Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Teoria e prática da presunção de culpa


Reportagem? Investigação? Panfleto? Receptação?
Algumas considerações sobre a nova façanha da
Folha

 

Nota preliminar: este Observatório mantém-se restrito aos objetivos do projeto original – acompanhar o desempenho da imprensa. Ao leitor-observador cabe fazer os juízos sobre o mérito e teor do que é noticiado.

Lançamento – Houve várias alternativas. Uma coisa era certa, a bomba deveria estourar na edição de terça-feira para que, no final de semana, os semanários inflassem o assunto com mais gás. Uma das hipóteses era publicar em capítulos, mas corria-se o risco de faltar combustível até a sexta-feira. Considerando o potencial das revelações, optou-se pelo petardo único – 12 páginas e o alto da primeira página.

Griffe (ou selo) – Na derrubada de Fernando Collor de Melo, imediatamente após a capa de Veja, a Folha de S.Paulo já tinha inventado um logotipo e produzido uma sentença: o então presidente era culpado e teria que seguir o caminho de Nixon. De Watergate a Collorgate, a escolha foi óbvia. Tratava-se de uma cruzada. Agora, seria preciso dar um clima ponderado de investigação. Ganhou a fórmula “Os Segredos do Poder”. A idéia de “investigação” não se sustentou, pela falta de informações complementares. Ficou imediatamente óbvio que as fitas foram entregues ao jornal por alguém interessado em fazer escândalo. No fim-de-semana, a griffe evaporara do jornal e a reação dos semanários foi morna.

Cautelas – No primeiro dia, na matéria de capa, o leitor não foi avisado dos termos do editorial da página dois em que o jornal reconhecia que a escuta clandestina é ato criminoso. Era o mínimo que o jornal deveria fazer, considerando que o leitor não é bacharel nem conhece os procedimentos jornalísticos. Também não se tentou ouvir o outro lado. Isso só foi feito no dia em que começou a publicação. Na quinta-feira (27/5) o jornal entrou na defensiva, começou a explicar-se. Dois textos tentaram oferecer precedentes históricos e argumentos éticos. Um deles, assinado pelo diretor da Redação, na página 2, admite que a captação das informações foi ilícita e que a entrega das fitas foi mal-intencionada. Mas atrapalhou-se flagrantemente ao alegar que o jornal averiguou a veracidade das informações contidas nos diálogos. Até o domingo, 30/5, o jornal não conseguiu produzir nenhuma informação adicional que corroborasse a suspeita sobre a probidade do presidente. Ao contrário [veja remissão abaixo].

A reação dos outros – Como sempre esbaforida e pífia. Ninguém conseguiu adiantar coisa alguma a não ser as esperadas declarações do governo e oposição. No dia seguinte (quarta, 26/5) a manchete mais original (porque interpretativa) foi a do Jornal do Brasil: “Consumidor ganha, mas a crise do grampo ainda afeta teles”. Tônica também usada por Época na matéria de capa, para esquentar o assunto. Como a nenhum semanário foi oferecida alguma sobra de fita como consolação, não puderam participar com a sua quota de “investigação” [veja remissão abaixo].

A reação dos leitores da Folha A Ombudsman da Folha registrou que a maioria das cartas recebidas foi de apoio às denúncias do jornal. Mas não ofereceu cifras do total de cartas recebidas – deveria. No entanto, registrou algo que considerou “expressivo”: entre quarta e sexta-feira recebeu 51 telefonemas de leitores sobre o assunto. Desses, 43 condenaram o jornal e apenas 8 apoiaram. Embora faça reparos ao comportamento do seu jornal, a Ouvidora refere-se à “reportagem que revelou o mais completo bastidor da privatização do sistema Telebrás”.

