Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Tereza Halliday

ELEIÇÕES 2002

"Recado de eleitora", copyright Diário de Pernambuco, 22/08/02

"Trabalha, candidato. É nobre o emprego que vou te arranjar: ser meu representante nas instâncias do poder – assembléias legislativas, Câmara, Senado, gabinetes de prefeito, governador e presidente. Pago-te regiamente para zelar por minha cidade, meu estado, meu país. Mesmo sabendo que poderás zelar pouco e fazer mal ao bem comum.

Sem mim, tua eleitora e fonte pagadora, ou concorres à reeleição com risco de ?dançar?, ou ainda não tiveste o gostinho do poder e aspiras a cargo que aumente as chances de te fazer na vida. Sem mim, tua eleitora e escada, não terás acesso às imunidades e mordomias ?em nome de? serviços a mim prestados – eu, cidadã que te contrata para seres competente e decente no trato da coisa pública.

Trabalha, candidato. É grande a missão que te vou confiar: falarás por mim, ora bem, ora dizendo asneiras e empulhações que me deixarão indignada e envergonhada, como tua patroa. Eu te contrato por quatro anos como meu procurador para assuntos da sociedade que me é devida – mais séria, justa e harmoniosa. Se descumpres o contrato, não tenho uma Justiça do Trabalho a quem recorrer. Resta-me fazer justiça com as próprias mãos, não te elegendo da próxima vez. Pena que meu voto consciente seja minoria no cesto dos votos comprados.

Trabalha, candidato. Terás muitas vantagens financiadas pelos meus impostos: passagens aéreas, uso das telecomunicações, serviços médicos e postais, combustível, assessores, residência funcional – tudo subsidiado por mim, através do Leão e demais fontes coletoras. Conchavarás como se fosse para o meu bem, terás teus dez minutos regulares de glória na TV e muito mais de dez benesses executivas ou parlamentares.

O poder acelera o envelhecimento e predispõe a doenças. Em meado de mandato já estarás sambado. Mas sabes que é melhor ficar doente e envelhecido no poder, com dinheiro no bolso e prestígio na praça, do que liso e com o desprestigiado status de ?cidadão? apenas.

Sabes por que te contrato a cada quatro anos? Mesmo quando abusas da minha confiança, envileces tua função e desmereces o polpudo salário que te pago? Para sustentar Dona Democracia. Ela é frágil, cheia de achaques e exigências. Mas ainda não apareceu ninguém melhor que ela para coabitar. Sabes por que sou tão paciente contigo, candidato eleito? Somente, tão somente, para que nenhum sujeito – nem civil, nem militar – consiga mandar sozinho, fazer o mal escondido, proibir-me de pensar diferente e me punir por discordar.

Elegendo-te, posso criticar-te em prosa, verso, anedota, artigo de jornal. Quer sejas governo, quer sejas oposição. Este meu pequeno poder da liberdade de expressão é bem menor que o teu poder de agir mal e porcamente como político eleito. Mas se Dona Democracia for embora, eu perderei meu pequeno poder. E isto me saíria muito mais caro do que votar em ti."

 

"Despreparo da Justiça Eleitoral", copyright O Estado de S. Paulo, 24/08/02

"Se há uma instituição que não está à altura do estágio de evolução já atingido pela sociedade brasileira, no rumo do aperfeiçoamento institucional democrático, esse é o caso de nossa Justiça Eleitoral. Parece que a introdução maciça das urnas eletrônicas, como se recuperasse (e pretensiosamente suplantasse) o invejoso encantamento que nos despertavam as velhas ?máquinas de votar? que os norte-americanos já usavam há muitas décadas, a ponto de hoje muitos se jactarem de ?estarmos à frente das democracias do mundo?, por termos um inédito ?eleitorado digital? de 115 milhões de almas, tem servido apenas para escamotear um despreparo gritante na interpretação da lei e no exercício jurisdicional, até por parte dos integrantes da magistratura com maior capacidade de reflexão jurídica.

