Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Televisão interfere no voto

Judi Cavalcante (*)

Marco Antonio Teixeira (**)

 

N

a análise da cobertura dos meios de comunicação desta primeira etapa do processo eleitoral, encerrada ontem com o primeiro turno, duas questões ficam claras: o papel central que a televisão vem assumindo na vida política brasileira e a despolitização das campanhas, tanto no noticiário dos telejornais, como nos programas partidários do horário eleitoral gratuito.

Num país onde 80% dos domicílios possui aparelhos de televisão e a imensa maioria dos cidadãos se informa única e exclusivamente pelo noticiário televisivo, a cobertura dada pelos telejornais ao processo eleitoral assume papel fundamental no resultado das urnas e na percepção que as pessoas têm da política.

No caso específico dos processos eleitorais, a televisão retirou dos partidos políticos o papel de agente mediador entre os eleitores e os candidatos. Torna-se imperativo numa campanha produzir fatos que rendam imagens para a televisão.

Isso pode ser comprovado na análise comparativa dos telejornais Jornal da Band, Jornal da Record e Jornal Nacional, nos períodos de 24 a 30 de agosto e de 19 a 25 de setembro.

O resultado da análise mostra o papel central e determinante que a televisão exerceu sobre o debate e a agenda política, seja no tratamento dado ao conteúdo das reportagens apresentadas, seja pelo que a TV omitiu do noticiário de seus telejornais.

Pela repercussão junto ao telespectador (eleitor), essas duas semanas foram marcadas por dois acontecimentos decisivos na disputa eleitoral: o ápice da crise econômica e o discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso anunciando as medidas para enfrentamento da crise.

Na primeira semana, de 24 a 30 de agosto, as eleições praticamente sumiram do noticiário dos telejornais. A crise ganhou destaque como fato exclusivamente econômico e mundial. Com exceção feita ao Jornal da Record, que até o momento vem fazendo a cobertura mais extensa do processo eleitoral. No primeiro período observado, na única vez em que o Jornal Nacional dedicou espaço para as eleições foram pouco mais de dois minutos para divulgar a pesquisa eleitoral feita pelo Ibope. Nada sobre os candidatos e suas propostas de governo. O telejornal com maior audiência do Brasil, a pouco mais de 30 dias do mais importante pleito do país, dedicava a maior parte do seu tempo a falar de fauna e flora, e de como as bolsas de valores do mundo reagiram a mais um escândalo sexual envolvendo o presidente dos Estados Unidos.

Como afirma Pierre Bourdieu em seu livro Sobre a Televisão, “o tempo é algo extremamente escasso em televisão. E se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas fúteis, é que essas coisas fúteis são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas preciosas”.

A cobertura do Jornal da Record reforça o argumento utilizado por Venício A. Lima de que os “mídia não são veículos neutros. É através deles que a política é construída simbolicamente, adquire significado”. Assim como os outros telejornais e veículos impressos, o Jornal da Record mistura nas mesmas reportagens a cobertura dos atos do governo FHC com os atos do candidato FHC, não permitindo ao telespectador (eleitor) fazer a distinção entre o presidente e o candidato.

Para mostrar que esta é uma postura comum a todas as emissoras, e não só a Record, basta ver a resposta da Rede Globo à crítica do candidato Lula ao tratamento que as TVs vêm dando à cobertura das eleições. Disse William Bonner em editorial do Jornal Nacional: “o tempo destinado em nosso telejornais a notícias sobre esta fase da campanha é o adequado. E tem sido dividido com equilíbrio entre os candidatos principais. Além disso, a Globo divulga atos do governo (FHC) segundo interesse que tenham para o povo” (em Nelson de Sá, Folha de S. Paulo, 02/10/98).

Assim fica claro que, para os editores do Jornal Nacional, é do interesse do povo, neste momento, saber mais sobre golfinhos e focas do que sobre as conseqüências da seca que ainda persiste no Nordeste. Como também os editores definiram que era do interesse do povo saber que FHC, enquanto presidente, recebeu a visita do dirigente máximo da Fiat para anunciar possíveis investimentos da empresa no Brasil no momento mais agudo da crise econômica internacional.

