Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ética na TV, o próximo capítulo

ENTREVISTA / ANA CRISTINA OLMOS

Fausto Rego (*)

[Publicado originalmente na Revista do Terceiro Setor <http://rets.rits.org.br/>, em 10/10/03]

Para uma entrevista que se propunha a falar sobre televisão, nada mais adequado do que fazê-la em capítulos. Assim foi a conversa com Ana Cristina Olmos, psicanalista especializada em criança e adolescência, presidente da organização não-governamental TVer e membro da Comissão de Acompanhamento da Programação de Rádio e Televisão da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal. Ao longo da semana, nos intervalos entre uma sessão e outra com seus pequenos clientes ("as minhas crianças", dizia), ela falou sobre a polêmica em torno da recente suspensão do programa Domingo Legal, apresentado por Gugu Liberato, no SBT. A punição decorreu da exibição de uma entrevista forjada com dois supostos criminosos que faziam ameaças a várias personalidades. Iniciou-se, a partir daí, um debate público sobre a suposta arbitrariedade do Ministério Público nesse caso. Para Ana Olmos, a medida foi justa e não há por que falar em censura. "Não se trata de não poder falar de um assunto determinado ou levar uma determinada pessoa a um programa. Essa punição veio até atrasada, porque o programa passou de qualquer limite", afirma.

Um projeto de lei (o PL 1.600/03, do deputado federal Orlando Fantazzini, do PT-SP) tramita no Congresso Nacional, propondo um código de ética para as emissoras de televisão. O texto estabelece a criação de uma comissão nacional de ética de caráter multiprofissional, formada por membros da Ordem dos Advogados do Brasil, dos ministérios das Comunicações e da Justiça, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, da Federação Nacional dos Jornalistas e de entidades civis de luta contra o racismo, além de representantes de outras organizações e das próprias emissoras. Ana defende o projeto e não acredita na viabilidade do modelo de auto-regulamentação. "É como dar a chave do galinheiro para a raposa", diz.

Embora tenha uma série de críticas à influência negativa de parte do conteúdo exibido na telinha sobre as crianças e os adolescentes, Ana Olmos faz questão de dizer que gosta muito de televisão. E revela, com bom humor, essa preocupação: "Você poderia até começar a entrevista dizendo isso: que eu adoro TV e acho que ela tem possibilidades educacionais enormes".

Pronto, Ana. Está feito.

Impedir a exibição do programa Domingo Legal foi uma decisão autoritária ou uma punição justa?

Ana Cristina Olmos ? No meu ponto de vista, não foi uma censura. O que tem acontecido é que outras punições já foram tentadas. Nós mesmos já entramos em contato com o Ministério Público porque o programa do Ratinho tinha apresentado o caso de uma troca de bebês em uma maternidade. Um dos pais achou que o filho não era dele e o programa mandou fazer o exame de DNA. E eles fizeram uma coisa do tipo "mostra ou não mostra o resultado?". E foi impressionante a situação a que aquelas crianças foram submetidas. Uma tremia, a outra chorava, eram crianças de 10, 11 anos. Quem estava apresentando o programa nesse dia era o Ney Gonçalves Dias. E o tratamento foi de "vai ter que trocar de pai, não tem jeito".

A gente entrou em contato com o Ministério Público e o resultado só saiu três anos depois. Foi uma multa de alguns salários mínimos. Então, se é uma coisa irrisória, se não tem uma conseqüência significativa, é quase um prêmio para a emissora. Para eles tanto faz exibir qualquer coisa, pois as penas são pequenas.

Agora, no caso do Domingo Legal, não foi assim. Eles até poderiam ter exibido o programa, desde que pagassem uma multa de valor altíssimo. O que acontece é que precisamos de um Código de Ética, como existe nos países da Europa. O PL 1.600/03 tenta agora implantar isso. Ele prevê sanções que incluem a suspensão do programa, mas também obrigam a emissora a pôr a mão no bolso.

É tão grave e tão séria a questão da proteção à infância e à adolescência nos códigos de ética europeus que, por exemplo, na Suécia, as propagandas de brinquedos e produtos para crianças só podem ser exibidas à noite. Porque elas não devem ser voltadas para a criança, mas sim para os pais, que vão decidir se devem ou não comprar.

