Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Tempo de revolução

ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

RESENHA

Leneide Duarte

Depois da paixão política, de Josep Ramoneda, Editora Senac, 208 páginas

É possível pensar depois de Auschwitz? A pergunta de Adorno é proposta em um momento, na introdução do livro Depois da paixão política, de Josep Ramoneda, recentemente lançado. E a resposta que o leitor descobre, ao terminar a leitura, é que não somente é possível pensar, como pessoas como Ramoneda continuam pensando – e bem. "Então, o que angustiava era o sacrilégio da grande profanação da humanidade, enquanto agora a ameaça é o totalitarismo da indiferença", diz o autor do instigante livro, um filósofo e jornalista espanhol, de 52 anos, fundador do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona e colaborador do jornal El País.

Autor de vários livros entre os quais se destacam El sentido íntimo e Apologia del presente, Ramoneda mostra a seu leitor por que a paixão política – que começa em 1848 e vai até 1989 – acabou e o que a substitui no mundo de hoje. O livro questiona por que o homem pós-moderno olha de soslaio para o velho militante da paixão política. E acrescenta: "Na sociedade da indiferança política, os parlamentos assumem um papel estritamente simbólico e as decisões concernentes a todos emanam dos escritórios dos especialistas (tecnocratas, economistas e financistas) encarregados da gestão do poder econômico, a quem mal chega o controle democrático". Ele diz que a sociedade pós-política se caracteriza precisamente pela imbricação crescente entre o poder econômico e o poder político, que cedeu quase que completamente à definição das políticas econômicas e ao controle do dinheiro.

Num mundo em que já não são claras as oposições – imperialismo/antiimperialismo, capitalismo/comunismo, esquerda/direita – o triângulo "poder midiático/poder político/poder econômico" funciona como mecanismo extremamente eficaz para converter em irrelevante o que não interessa, sem necessidade de proibi-lo. Ramoneda diz que entre a construção ideológica da barbárie (que seleciona e escolhe em função de interesses concretos) e a aplicação do direito de ingerência conforme um princípio de necessidade, para salvar as vítimas da extrapolação do poder, transcorrerá, no futuro próximo, a política internacional do Ocidente, em momentos em que o inimigo não tem um só rosto. Ele se questiona se a substituição do inimigo pelo bárbaro – ocasionalmente selecionado – e a crescente consciência de intervenção na defesa dos direitos humanos não são o determinante principal da nova idéia da política que, segundo Maquiavel, é o jogo de estratégias e táticas pela conquista e manutenção do poder.

Com o mundo inserido num período que alguns chamam de pós-modernismo e outros de pós-comunismo, o que se constata é que existe uma cultura política pós-ideológica. Mas Ramoneda desmascara quem pensa que a cultura pós-ideológica é desprovida de ideologia. "A sociedade do fim das ideologias transborda de ideologias, começando pela ideologia da técnica e pela fantasia de consumo que está na felicidade de abaster-se no shopping center", constata. A sede de consumo, que nunca se satisfaz, na aventura sisífica de subir uma montanha cujo topo não se alcança nunca, porque sempre quer comprar algo mais, apenas confirma, segundo Ramoneda, que, por ter limpado as ideologias de toda aderência transcendental, elas não são menos utópicas. A sociedade pós-ideológica parte do princípio da luta até a morte pelo reconhecimento (que hoje recebe o nome aparentemente asséptico de competitividade).

O peso da exclusão

O que gera a sociedade pós-ideológica é miséria e exclusão. Os marginalizados não têm funcionalidade no sistema de produção, nem sequer como exército de reserva. O marginalizado não tem palavra porque não há lugar político para ele. A marginalização cruza transversalmente o mundo: há países inteiros excluídos da economia global – na África, por exemplo – que nem merecem a intervenção das potências ocidentais. A matemática da exclusão é sinistra: 20% de cidadãos distribuídos irregularmente detêm o poder econômico, o político e o cultural-midiático; enquanto 80% vivem na miséria e na marginalidade.

O neoliberalismo hegemônico, ao atuar como dono do espaço político, também é um fundamentalismo, segundo Ramoneda. Para ele, hoje, três formas de fundamentalismo assediam a democracia: o essencialismo constitucionalista, que nega a necessidade de transformação e evolução da democracia; o fundamentalismo convencional, que pretende estabelecer a organização social sobre a verdade (Estado teocrático); e o reducionismo economicista ou tecnocrático, que acredita que a democracia é um simples instrumento a serviço do processo de globalização. Nessa encruzilhada, o que corre risco é a cultura democrática. Com a redução do cidadão à estrita condição de homo economicus, falar de política e fazer política torna-se uma atividade desnecessária e perigosa. Mas o autor lança o desafio: "Não é hora de apelar para o retorno da política democrática? Não é hora de exigir a submissão da economia à política?"

Pleno de humor e de lucidez, Ramoneda constata que a queda do comunismo soviético é um fracasso estrondoso das chamadas ciências humanas. Não só pegou a teoria de surpresa. Ninguém poderia ter previsto nem pensado nos problemas que poderiam surgir dessa situação. "Em 1989, amontoavam-se em cantos cada vez mais escuros da biblioteca os manuais sobre a transição do capitalismo ao socialismo e não havia um sequer sobre a transição deste ao capitalismo, o único que poderia ter sido útil."

Enquanto se excluem as ideologias, quase todas as contradições estão por serem resolvidas. Ramoneda destaca que a América Latina está se convertendo em paradigma de cidades que deixam de sê-lo porque o apartheid, a segregação de fragmentos homogêneos é incompatível com a idéia de cidade – que é a pluralidade. Está nascendo um novo tipo de cidade na quail as classes altas vivem encerradas em bairros-castelos e o restante é território aberto à delinqüência e à desesperada luta pela sobrevivência. "Os excluídos são muito mais numerosos que os incluídos. E, quando isso acontece, é tempo de revoluções."

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