Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

The Washington Post quer nos pautar

ANTIAMERICANISMO

Cláudia Rodrigues (*)

Um texto no Washington Post, publicado coincidentemente no dia anterior à visita do presidente Fernando Henrique ao presidente George Bush, acusava a mídia brasileira de fomentar o sentimento antiamericano. Para defender tal tese, o texto trazia como exemplos os papelotes de cocaína apreendidos pela Polícia Federal com a imagem de Osama bin Laden, uma torcida em um jogo de futebol, que supostamente gritou o nome Osama, e acusações de que a esquerda brasileira, os comunistas, estariam crescendo em idéias antiamericanas.

Segundo o jornal, a imprensa brasileira estaria incentivando esse tipo de atitude ao dar muita ênfase aos bombardeios dos EUA ao Afeganistão.

Well, poderíamos reforçar a idéia de que os ataques com antraz são mesmo o lado mais cruel dessa guerra. Afinal, duas dúzias de pessoas já foram infectadas e houve menos de cinco mortes desde que os terríveis ataques químicos, feitos pelo terrorista e também mágico Osama bin Laden, resolveu se vingar dos bombardeios.

Para isso não precisávamos de enviados especiais ao Afeganistão, bastaria chupidescar todas as matérias da Veja e usar como fonte principal os jornais americanos. Parece ser isso o que sugere o Washington Post.

Também daria para continuar contando e recontando os mortos do WTC. Isso foi feito durante algumas semanas, mas não deu muito certo porque o pessoal se enredou nos números, as pessoas começaram a lembrar dos mortos em outros atentados e acabaram fazendo uma conta de dar inveja aos nazistas: a dos mortos de todas as guerras financiadas pelos EUA. Temos os argumentos, bons argumentos, de que não se deve matar civis por causas militares e políticas, mas aí já haviam começado os bombardeios em cima dos famintos do Afeganistão. Ficou difícil chorar ao lado dos americanos. Como defender alguém que reage a um ataque com um ataque imensuravelmente maior?

Seria como dizer ao filho de 4 anos: "Vai, filhinho, vai para a escola amanhã e massacra o amiguinho que te bateu ontem, deixa a cara dele roxa."

Também poderíamos, em solidariedade aos irmãos do norte, apelar para a divulgação em massa dos alimentos que eles despejam no Afeganistão. Mas a própria ONU implorou para que parassem de jogá-los porque estavam explodindo minas e matando mais gente. Além disso, bombardear e dar alimentos está mais para aquela cena do enforcado, quando ele tem o direito a um último desejo. Essa cena de filme foi uma das mais intrigantes da minha infância. Eu sempre achava ridículo ter direito a um último desejo se a pessoa iria morrer em seguida. E se o desejo fosse viajar, sair com a namorada a cavalo? Não era real aquela oferta de último desejo, era uma farsa. Do mesmo jeito que é uma farsa dar comida e bomba, bomba e comida, comida e bomba.

Até onde podemos analisar, por melhor que seja a vontade de estar com nossos irmãos do norte, apoiá-los nesse momento crucial de ameaça de crise do fundamentalismo capitalista, não está fácil, eles também não estão ajudando muito.

Quanto a noticiar os bombardeios e o número de civis mortos, quase sempre não-confirmados pelo Pentágono, segundo a imprensa brasileira, é o mínimo que se pode fazer. As cenas das bombas e das casas destroçadas causam a impressão de que o número de mortos é maior do que o divulgado, confirmado ou não pelo Pentágono. O que acontece é que não tem gente e nem tecnologia por lá para contar os que se foram e já foram enterrados e muito menos os que estão em hospitais que, aliás, já foram bombardeados também.

Mídia flutuante

Ao contrário do que afirma o Washington Post, a imprensa brasileira tem feito uma cobertura muito "cuidada" da guerra. Não há especulações sobre um possível número maior de vítimas do que o divulgado, mas tem havido grande especulação sobre os casos de antraz que acabam, em maioria, sendo desconfirmados depois de toda aquela encenação com roupas de astronauta.

O mesmo acontece em relação às armas nucleares. A última notícia veio do próprio Bush, que tenta causar alarme anunciando que o Iraque pode querer usar uma bomba nuclear.

Como vai usar?

É possível levar uma bomba nuclear até os EUA e jogá-la por lá?

A idéia de seqüestrar aviões e jogá-los contra os prédios já foi uma alternativa a isso.

Seria uma possibilidade que o senhor Husseim jogasse uma bomba nuclear em algum país vizinho ou em seu próprio país? Bem, se os Estados Unidos continuarem a bombardear o Afeganistão e partirem para cima do Iraque, na caçada aos neocomunistas, quero dizer, aos terroristas, é bem possível que alguém resolva finalmente fazer uma besteira maior.

Well, quanto ao pessoal do narcotráfico… Quem é mesmo o pessoal do narcotráfico?

Seriam os rapazes encarapuçados do morro, com suas carabinas? Para quem trabalham eles mesmo? Quem ganha muito com esses rapazes?

Começa-se a não entender mais essa guerra. Não é simples como o gato e o rato. A bem da verdade, falta o rato. Parece mais um gato tentando morder o próprio rabo. E, como não consegue, vai derrubando tudo o que está em volta. A culpa, então, não é do gato e nem do rato desaparecido, mas de tudo ao redor.

