos que o apêndice não tem utilidade alguma (só ficamos sabendo dele nas crises de apendicite). Extirpado, o corpo não sente falta dele. Sim: mas o cirurgião o retira fazendo uma incisão no abdômen, não na cabeça… Ou seja, mesmo que não sirva para nada, está em lugar determinado, não em qualquer lugar…

Aliás, as metáforas merecem comentário. Eu critiquei a comparação da língua com organismos vivos. Colucci reconhece que pode haver problemas em sua analogia. Mas afirma que em engenharia é comum usar analogias para explicar conceitos novos. Acrescentaria que em lingüística também. Minha discordância não foi em relação ao uso de analogias, mas é relativa à escolha (ou à manutenção) da analogia com organismos. As analogias, ou as metáforas, podem ser muito produtivas, mas também podem ser muito prejudiciais. Bachelard faz um estudo maravilhoso (?O obstáculo verbal?, em A formação do espírito científico) sobre os prejuízos que a metáfora da esponja causou à compreensão de fenômenos físicos – até Descartes entrou bem.

Para encerrar: uma passagem interessantíssima do texto de Colucci é a seguinte: ?Partindo do que eu não disse, o prof. Possenti chega à conclusão, por reductio ad absurdum, de que o controle da evolução de uma espécie é exercido pelo geneticista?. Ora, eu não disse isso. O que eu disse foi que, se a analogia entre organismos e línguas fosse correta, e se fossem os gramáticos a decidir o que uma língua pode aceitar ou não, a manutenção da analogia exigiria que se pensasse que quem controla a evolução de uma espécie é um geneticista. Como não é, mesmo aceitando a analogia, eu não poderia concordar com Colucci sobre o papel dos gramáticos.

Para a analogia valer, como o controle da espécie é feito pelo DNA, o controle da língua seria feito por um elemento análogo ao DNA. Ora, o correspondente ao DNA não podem ser os gramáticos, mas sim traços da língua, que a levam para um lado ou para outro, que lhe dão uma ou outra configuração. Mas ele insiste em sua crença no papel dos gramáticos: ele os compara a enzimas de reparo do DNA. Para ficar na analogia dele, eu diria (repetindo) que o que permite e exclui ?derivas? são as ?enzimas? da língua. Por exemplo, se o verbo perde flexões, o sujeito se torna obrigatório. Ora, não são os gramáticos que decidem isso, mas os falantes, talvez os falantes de prestígio. Os gramáticos são, sim, o correspondente dos geneticistas (quando são bons): eles pesquisam seres vivos ou línguas e explicam por que são assim ou assado.

Muito prazer, Colucci. Vou pensar na sua sugestão final de começar pelos frutos. Não. Pensando bem, vou começar pelas flores.

* Littera, do latim, letra, carta

(Sírio Possenti é professor de Lingüística no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de Os humores da língua e A cor da língua e outras croniquinhas de lingüista)"

    
    
              

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