Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Suspendam o bobajol acadêmico

DESAFIO AOS LINGÜISTAS

Caia Fitti (*)

Falta leitura a todos os profissionais que escrevem no Brasil. Nisso, concordo com o diagnóstico do texto "A novilíngua do jornalismo pós-moderno" [ver remissão abaixo]. Mas falta incluir, entre as causas de estarem as coisas como estão (muito mal), em tudo quanto tenha a ver com língua, a principal: a nossa universidade fracassou, completamente, na tarefa de construir, ensinar e divulgar bons saberes sobre língua (em geral) e língua portuguesa (em especial).

Há alguns dias assisti, no Programa do Jô, a uma entrevista com o ilustre professor Bechara, autor de livros nos quais todos estudamos. Alguém, da platéia, perguntou-lhe: "Professor, bem-intencionado tem hífen ou não tem hífen?" E o professor respondeu, na lata: "Tem hífen." Em seguida, outra pessoa da platéia perguntou: "E mal educado? Tem hífen ou não tem hífen?" E o professor, outra vez na lata: "Não tem hífen".

Aí, o Jô Soares concluiu, com a verve que faz sua fama: "Em português o hífen é usado como dá na telha de cada um". E o professor, muito sem jeito: "Bem, não é bem assim… Há regras…" E o Jô, outra vez, também na lata: "Ora, professor Bechara… Todo mundo sabe que, no Brasil, tem hífen que pega e hífen que não pega…"

Ora! Claro que a piada é engraçada, e foi tascada na hora certa. E claro que todo mundo riu (até eu). A diferença é que eu, por acaso, tenho outros meios para procurar e encontrar boas explicações e soluções prôs meus problemas de língua. Mas… e a platéia?

Espichando um pouco a metáfora: eu tenho meios e recursos dos quais me socorrer, quando tropeço nas dificuldades da nossa língua, porque sou lingüista (formada pela USP, oficialmente, mas, de verdade, totalmente autodidata ? o que sei aprendi sozinha e com os meus amigos de muitos grupos de estudo e discussão, todos estudando por fora). Mas e o povo brasileiro?

A quem o povo brasileiro pode recorrer, quando não sabe como escrever ou dizer alguma coisa em português "correto" ? vale dizer, em "português de rico"?

Nos livros, só regras e regras e regras (e listas de "certos & errados"), todas, sempre, insuficientes e portanto, praticamente inúteis. E as regras dos nossos livros de gramática são tão mal construídas que, antes de ser capaz de aplicar uma regra, o infeliz brasileiro pobre teria de fazer um curso completo de… morfossintaxe! Como é que o infeliz brasileiro vai saber em que casos a palavra mesmo (do texto que aqui comento) é substantivo, ou pronome, ou adjetivo, ou advérbio?!

Daí que, na minha opinião, é mais que hora de a imprensa brasileira parar de repetir que os "professores ensinam mal". Pode até ser verdade… Mas o xis da questão está antes de os professores serem diplomados sem saber porcaria nenhuma de bons saberes democráticos de língua: a universidade, no Brasil, nos últimos 20 anos ? no que nos interessa aqui, especificamente, os cursos de Lingüística ?, esqueceu-se de que sua tarefa não é "oficializar" os saberes lingüísticos insuficientes que produzimos por aqui e titular mestres e doutores que têm, de ignorantes, de maus cientistas e de maus brasileiros, o mesmo que têm de charlatães e arrogantes.

Por mim, chamava às falas, em audiência pública, todos os mestres, doutores e pós- doutores da lingüística brasileira [USP, na primeira audiência; no dia seguinte, chamava os superdoutores da Unicamp; no terceiro dia, as doutoras da Língua Portuguesa da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), reunidas na UnB] e lhes dava a seguinte tarefa cívica:

Suspendam todo o bobajol acadêmico que vocês inventam, inflam e consomem aí, nos seus cursos & bolsas no estrangeiro, com dinheiro público, mas totalmente esquecidos do Brasil. A partir de agora, toda a lingüística brasileira só tem uma tarefa acadêmica: colaborar para acabar com o analfabetismo funcional no Brasil.

Imperialismo língüístico

Isso quer dizer: se vocês quiserem ver a cor da grana pública terão de prestar bom serviço público ao Brasil e aos brasileiros.

O Estado brasileiro acaba de concluir que os mais graves problemas da educação brasileira são: a insuficiência dos estudos sobre língua portuguesa do Brasil; e o analfabetismo funcional (que se pressupõe conseqüência evidente e direta da insuficiência dos saberes sobre língua que se produzem na universidade brasileira).

Portanto, mestre e doutor em lingüística e em língua portuguesa, doravante, só se o(a) cara aparecer com uma proposta consistente para:

1) descrever;

2) explicar; e

3) resolver esses problemas.

Se não… adeus emprego, salário, mordomias e salamaleques acadêmicos!

Nem preciso dizer que a imprensa ajudaria muito o Brasil se, em vez de repercutir os saberes insuficientes que a universidade produz sobre língua, no Brasil, examinasse um pouco mais o que se faz hoje pelo planeta, na luta para salvar as línguas e os falantes pobres dos países pobres.

Sugiro, se interessar, para começar, a leitura atenta de um livro que o planeta já discute há mais de 10 anos e do qual, no Brasil, os "lingüistas" nunca ouviram falar: Linguistic Imperialism (Philipsson, Oxford University Press), do qual corto-colo o parágrafo abaixo (traduzido por mim):


"A questão lingüística, no mundo do século 21, tem de ser abordada em dois planos. Num plano, trata-se de descrever, explicar e resolver o impasse em que vivem as grandes línguas nacionais, ameaçadas pelo globalizamento pelo inglês das finanças planetárias. No outro plano, trata-se de descrever, explicar e resolver o impasse em que vivem as pequenas línguas minoritárias e tradicionais, cujas populações falantes estão ameaçadas de genocídio. Nesse plano, cabe também aos lingüistas trabalhar para preservar as línguas e as populações falantes e colaborar para que essas populações alcancem também os benefícios do desenvolvimento e da justiça social."


(*) Lingüista, tradutora e assessora técnica do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), para questões de Políticas para o Idioma

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