Na divisão do tempo dedicado aos candidatos, o Jornal da Record foi equânime. Foi o que deu maior cobertura à campanha do candidato Ciro Gomes. Na edição do dia 27/8, chegou mesmo a cometer um exagero “pró-Lula”: dedicou 1,40 minuto ao candidato petista, contra 0,26 segundos para FHC. No entanto, na mesma edição, o presidente FHC obteve 1,12 minutos de reportagens que, somados ao tempo do candidato, perfazem 1,38 minutos, equivalentes ao tempo destinado a Lula. A indistinção da cobertura da agenda do candidato com a do presidente e o tratamento negativo, em textos e enquadramentos de câmera, dados ao candidato petista, fizeram a tônica da cobertura do Jornal da Record durante todo o período analisado.

As edições dos telejornais do dia 23/9 são emblemáticas de toda a cobertura que as redes de televisão fizeram do processo eleitoral. Nesse dia, por ocasião de um ato no Itamaraty, o presidente Fernando Henrique proferiu discurso anunciando as medidas que seu governo iria tomar para enfrentar a crise. Fenômeno que, até aquele momento, através de um esforço hercúleo do governo e dos telejornais, continuava sendo apenas de naturezas econômica e internacional.

Porém, a gravidade da crise obrigou o presidente a se manifestar “em tom quase de pronunciamento à nação”, como narrou a repórter do Jornal da Record. O que destacaram os telejornais. Na Globo, “corte de gastos e aperto nas contas públicas. Essa é a parte do governo federal”, disse o Jornal Nacional. O problema, na verdade, como pronunciou o presidente e o editorial que fechou a reportagem do JN, são os descontroles e desperdícios dos governos e legislativos estaduais e municipais e do poder judiciário. Finalmente o governo e os telejornais encontraram uma saída para um problema “que é mais do que eleitoral”, como afirmou o Jornal da Band.

Aliás, a edição do Jornal Nacional foi primorosa para corroborar o destaque feito por Bourdieu, quando ele diz que “os perigos políticos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam de o efeito de real. A TV pode fazer ver e fazer crer no que faz ver”.

Após a edição com a fala do presidente FHC, a correspondente em Washington relatou que “a repercussão (do discurso) não demorou”. Mostrando imagens do secretário do tesouro norte-americano, do presidente do Banco Mundial e do presidente do Federal Reserve, o texto da repórter faz o telespectador crer nas repercussões mundiais que o pronunciamento de FHC provocou. O fechamento da matéria é uma pérola jornalística: “até a bolsa de Nova York subiu”.

Nesse contexto, firmando-se como o principal veículo de comunicação dos brasileiros, a televisão vem interferindo de maneira significativa na decisão do voto. A cobertura feita pelos telejornais exaltou a figura individual dos candidatos

Os noticiários, quase todos pautados por uma uniformidade temática, sofreram variações apenas de ênfase, e mostraram um FHC globalizado, em sintonia com seus amigos pessoais Bill Clinton, Mário Soares, Helmut Kohl e Tony Blair. Além disso, mostrou-se um presidente do Brasil com poderes de influência semelhantes aos de seus amigos pessoais. Em casa, o telespectador pôde concluir que o pronunciamento de FHC determinou a redução das taxas de juros norte-americanas, anunciadas pelo presidente do Federal Reserve Bank, e a subida da bolsa de Nova York.

Por outro lado, o candidato Lula, quando não foi colocado como suspeito de se envolver com transações ilícitas com o advogado Roberto Teixeira, era mostrado como uma pessoa fora do contexto da “nova ordem internacional “. Assim, o eleitor podia concluir que o petista era uma pessoa despreparada para enfrentar a crise mundial que assolava o país.

Se é verdade que o debate de idéias vem se esvaziando cada vez mais, é inegável o papel despolitizante exercido pela cobertura dos telejornais. A cobertura política realizada pela televisão prescinde do saudável hábito de colocar projetos diferenciados em debate. O que tem prevalecido são os interesses políticos e econômicos dos proprietários das redes de televisão, somados aos compromissos que estabelecem com determinadas lideranças políticas.

(*) Jornalista, pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP.

(**) Sociólogo, pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP.