Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Tesoura togada ataca outra vez

GUGU, CRIME & CASTIGO

Alberto Dines

Como sempre, a emenda saiu pior do que o soneto. As duas decisões da Justiça paulista proibindo a exibição do programa Domingo Legal no último domingo (21/9) revelam o furor censório e a comichão autoritária que domina grande parte da magistratura brasileira.

Errou a juíza Leila Paiva, da 10? Vara Cível e errou a presidente do Tribunal Regional de São Paulo, Anna Maria Pimentel, ao imporem uma penalidade antecipada. Isto é o delírio: o réu só pode ser punido pelas infrações cometidas e não por aquelas que eventualmente cometerá.

A multa de R$ 1,5 milhão proposta pelo Ministério Público, embora insuficiente, é correta. A emissora e o produtor do programa devem pagar pelos prejuízos que causaram com o programa exibido em 7/9. Também devem ser acionados pelo incitamento ao crime e porte ilegal de armas. Deixarão de ser primários, novo deslize será considerado reincidência. A ameaça de cassação da concessão aventada pelos ministérios da Justiça e das Comunicações é apropriada. Devidamente enquadrados, os barões da mídia interrompem o circuito de descalabros.

As meritíssimas esqueceram que lidavam com matéria constitucional e que a liberdade de expressão sobrepõe-se às demais. Foi esse o entendimento do STF, na quarta-feira passada [17/9/03] no caso do editor nazista Ellwanger. Por ampla maioria (8 a 3) a suprema corte decidiu não impedir a circulação dos livros que editava e apenas considerou o seu teor ? anti-semitismo é manifestação racista, portanto crime. Ficou garantida a liberdade de expressão e garantiu-se à sociedade que os beneficiados pela liberdade devem ser responsabilizados pelo que expressam [veja abaixo remissões a matérias do OI que trataram do caso].

As aberrações do Caso Gugu não se limitam às decisões das preclaras juízas. Um gigantesco encadeamento de erros mostra que Gugu Liberato não é o único vilão desta história:

** A mídia impressa, instância fiscalizadora natural da mídia eletrônica, há muito abdicou de sua missão. É rigorosamente complacente. Mais do que isso: incentiva este tipo de baixaria quando trata de proclamar quedas de audiência da TV Globo. Nos últimos seis anos, Gugu foi capa de Veja duas vezes: em 29/10/97 (“Gugu ameaça a Globo”) e, mais recentemente, em 25/4/2001 (“O domingão é dele”). Ademais, é mencionado em outras cinco capas ? em 12/6/96, 18/9/96, 4/11/98, 15/9/99 e 16/8/00. O semanário da Abril é aqui mencionado apenas porque inaugurou no sítio <www.veja.com.br> um serviço de rastreamento de suas capas; outros semanários têm sido até mais solidários com a baixaria televisiva.

** Os detratores comportaram-se no mesmo nível do Gugu quando, na ânsia de desmascarar a fraude, apelaram para o argumento de que “bandido bom” não se portariam como os falsos bandidos apresentados no programa.

** O SBT agiu de forma vergonhosa. Fingiu que não era com ele quando todos sabem que a responsabilidade final é da emissora que leva o programa ao ar. Ela é a concessionária de um serviço público ? ainda que, no caso do Domingo Legal, se trate de “produção independente”. Ao invés de ignorar o assunto no domingo seguinte, 14/9, o SBT e o seu principal animador, Sílvio Santos, deveriam apresentar desculpas formais e explícitas ao público. Por falta de decoro e por irresponsabilidade social. Seria o mínimo que poderiam fazer. O ridículo arrependimento de Gugu num programa igualmente “independente” (Hebe Camargo, 15/9) é ainda mais imoral.

** As entidades corporativas (Abert e Abratel) demonstraram um alheamento prenhe de cumplicidades. São responsáveis pela consagração da baixaria na medida em que vêm se recusando a firmar um protocolo de auto-regulação e têm driblado os esforços de sucessivos governos para mudar a classificação etária e os horários de exibição da programação televisiva.

Censura não é solução. Censura é apelação autoritária. Nostalgia do chumbo.