Muita gente se manifestou contra a suspensão do programa, alegando que teria havido "presunção de crime".

A.C.O. ? Esse argumento é a nova farsa das empresas. Não se pode dizer que houve censura nesse caso. O texto da nota que o Ministério Público divulgou para a imprensa diz exatamente isso: que não há intenção de censurar previamente o programa, mas sim punir a emissora pela exibição do programa do dia 7 de setembro. O SBT tentou iniciar um movimento para classificar o que aconteceu como censura prévia. Para quem viveu realmente o período da censura, durante a ditadura… chega a ser má fé dizer que isso é censura. Por parte das empresas, é uma estratégia. Não se trata de não poder falar de um assunto determinado ou levar uma determinada pessoa a um programa. Essa punição veio até atrasada, porque o programa passou de qualquer limite. Se existisse uma legislação específica, um código de ética, seria diferente.

O Domingo Legal estava no ranking da campanha "Quem financia a baixaria é contra a cidadania", do movimento "Ética na TV", do qual a gente participa [a campanha divulga periodicamente um ranking dos programas de TV mais denunciados à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados]. Eles estavam enquadrados em critérios como exploração da miséria, discriminação de gênero, enfim, em vários itens. Isso aconteceu até mesmo nessa tarde em que expuseram as crianças e os adolescentes ao poder dos criminosos. E não importa se não eram de fato criminosos. O adolescente e a criança se alimentam de exemplos como modelos. No caso daquela gente fazendo ameaças e dizendo que ia matar, eles se identificam com o agressor ou com o agredido. No primeiro caso, com a lei do mais forte. No segundo, com o medo, dando a idéia de que não há solução porque não existe lei, o que estimula o uso da força, da violência e das ameaças. O próprio jornalista, durante aquela matéria, se dirige aos supostos criminosos de maneira séria e pergunta: "Vocês têm algum recado para os governantes, para as pessoas que fazem as leis?". E eles respondiam: "Aqui não tem lei".

Depois disso, os outros programas continuaram na mesma pauta, não mudaram. Alguns chegaram até a nos convidar a participar de debates sobre o assunto. Para todos eles, nossa resposta foi: não participamos de programas de baixaria. O Marcelo Rezende [apresentador do programa Repórter Cidadão, da RedeTV] chegou a entrevistar por telefone um criminoso do PCC [a facção criminosa paulista conhecida como Primeiro Comando da Capital], ao lado do seu advogado.

A base de tudo isso é a ganância. Perdeu-se todo o respeito pelo público, pela concessão pública de televisão. O concessionário se vê como dono, acha que o telespectador é um consumidor. Só que o consumidor tem um código de defesa e o telespectador não tem nenhum instrumento que o proteja, que defenda a criança e o adolescente de conteúdos [hesita em dizer a palavra] inadequados. Eu tomo muito cuidado ao pronunciar esta palavra porque não se trata de fazer censura. Se você passa uma cena de estupro às cinco da tarde, mesmo que numa chamada para um programa que vá ser exibido às onze e meia da noite, a criança ainda não está pronta para metabolizar uma coisa dessas.

Outro argumento que se costuma usar é: "mas vocês não querem que mostre violência na TV?". Pode mostrar, sim, mas o problema é como isso vai ser tratado. Veja, por exemplo, o filme "Cidade de Deus", que mostra o mesmo tipo de situação, mas coloca dentro de um contexto, explica por que ocorreu, não fala em nome de um "poder".

O PL 1.600/03, que institui um código de ética para a programação televisiva é uma proposta boa? No dia 1? de outubro houve uma reunião na Câmara para discutir o texto.

A.C.O. ? Houve uma audiência pública, mas puseram muitas pessoas na mesa. O resultado foi que, em vez de ser uma discussão da qual todo mundo pudesse participar, ficou uma colcha de retalhos. Tanto que está sendo marcado para o início de novembro um seminário em que a gente espera que se consiga avançar um pouco mais. Nessa audiência pública, os empresários de comunicação estavam meio reticentes, pois ela estava sendo gravada e transmitida pela TV Câmara. Porque o que eles falam a portas fechadas é diferente do que falam em público. Por isso a nossa política, agora, é que tudo seja gravado. Mas infelizmente, no dia 1?, não foi possível aprovar nada.

Vocês já tiveram algum encontro com o ministro da Justiça?

A.C.O. ? Nós fazemos reuniões da campanha "Quem financia a baixaria é contra a cidadania" mensalmente, por videoconferência. Vários estados já participam, o Rio participou agora pela primeira vez e a nossa expectativa é de que fique cada vez maior. É um encontro aberto, a imprensa comparece, qualquer pessoa pode ir. Na última reunião, mandamos um convite especial ao ministro Thomaz Bastos, porque lemos em um jornal a notícia de que ele teria proposto a auto-regulamentação pelas emissoras de TV. Ele enviou a secretária de Justiça, Cláudia Chagas, que soubemos depois que é filha do jornalista Carlos Chagas. E eu disse a ela que a minha preocupação era muito menos com sexo ou com desenhos animados e muito mais com o jornalismo, com a maneira como as empresas acabam pautando os seus jornalistas. O que me preocupa é a formação de atitudes, é que o jornalismo seja livre e com princípios de cidadania e valores. E ela disse que tinha vivido dentro de casa questões semelhantes. Nós a convidamos a estar com a gente em todas as reuniões, até para levar ao Ministério as nossas preocupações, e ela demonstrou interesse.

Ela nos garantiu que houve um mal-entendido sobre a declaração do ministro, que ele não havia proposto a auto-regulamentação. E todos nós destacamos como era importante que não pairasse qualquer dúvida sobre a notícia, que até se pedisse direito de resposta, pois a notícia dizia: "o ministro vai impor a auto-regulamentação".

Sempre se falou muito que o Conar (Conselho Nacional de Auto-regulamentação, órgão normativo da publicidade) seria um modelo a seguir. Você acha que não funcionaria?

A.C.O. ? Os concessionários de canais de televisão falam, hoje, em auto-regulamentação. Mas já não acreditamos mais que seja possível, sem sanções externas, enquadrar os infratores do ponto de vista da responsabilização social. Achamos que é como dar a chave do galinheiro para a raposa.

Vamos pensar em propaganda de cigarros e álcool: dentro do Conar, há critérios duvidosos. Dependendo do teor alcoólico, um comercial pode passar na TV em determinada hora. Mas qual é o impacto social e na saúde pública de um estímulo tão precoce ao consumo de bebida alcoólica? O truque que as fábricas de bebida conseguiram foi colocar a cerveja dentro de um horário em que o público infantil está assistindo. Não há responsabilização social. O uso do álcool é porta de entrada para as drogas e é legalizado.

Com as emissoras de TV ocorre algo parecido. O número de deputados que têm relação de algum tipo com emissoras de televisão é grande. E para você conseguir não renovar uma concessão é necessária uma votação nominal de dois quintos do Congresso. E, claro, com votação nominal, quem é que vai se atrever? Se a gente não conseguir mudar os critérios, não se consegue renovar nada.

Eu adoro televisão. Acho que ela tem possibilidades educacionais enormes, pode dar limites pedagógicos a partir de uma série de valores. A função pedagógica é imensa. E não estou falando de Telecurso… até poderia ser, se as TVs comunitárias retransmitissem o canal Futura, a TV Escola… A gente pensa em como a TV contribui quando mostra como lavar um alimento, incentiva a consumir alimentos orgânicos, realiza campanhas contra a dengue…

Mas e o espaço do jornalismo, do entretenimento?

A.C.O. ? Há espaço para tudo. Outro dia, vi uma cena na televisão que mostrava a visita da caravana de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados a uma aldeia indígena. E eu fiquei vendo aqueles índios conversando de igual pra igual, eles que normalmente são tratados como cidadãos de segunda categoria.

Uma criança que vê, desde pequena, notícias dessa natureza dificilmente vai pôr fogo em um índio ou em um mendigo. Se ela desenvolve essa consciência, se está numa escola que usa os preceitos de Piaget [o psicólogo suíço Jean Piaget], ela tem uma visão mais solidária do mundo.

E eu acho que esse mesmo episódio da queima do índio tem de ser divulgado. Sou absolutamente a favor de noticiar a violência, senão isso acaba se repetindo. Tem que denunciar, tem que informar. O que me incomoda é um certo desdém com que os fatos são noticiados por emissoras "chapas-branca", e não estou me referindo à Radiobrás.

(*) Da redação da RETS ? Revista do Terceiro Setor