Reportagem ou transcrição? – Levando-se em conta o significado geral do verbo “reportar” (contar, referir-se, etc.) a matéria da Folha pode ser considerada como reportagem. Mas na linguagem profissional, estrita, técnica, uma reportagem pressupõe a busca de informações sobre algo acontecido (ou não). Aqui deu-se o contrário: as informações foram buscar o jornal. E o jornal as transcreveu, editou, explicou e tirou conclusões antes mesmo da publicação. Uma coisa é o jornalista movimentar-se para buscar a verdade. Outra, é a fonte que se movimenta para trazer ao jornalista a sua versão da verdade. Vale a pena refletir sobre essa pequena diferença.

Final melancólico – A edição dominical da Folha (30/5/99) revela que apesar do lançamento bombástico houve mais “edição” do que “reportagem”. Mais cruzada do que informação. Mais emoção (=barulho) do que comprovação. Cinco dias depois das estrondosas revelações que abalaram as bolsas e foram para a primeira página dos principais jornais do mundo, o jornal não tinha mais munição: teve que recorrer a uma história em quadrinhos, toscamente desenhada e pifiamente concebida sobre algo que sequer tinham aventado: a autoria do grampo (isso, sim, reportagem mas de outro jornal, o Correio Braziliense). Ficou sepultada na página interna (1-13), sem a menor referência na capa, a defesa dos envolvidos no grampo do BNDES (Mendonça de Barros, André Lara e Pio Borges). No pequeno texto de 19 linhas que antecede o catatau está dito que trata-se de “um resumo preparado pelos advogados e está sendo publicado pela Folha para permitir ao leitor conhecer suas versões em detalhes”. Em outras palavras: a Folha capitulou aos argumentos legais e afinal abrigou o outro lado. Generosamente.

Presunção de culpa – Convém examinar com atenção o logotipo ou selo das matérias iniciais. O título “Segredos do Poder” está embaixo da foto muito nítida de Fernando Henrique Cardoso e de uma fita de gravação. Não era uma imagem simbólica e genérica do poder (exemplo: os pilotis da capital). Era a própria pessoa de FHC. Antes mesmo do leitor inteirar-se do teor da matéria já estava sendo induzido a acreditar que esses segredos comprometiam o presidente.

Manchete da 1ª matéria (terça, 25/5/99): “FHC tomou partido de um dos grupos no leilão da Telebrás”.

Manchete da 2ª matéria (quarta, 26/5/99): “Fita derruba versão do governo sobre interferência em leilão”.

Manchete do 3º dia (quinta, 27/5/99): “Bolsa de SP sob 6% e dólar cai 1,7%”. Sobre os grampos, duas chamadas secundárias de capa: “Malan quis antecipar ao FMI discurso de FHC” e “Governistas abafam CPI da privatização”.

Manchete do 4º dia (sexta, 28/5): “Para FHC, oposição age com leviandade”.

E, para o leitor, quem é o leviano?

 

A Folha sabe investigar quando quer investigar. Ou quando se despoja do passionalismo político e abdica da vaidade de ser o protagonista da cena política. A prova está no esplêndido trabalho de investigação desenvolvido pelo repórter que conseguiu dar uma reviravolta completa no caso PC Farias.

A série de matérias começadas em 24 de março, mostrando que Suzana era menor do que a altura suposta, derrubou o laudo pericial e a conclusão das autoridades das Alagoas – homicídio seguido de suicídio. Tudo indica que foi duplo homicídio [veja remissão abaixo].

Essa é a diferença entre vazamento e investigação. Entre cruzada e jornalismo. Entre os arranjos de edição e o trabalho de reportagem. Entre a procura do barulho e a disposição de buscar evidências. Pode até ser que alguém tenha passado uma dica ao repórter ou ao jornal. Mas alguém saiu em campo para fuçar, procurar evidências e documentos. A pesquisa fotográfica foi exemplar.

Mesmo que a reabertura do caso termine com a mesma conclusão, aí está um exemplo clássico do que é investigação jornalística. Nesse episódio só temos a lamentar o comportamento da mídia em geral e da TV Globo em particular, que não tem sabido creditar o feito ao concorrente/adversário.

 

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