No meio dessa tramóia, flutua a imprensa brasileira tentando fazer o seu papel de dar a notícia à moda pirâmide invertida respondendo às famosas seis questões básicas: o que, quem, como, quando, onde e por que acontece.

Duas irmãs

Não dá nem para dizer que está cumprindo tão bem assim o seu papel. Cada vez mais vão escasseando os dados anteriores ao dessa guerra, que foi a guerra contra o comunismo. Guerra que os EUA venceram e depois deixaram de cumprir o que haviam prometido: um mundo democrático, com igualdade e prosperidade para todos. Assim falavam as vozes capitalistas logo após a queda do Muro de Berlim.

Não deu certo. O comunismo não deu certo, perdeu a guerra quando expôs suas feridas ao mundo. E o capitalismo também não deu certo, mas ainda assim insiste na guerra e em não reconhecer que também tem feridas.

E a imprensa brasileira, ao contrário do que afirma o Washington Post, está recheada de exemplos de vivas ao capitalismo, pró-americanos, portanto. Para checar isso basta abrir qualquer jornal de economia do país. Tem-se a nítida impressão de que tudo vai bem, que as fusões entre empresas dão ótimos resultados, as privatizações são caminhos tranqüilos em direção a um futuro próspero. É um tal de o seu negócio, o seu país, a sua conversa afiada com o seu amigo picareta que está falido mas continua especulando o dinheiro de todos. É a sua rentabilidade e os juros que nós pagamos, os nossos impostos e os seus ganhos em cima dos valores subjetivos daqueles roubos enormes que são revertidos para a miséria dos nossos salários que, além de baixos, podem não ser pagos sem que com isso nossos patrões sofram qualquer punição, ainda que sejamos despejados de nossas casas por não pagar o aluguel em decorrência do salário que não entrou.

Perdoem-me, fiquei confusa e acabei misturando capitalismo e terrorismo, unindo-os como se fossem uma coisa única. Imaginem que audácia, duas coisas tão diferentes!

Mas voltemos ao tema, as matérias favoráveis aos irmãos do norte, que andam ressentidos com nossa imprensa. Saiu uma sui generis no Estadão, falando da possível reconstrução do Buda de 50 metros destruído pelos talibãs. Enfim, nunca é tarde para lembrar que existem os mocinhos e os bandidos. Difícil mesmo é perceber as semelhanças entre os dois e ainda encontrar espaço para dar alguma voz aos índios no meio desse bangue-bangue sofisticado.

A imprensa brasileira pode ser acusada de tudo, menos de ter idéias comunistas ou ser de esquerda.

A imprensa brasileira, se não está colocada na reta da direita, está bem em cima do muro, no lugar eleito pelos próprios americanos como ideal para uma imprensa se colocar. E vale lembrar que esse lugar, em cima do muro, é chamado com nobreza e orgulho de posição imparcial.

A imparcialidade é a irmã gêmea da diplomacia. Elas odeiam esse pessoal emergente que vai para as ruas gritar que seu salário não dá para comprar nem comida. Essas pessoas, segundo as irmãs Imparcialidade e Diplomacia, não têm educação, elas são radicais, são sujas, não entendem que para bombardear algum lugar, matar pessoas, contratar agentes secretos e principalmente ter posse de armas químicas ou nucleares, é preciso arranjar coesão internacional primeiro. E depois de arranjar a coesão, continuando os bombardeios, não se pode baixar a guarda. Afinal, bombas são coisas sérias, devem ser usadas só por quem entende delas.

O que sobra é baderna?

Além disso, jogar aviões em cima de prédios, causando comoção internacional, é coisa de amadores. Bombardeio bem feito mesmo, além de contar com coesão internacional, diplomacia e com a imparcialidade da imprensa, deve durar anos, aniquilar diariamente, lentamente. Deve acalmar os ânimos dos radicais matando-os também de fome e de miséria. Não deve, de jeito algum, ser um fogo de palha.

Vidas humanas? Religiões? Crenças? Raças?

Bem, o mundo está superpovoado e a ONU inclusive já divulgou, coincidentemente na semana passada, esse problema da superpopulação.

O que fazer se não continuar a campanha anticomunista, agora com o nome de antiterrorista, e depois ampliá-la até que sejam exterminados todos aqueles que não conseguem se dar bem no capitalismo?

A campanha tem sido um sucesso. Já se foram muitos povos indígenas, os sem-terra, repito, já-já viram terroristas, e também se pode incluir aí esse bando de desempregados e subempregados que não dão lucro, esse pessoalzinho verde que não entende nada de economia e fica lutando por comida sem agrotóxicos.

Talvez não sobre lá muita comida saudável no futuro do planeta, mas quem sabe os cientistas não conseguem desenvolver uma bactéria capaz de adaptar nosso estômago para ingestão de gases tóxicos, restos de mísseis, venenos…Ah, tem os remédios da Bayer! Na falta de comida podemos comer remédio mesmo. Cipro, pelo jeito, não vai faltar, segundo os jornais do mundo todo. Vitaminas sintéticas, água reaguada e carne humana ressecada, conservada pela neve que já anuncia chegada ao Afeganistão. Por que não?

Com diplomacia, bons argumentos comerciais, excelentes press releases, tudo pode ser visto com novos olhos. Desde que seja um olhar fundamentalmente capitalista, é claro.

O que sobrar é terrorismo, neocomunismo, antiamericanismo, guerrilha, baderna…

(*) Jornalista