Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sub-informação, impotência

“Existe uma confusão aqui no Brasil muito grande e muito equivocada na medida em que a questão pública é identificada por nós como sendo governamental. Existe quase que um monopólio governamental sobre a questão pública. Porém, público não quer dizer governamental ou estatal. Público, como a palavra mesmo diz, é público, ou seja, pertence a todos nós, a cada um de nós e não pode ser e nem deveria ser monopólio de nenhum poder governamental.

Na medida em que se enxerga uma identidade entre as duas coisas, tomamos posições, de acordo com essa visão, e passamos a delegar nosso poder e nossa responsabilidade sobre a questão pública para esse mesmo setor, ao qual atribuímos essa responsabilidade.

Só se retrata parte da realidade

Ontem estava no Rio conversando com uma série de editores chefes dos principais jornais e veículos de comunicação de lá a respeito de educação, em função de que a Petrobrás e o Instituto estão trabalhando em conjunto em relação à questão da educação. Foram unânimes em dizer que a educação é absolutamente fundamental, é uma questão crucial para o País mas que, de fato, na prática ela não tem espaço dentro de jornais, de televisão ou de qualquer meio de comunicação. Existe um paradoxo na medida em que ela é vista por esses próprios comunicadores como algo absolutamente fundamental e, no entanto, não recebe qualquer tipo de tratamento, a não ser pontual, se aparece uma greve de professores ou o ministro, de repente, falta alguma coisa, enfim um tratamento absolutamente pontual.

As discussões foram caminhando de forma mais ampla sobre a questão do papel do meio de comunicação ou do profissional de comunicação sobre a realidade existente, seja ela educacional, seja ela de saúde, política ou econômica, enfim, sobre a nossa realidade brasileira, qual tem sido o papel que a imprensa, de maneira geral, tem desempenhado frente às questões públicas – e voltando-se ao tema da questão pública.

Fiquei muito surpresa com as respostas, porque diziam que o dever do jornalista, do profissional de comunicação, era de informar à população, o leitor, sobre a realidade. Informar era a base da responsabilidade do meio de comunicação sobre o seu leitor.

Num segundo momento, além da informação, havia também a função de cobrança a respeito das realidades apontadas, que se faziam na forma de denúncias. Achei extremamente interessante, porque na verdade a função de informar se diz informando à realidade brasileira. No entanto, se abrimos as páginas de um jornal ou assistimos a um telejornal à noite, vamos ver a realidade expressa ali somente em parte, porque ali se tem uma descrição de área de catástrofes, de escândalos, de coisas absurdos, de estragos, de danos de toda a ordem e em todos os setores. Quando se assiste ou lê um jornal, muitas vezes se termina com uma sensação muito ruim.

Até eles mesmos dizem que estavam querendo colocar outro tipo de notícia junto, porque não sabem como é que as pessoas lêem ou vêem aquilo, pois são coisas muito pesadas e desanimadoras. É exatamente essa a percepção que temos tido. Essa informação não é neutra e nem total, porque ela privilegia um lado da realidade. Existe corrupção, existem escândalos, existe sub-educação, sub-cidadania, sub-escolaridade, sub-saúde, sub-empregos, sub-moradias, enfim, que existem estragos no País, todos sabemos. Porém isso não resume a totalidade da realidade brasileira. Ao lado de todo esse estrago, existe um outro lado tão importante quanto, que é o outro lado de um País que faz, que trabalha, que encontra saídas e soluções para coisas difíceis, que é um País de pessoas esforçadas. No entanto, esse lado não aparece nesses noticiários e nem existe tampouco para a população que passa a ter apenas veiculada uma parte da realidade.

Quando coloquei esse tipo de observação, a discussão ficou mais acalorada ainda. Diziam: ‘A verdade é que acontecem esses estragos todos. O nosso dever é de informar à população disso tudo.’

Perguntei-lhes o que é que isso está construindo. Se eles passam esse tipo de informação e consideram que isso esgota a realidade, o que, na prática, está gerando? Acabamos concluindo que isso acabava gerando um sentimento de impotência generalizado nas pessoas, porque quando as pessoas se deparam somente com estragos o tempo todo, de todo o tipo e ordem, e consideram que isso é a realidade brasileira, param e se perguntam: o que vou fazer eu, cidadão pequenininho, diante de tanta coisa errada? E do nível mais alto ao mais simples vêem-se somente estragos para todos os lados, todos os dias. Lê-se jornal e vê-se que não tem jeito mesmo, olhem só, mais essa agora… Passamos um semestre de escândalo em escândalo. Saímos dos precatórios e fomos para a compra de votos, da compra de votos foi não sei para o que lá… Só sei que foi um conjunto de escândalos e, então, sem dúvida tem o dever de se informar a população sobre essas coisas.

Porém, será que é somente essa a função e o papel da imprensa? Informar as pessoas do que está acontecendo? O que essa informação está fazendo, está gerando? Aonde ela está levando? As conseqüências que vejo são um sentimento de impotência generalizada, porque se fica só com uma parte da realidade: a estragada, a torta do País. Não se vê um lado positivo, luminoso, que também existe. E quando se fica só com um lado da realidade, passa-se a achar que não se tem nada, não se pode nada e não se tem condições de fazer nada, diante de tanto mal e de tanto estrago.

A idéia é de que essa informação, se a função fosse apenas de informar, fosse total, que apresentasse os dois lados. Mas aí parece que a questão é que dizem que o lado positivo não vende. Dizem que não gera interesse. Aí a questão é essa: na verdade, que compromisso os meios de comunicação têm com o País? Será que podem extrapolar o seu próprio interesse corporativo de vender e vender mais, ou será que essa é a preocupação que deve decidir que informação deverá ir ao ar ou ser publicada no jornal?