A rapidez na apuração das votações, graças à informatização, tem sido considerada a grande maravilha da Justiça Eleitoral cabocla, como se horas ou dias a menos, usados nas totalizações de votos, tivessem, por si, o poder de aumentar o grau de confiança e lisura de todo o processo eleitoral.

Deixem-se de lado, por enquanto, preocupações que vão em sentido exatamente oposto, ou seja: os grandes riscos que envolvem um processo capaz de ser fraudado pelas técnicas mais aperfeiçoadas de banditismo virtual, seja pela participação dos diabólicos hackers, seja pela introdução de deletérios vírus no sistema – o que poderia ter efeitos realmente catastróficos e seria um risco suficiente para deixar de compensar quaisquer ganhos de tempo nas apurações ou investimentos na informatização do sistema. Mais preocupante é o fato de as urnas eletrônicas darem uma falsa impressão de qualidade da Justiça Eleitoral brasileira, da qual se pode dizer que, ao contrário do que ocorre com outros ramos do Judiciário, competência técnica não é regra, mas exceção.

É verdade que duas décadas de ditadura militar já foram suficientes para sustar qualquer aprofundamento de reflexão jurídica em torno de eleições, em termos doutrinários, acadêmicos (quantas teses eleitorais foram defendidas na universidade, nesse período?) ou jurisdicionais, e que, em parte decorrente disso, nossa legislação eleitoral tem suas confusões, ambigüidades e dificuldades de cumprimento. Só que isso deveria estimular mais o estudo interpretativo da mens legis, e não a adoção, pura e simples – como tantos juízes eleitorais costumam fazer – de uma espécie de justiça intuitiva, pela qual as ações de candidatos, partidos e demais envolvidos no processo eleitoral podem ser permitidas ou proibidas segundo o magistrado acha ser certo ou errado, não precisando de fundamentação legal, mas sim de intuição pessoal, para esse achismo. E é claro que tal tendência só pode resultar na situação em que a Justiça Eleitoral reproduz o velho ditado sobre quem ?engole um boi e se engasga com um mosquito?, pois, enquanto proíbe pequenas liberdades, permite grandes e deslavados abusos.

Bem ilustra essa perversa contradição um dos maiores abusos praticados contra a Lei Eleitoral – que neste ponto é absolutamente clara e inequívoca -, ao utilizar-se o horário gratuito na televisão, exclusivamente destinado à propaganda dos partidos políticos, para o ?lançamento? e a divulgação (exclusiva) de candidaturas presidenciais. Quando o PFL precipitou, desastradamente, o processo sucessório presidencial – repetindo o que Collor já fizera -, aproveitando seu horário partidário para praticar a aventura do lançamento da candidatura presidencial da então governadora maranhense Roseana Sarney, não só prejudicou muito a candidata e seu partido – como depois se comprovou – e o governo de Fernando Henrique Cardoso (talvez tentando torná-lo um ?pato manco?, como dizem os norte-americanos dos governos que perdem todo o poder no peróodo final do mandato), mas, sobretudo, toda a racionalidade do processo, em termos da aglutinação de forças políticas governistas ou oposicionistas. E não se diga que a confusão política que depois se estabeleceu, com a desmoralização doutrinária completa dos partidos políticos e o samba do crioulo doido em que se transformaram as alianças partidárias, se deve, exclusivamente, aos ressentimentos e rancores oligárquicos (do tipo Sarney, ACM, Bornhausen) ou neo-oligárquicos (do tipo Jereissati), pois a leniência da Justiça Eleitoral, ao tolerar um escandaloso desrespeito à legislação vigente – cometido por todos os principais partidos, é bom lembrar -, foi a razão fundamental dessa barafunda desnorteadora do eleitorado brasileiro.

