Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Testemunha e vítima do terror

JORNALISTAS NO IRAQUE

A Editor & Publisher [15/9/03] reproduziu o depoimento de John F. Burns, correspondente do New York Times em Bagdá que cobriu a guerra e ainda está lá, presente em trecho do livro Embedded: The Media at War in Iraq, an Oral History (“Embedded: A Mídia em Guerra no Iraque, uma História Oral”, tradução literal não-oficial), de Bill Katovsky e Timothy Carlson, publicado na semana passada pela Lyons Press.

“Do ponto de vista de minha presença em Bagdá, tinha mais autoridade que qualquer outra pessoa. Sem dúvida, eu era o mais vigiado e menos querido de todos os correspondentes por causa do que escrevi sobre o terror enquanto Saddam Hussein ainda estava no poder”, contou Burns.

“Terror, estados totalitários e seus métodos não são novidade para mim”, disse. Burns afirmou que as verdades essenciais do Iraque não eram reportadas pelos correspondentes. “Por quê? Porque eles presumiram que a única maneira de continuar aqui era fingindo que estava tudo bem.”

“Havia correspondentes que achavam certo buscar a aprovação de pessoas que administravam suas vidas, ou seja, o Ministério da Informação, mais especificamente o diretor do Ministério”, escreveu. “Levavam-no para jantares finos e longos, bajulavam-no com bolos e telefones celulares de US$ 600 para cada membro de sua família e subornavam-no com milhares de dólares. Funcionários seniores desse Ministério receberam centenas de milhares de dólares de suborno desses correspondentes de TV que se comportavam como se estivessem na Bélgica. Nunca mencionaram a função dos inspetores. Nunca mencionaram o terror.”

Burns disse que um jornalista chegou a imprimir cópias de seu artigo e dos de outras pessoas para mostrar a diferença. “Ele queria mostrar como era um bom garoto comparado a este inimigo de Estado. Ele era de um grande jornal americano.”

A atuação da imprensa foi terrível. Burns chegou a afirmar que “o artigo de opinião de Eason Jordan, da CNN, para o New York Times ignorou totalmente essa questão”. “A questão não é se protegemos as pessoas que trabalham conosco ao não revelar as coisas terríveis que eles nos contam. É claro que protegemos. Mas as pessoas que trabalham para nós são apenas 0,001% da população do Iraque. Então, por que não contar a história dos outros iraquianos?”

Burns disse que em fevereiro negaram-lhe um visto, mesmo havendo uma porção deles à disposição. “Alguns de meus concorrentes que omitiram que o Iraque é um governo de terror estavam ocupados aqui, puxando saco. Estavam muito satisfeitos consigo. Eram essas pessoas que afirmavam que era fundamental estar no Iraque para cobrir a guerra.”

No final das contas, Burns conseguiu seu visto. “Achei que seria despejado imediatamente. Cheguei apenas duas semanas antes da guerra. Eles me autorizaram. Levaram meu passaporte por cinco dias até um homem dito vice-diretor do Mukhabarat aparecer ? um tal de Sa?ad Mutana. Ele seria meu inspetor [“minder”, em inglês]. Era um homem extremamente desagradável”. A essa altura, uma dúzia de pessoas do Ministério da Informação já tinham dito a Burns para “cair fora”. “Disseram que ele era um oficial sênior. Ele se apresentou como ex-general. A razão por terem me mantido aqui era para, quando a guerra começasse, poderem me fazer de refém.”

Burns resolveu ficar. “Na noite de 1o de abril, eles vieram a meu quarto neste hotel e disseram ?você está preso. Sabemos que você é um agente da CIA. Você vai colaborar conosco agora ou será levado a um lugar de onde não voltará?. Roubaram todo meu equipamento. Roubaram todo o meu dinheiro.”

Os homens foram embora, dizendo para Burns não sair do quarto. Naquele momento, o hotel não tinha energia elétrica. “Achei que tivessem deixado alguém de plantão do lado de fora do quarto. Saí no corredor escuro. Não havia ninguém lá, então saí pelas escadas”. Burns achou refúgio junto a uma colega, correspondente de televisão italiana e ex-comunista, cujo quarto não seria atacado porque ela havia se comportado bem até então.

Os resíduos dessa história, de acordo com Burns, geraram sérias lições que devem ser aprendidas. “Editores de grandes e pequenos jornais e de grandes emissoras de TV deveriam cobrar de seus repórteres a obrigação de dizer a verdade sobre esses lugares. Não é impossível dizer a verdade. Eu tenho uma convicção sobre sociedades fechadas de que elas s&atilatilde;o bem mais fáceis de cobrir do que parece, porque o fato de serem fechadas já é revelador. Toda mentira conta uma verdade. Se você deixar olhos e ouvidos abertos, será extremamente revelador.”

Jornalista no espelho

Burns ganhou um prêmio Pulitzer por sua coragem na cobertura do conflito em Sarajevo, mas não gosta de glamourizar o trabalho do jornalista. “Quando me contrataram, queriam alguém consciente e apaixonado por essas coisas. Acho que tirei certa vantagem disso, porque tenho 58 anos”, contou.

“Não acredito no jornalista como herói porque onde quer que vamos e qualquer que seja a nossa tarefa, sempre vai haver gente mais corajosa que nós. Eu viajo com roupa à prova de bala. Trabalho no New York Times. Isso significa que carrego o nome do jornal e o poder do governo americano. Sejamos honestos: se algo me atingir inesperadamente, tenho uma jaqueta blindada. Tenho uma carteira cheia de dólares. Estou aqui por escolha. Tenho o incentivo de estar na primeira página do Times e de ser indicado aos maiores prêmios jornalísticos.”

“As pessoas sobre quem escrevemos não têm nenhuma dessas vantagens. Estão presas aqui sem comida e dinheiro. Não quero ser radicalmente piedoso aqui, mas é totalmente fictício um jornalista se considerar um herói nessa situação.”

Assim, Burns encerra o depoimento dizendo que não quer se apresentar como algo desse gênero. “Para dizer a verdade, acho que essa ambição vangloriosa é parte do mesmo problema. É a corrida pelo poder. Reconhecimento. Fama. Há corrupção em nosso meio. Precisamos voltar ao básico. Essa guerra precisa ser estudada e discutida. Na corrida pela guerra, em minha opinião, houve grosseira abdicação de responsabilidade. É preciso estar preparado para ouvir sussurros.”