A minha pergunta é exatamente essa: com o que estamos nos comprometendo? Estamos nos comprometendo com o público e com a contribuição para se construir coletivamente esse público, e estamos nos comprometendo com um projeto pátrio, ou estamos interessados nas nossas próprias corporações, no que elas fazem, no que elas devem fazer para subsistir (sub-existir?) e continuar?

Denúncia e desesperança

A discussão toda foi muito acalorada e acho que ficou claro para todos nós que o papel da imprensa não é neutro. Ele nunca foi e nem nunca será. Ela não deve tomar partido no sentido de partidos quaisquer, deste ou daquele lado, mas uma imprensa comprometida com um país não poderia estar simplesmente veiculando apenas parte dessa realidade e, na minha opinião, tampouco se resumir a um papel de mera informação. Ela deveria dar um salto no sentido de se comprometer com a mudança daquilo que ela mesma aponta.

Quando a imprensa diariamente só noticia o lado estragado do País, reforça essa sensação de impotência geral e civil, e essa sensação de impotência nos leva a nos desresponsabilizar cada vez mais e a delegar cada vez mais o nosso próprio poder de mudar essa realidade, de nos responsabilizarmos por ela e mudá-la, dentro das nossas competências – e nós temos competências. Apenas não as vemos, porque, de fato, a nossa percepção é torta. Nós nos vemos como um País assassino de criancinhas, devastador de florestas, de corruptos, indolentes, vagabundos e daí para baixo.

Essa percepção é a que os outros países têm de nós, é a que temos de nós e com essa percepção não vamos mudar nada. Na medida em que a imprensa vem todos os dias reforçar esse padrão de identidade sombria no país, leva as pessoas a delegarem, cada vez mais, o próprio poder e a própria responsabilidade para algo que seja, de Deus a um governo, a alguma pessoa, para se mudar isso. Alguém vai ter que fazer alguma coisa e não nós. Isso é muito grave. Acho que isso é plantar uma semente totalitária, porque se está gerando um terreno onde se alguém aparecer e se apropriar desse papel de ‘salvador’ as pessoas estão quase que pedindo isso, porque elas se sentem tão impotentes, tão despotencializadas que se aparecer alguém com essa proposta será muito provável que as pessoas assumam essa pessoa como, realmente, um ‘salvador da Pátria’.

Acho que o papel da imprensa é muito sério e a discussão da comunicação é algo absolutamente primordial no país, porque a comunicação tem o papel de formar consciência. Na medida em que ela forma e reforça uma consciência torta, teremos conseqüências dessa formação distorcida de consciência.

Na minha opinião a imprensa livre e neutra deve ser também uma imprensa compromissada com esse bem público, com esse projeto pátrio, e a informação deve estar a serviço da construção de um bem maior e não simplesmente absolutamente se resumir a uma mera informação e reprodução da realidade, porque na hora em que simplesmente se reproduz a realidade, se reproduz essa sociedade. Simplesmente, passa-se a funcionar como mero órgão de reprodução.

O que precisamos é mudar esse estado de coisas e me parece que o papel da imprensa nessa possibilidade de mudar consciências e, portanto, mudar realidades, é absolutamente vital.

Criamos um prêmio de jornalismo especificamente voltado à questão da infância e adolescência, que é o nosso foco enquanto instituição, e o prêmio tem exatamente essa proposta: premiar matérias que apontem soluções, que ultrapassem o nível da simples denúncia, da simples crítica ao existente e apresentem soluções, caminhos e saídas para aquilo mesmo que foi denunciado, porque a simples denúncia não está levando a essa superação da realidade. Ela aparentemente parece levar a uma mudança, quer dizer, se denuncio tal coisa vai mudar. Não é isso o que está acontecendo. Em algumas situações, isso acontece, mas na maioria não. Na maioria das vezes, ela simplesmente denuncia e no próximo dia vai ter outra coisa a denunciar e a gente passou, como neste semestre, de escândalo em escândalo e aonde fomos com isso? O que mudou com isso? Será que o simples espelhamento e reprodução da realidade passando informação está, de fato, gerando uma mudança?

A proposta do prêmio foi trazer exatamente esse outro lado da realidade para as pessoas saírem do paradigma do dano e entrarem no paradigma de esperança. ‘Ah, tem esse estrago, mas tem essa solução.’ Em tal lugar está acontecendo “x” atividades, “x” ações que estão levando à solução desse problema que parece insolúvel.

Parece-me que é absolutamente vital revermos o nosso papel, enquanto comunicação e enquanto povo mesmo, a respeito das nossas questões coletivas. Tivemos infelizmente um Estado que assumiu todas as responsabilidades realmente, inclusive aquelas que não lhe cabia, e estamos vivendo uma situação tremenda que me parece que só vai ser resolvida na medida em que nós nos sentirmos competentes para dirigir este país.

Há uma colocação muito interessante de um parlamentar, de quando a Inglaterra adotou o sufrágio universal, que nesse momento se levantou no Parlamento e disse que o principal desafio da Inglaterra, a partir daquele momento, seria o de educar o soberano. Educar o soberano não seria mais educar o príncipe e o rei, porque dali em diante o soberano seria o povo.

Acho que temos que passar de uma cidadania apenas reivindicativa e de cobrança do ‘por que o governo não faz isso?’, cidadãos apenas conscientes quando reivindicam seus direitos, para um estágio de cidadãos estadistas, aqueles que se sentem responsáveis pelo destino deste país.

Esse salto, me parece importante ser feito pela comunicação, uma comunicação que se co-responsabiliza pelos destinos do país, e por nós, população geral, cidadãos comuns, que devemos sentir-nos co-responsabilizados por este país.”

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