Poderão dizer: mas a Justiça Eleitoral (como as demais) só funciona mediante provocação. Será mesmo? Tem ela necessitado de provocação para estabelecer a férrea censura (clamorosamente inconstitucional, como é toda a censura prévia praticada no Brasil) nos veículos de comunicação eletrônica de massa (rádio e TV), nos períodos pré-eleitorais, impedindo assim a liberdade crítica e o direito à informação, política, eleitoral ou de qualquer natureza, que a Constituição assegura a todos os cidadãos brasileiros?

Agora, ao proibir, por decisão liminar, a simples reprodução da imagem e do som da fala – sem nenhuma sombra de montagem – de um dos candidatos (Ciro Gomes), quando este chamava, literalmente, de ?burro? o ouvinte de uma rádio baiana para qual dava entrevista, a Justiça Eleitoral brasileira ultrapassou os limites do despreparo e incorreu em sério comprometimento. Ela aí optou pela falta de transparência do processo eleitoral, na medida em que proibiu a transmissão, para o telespectador – e para o juízo do eleitor -, de um fato real, indesmentível, e de uma informação de máximo interesse público, que jamais poderia ter sido sonegada ao eleitorado, porque diz respeito a uma característica explícita e notória do temperamento e da personalidade de quem pretende ser presidente da República. É uma descabida pretensão a Justiça Eleitoral achar que ?eleva o nível? do debate eleitoral, impedindo os competidores de mostrar ao eleitorado fatos e atitudes reais – mesmo feias e desagradáveis – de seus adversários. Ao contrário, ela retira do eleitor, de maneira arbitrária e antidemocrática, elementos essenciais para a formação de sua convicção – tais como são, por exemplo, as imagens diretas do grau de equilíbrio emocional dos candidatos.

Diga-se agora: quem responderá, perante as futuras gerações, pelos eventuais estragos institucionais causados pela despreparada Justiça Eleitoral brasileira? (Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor e produtor cultural E-mail: mauro.chaves@attglobal.net)"

 

"Independência e solidão", copyright Folha de S. Paulo, 25/08/02

"É dura a vida de jornais e de jornalistas que tentam ser independentes. Ninguém acredita.

Anos atrás, um bom amigo meu, que me conhece o suficiente para saber que não tenho carteirinha de partido nenhum nem sou fã incondicional de candidato nenhum (então como agora), já dizia: ?Como a Folha não tem candidato, se todos têm??.

Eleição após eleição, a história se repete. ?Tucanos? acham a Folha petista, rótulo que estendem, inexoravelmente, a quem põe a cara para bater assinando textos no jornal.

Petistas dizem, ao contrário, que a Folha está com José Serra. Ciro Gomes acusou o jornal de governismo na sabatina da semana passada.

Anthony Garotinho conseguiu a mágica de acreditar que a Folha apóia a um só tempo José Serra e Lula, sem levar em conta que o campeonato eleitoral só permite um ganhador, o que significa que, ou se apóia Lula para derrotar Serra, ou se apóia Serra para derrotar Lula, ou se corre o risco de perder com ambos.

Mas o mais grave nessa batalha pela independência nem é a incompreensão. É a solidão. Hoje por hoje, até que o restante da mídia soltou razoavelmente suas amarras. Problemas ainda existem, às vezes graves, mas nada que se compare às canalhices praticadas, por exemplo, na campanha de 1989.

A solidão se dá em relação aos analistas, aos acadêmicos. É quase impossível conseguir conversar com algum especialista sem temer que suas opiniões estejam enviesadas por preferências eleitorais ou, pior, por preconceitos contra um candidato.

Nos Estados Unidos, o Serviço de Pesquisa do Congresso produz magníficos dossiês sobre os mais diferentes temas, internos e externos, com uma linha inviolável (sob pena de demissão): não pode ter viés pró-republicano ou pró-democrata.

Ajudaria muito o próprio candidato se pudesse ter a segurança de que palpites externos dizem respeito à realidade, não à preferência (ou preconceito) eleitoral do analista."