Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Tem dia que a gente engasga

TELEJORNALISMO EM CLOSE

Paulo José Cunha (*)

Repórteres e apresentadores de televisão somos treinados para segurar nossas emoções ou, no mínimo, contê-las dentro dos limites do bom senso, vale dizer: nem tão reprimidas a ponto de parecermos robôs insensíveis perante as desgraças, nem tão explícitas que desabem no espetáculo, comprometendo o conteúdo da informação. Embora o espetáculo faça parte da essência da televisão, costumo recomendar aos meus alunos que busquem um nível aceitável para o exercício de sua emotividade, mesmo sabendo que estamos tratando de valores subjetivos, e o que parece "aceitável" para um pode ser exagerado para outro e vice-versa.

A observação vem a propósito da explosão de emoção do apresentador William Bonner na edição do Jornal Nacional no dia do enterro do jornalista Roberto Marinho. Alguns colegas chegaram a cogitar da hipótese de Bonner ter "forçado a barra" para esquentar o encerramento. Usando apenas a lógica, Bonner não precisaria recorrer a tal artifício: a edição que acabava de narrar já era histórica. E a ninguém é dado suspeitar do grau de envolvimento emocional do apresentador com doutor Roberto ou com seus filhos.

Portanto, como é impossível saber o que veio à cabeça (ou ao coração) de Bonner naquele momento, qualquer juízo de valor carece de fundamentaç&aatilde;o. Na bancada do Bom Dia, Brasil, ao lado de um Carlos Monforte igualmente emocionado, engasguei durante o noticiário sobre a morte do presidente Tancredo Neves, embora nada de pessoal me relacionasse a Tancredo. Ponto. Parágrafo. E mudamos de assunto sem sair do tema.

O que é bom a família mostra

É cansativa a repetição das críticas à cobertura da Globo sobre a morte e a obra de Roberto Marinho. A acusação mais suave é a de ter edulcorado a vida do jornalista a ponto de canonizá-lo. Bobagem. Surpreendente e contra a lógica natural das coisas seria a TV Globo, pertencente à família Marinho, fazer um necrológio apontando os defeitos de seu patriarca.

Pelo contrário, sim, a hora é de enaltecer suas virtudes, evidenciar sua contribuição às boas causas. Aos demais veículos, sim, deve ser cobrada isenção absoluta na cobertura e nas análises da vida e da obra do criador do Sistema Globo. Como aliás, fez, e bem, a Folha de S.Paulo, na minibiografia em que apontou, cronologicamente, a trajetória de RM desde os anos 30, quando assumiu a direção do jornal herdado do pai, chamado O Globo, passando pelo controvertido acordo Time-Life, pelo qual foi beneficiado com U$ 25 milhões para a fundação da TV Globo, que assumiria a posição de porta-voz oficiosa da ditadura militar durante os anos de chumbo, e lembrando episódios pouco edificantes, como o caso Pro-Consult, quando a Globo foi acusada de agir para impedir a vitória de Leonel Brizola na disputa pelo governo do Rio de Janeiro em 82; a relutância das Organizações Globo em cobrir a campanha pelas Diretas; e a tendenciosa edição do debate Collor-Lula na eleição presidencial de 89.

De resto, episódios batidos e rebatidos em artigos, crônicas, análises, teses acadêmicas e documentários disponíveis com riqueza de detalhes na internet a quem acessar um desses sítios de busca.

Nada disso, porém, impede o reconhecimento do trabalho executado pelas Organizações Globo e pelo jornalista Roberto Marinho em campos como o desenvolvimento de uma teledramaturgia nacional, o apoio à preservação do patrimônio histórico brasileiro através da Fundação Roberto Marinho e as campanhas sociais vitoriosas, como o Criança Esperança e a Ação Global. Fatos, aliás, omitidos na minibiografia elaborada pela Folha.

Ou seja, as pessoas (como doutor Roberto Marinho, além de mim e de ti, leitor) têm qualidades e defeitos. Das qualidades, cuidam os olhos benevolentes da família do morto; dos defeitos (e se houver equilíbrio editorial, até mesmo das qualidades) cuidam os que não têm obrigação de enaltecer apenas as virtudes de ninguém e podem livremente exercer a tal de isenção jornalística.

Ou será que alguém aí queria que o Bonner desancasse o patrão, nem bem o corpo havia esfriado na sepultura?

(*) Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close <http://www.tjemclose.hpg.com.br>, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>