Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ética, técnicas, perigos e boas frases

JORNALISMO INVESTIGATIVO

Antônio Brasil (*)

Todos os encontros de jornalistas costumam ser repletos de boas idéias, muitas críticas e inúmeras frases de efeito. Algumas são boas; afinal, sabemos lidar com as palavras e as emoções; outras, nem tanto. Muitos anos de profissão nos tornam meio cínicos com quase tudo. Algumas dessas frases ou idéias não são novas ou criativas. Mas quase todas refletem a mais profunda angústia da profissão. Vive-se ao mesmo tempo em dois mundos: o dos conceitos, do nós "em tese", e o mundo real, do nós "na prática". Discute-se muito, avança-se o debate mas teme-se a ação. Evita-se sempre um confronto maior e aberto com os verdadeiros donos do mundo e da "verdade": os editores responsáveis e os empresários do setor.

O seminário internacional sobre jornalismo investigativo organizado pelo diretor do Centro Knight para o Jornalismo das Américas, o jornalista Rosental Calmon Alves, da Universidade do Texas, que ocorreu no sábado (31/8), no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro, ao reunir editores e repórteres, jovens e veteranos, sem dúvida avançou na discussão. De altíssimo nível, diga-se de passagem. Contou com a presença de palestrantes importantes como David Kaplan, da Associação Repórteres e Editores de Investigação, Frank Smyth, do Comitê de Proteção de Jornalistas de Nova York, Gerardo Reyes, colombiano do Miami Herald, Gustavo Corriti, peruano, repórter investigativo premiado por reportagens sobre o Sendero Luminoso, e diversos jornalistas brasileiros especialmente convidados para discutir a crise na imprensa no Brasil e em outros países, como Estados Unidos, Colômbia e Peru.

O mundo vive momentos difíceis. As emoções estão à flor da pele e as frases proferidas no seminário traduzem essa situação. "Que haja mais Tim Lopes!" (sic); "Ele foi o nosso 11 de setembro. Mudou tudo."

Mudou mesmo? Tenho minhas dúvidas. A realidade das redações contraria as boas frases. Falar sobre câmeras ocultas e sua banalização, por exemplo, ainda causa constrangimento aos donos da televisão brasileira. O meio sempre sofreu de um certo "complexo de inferioridade" em relação ao jornalismo impresso, principalmente no prestigioso campo da investigação jornalística. Os equipamentos e as equipes de TV não são discretos, nem costumam se dedicar muito a suas matérias. Câmeras ocultas, ao contrário, vieram para resolver todos os problemas. Podem ser perigosas, mas seus defensores e o Ibope insistem em que valem a pena.

Pressões do perigo e do patrão

Outras "tiradas" maravilhosas: "Imagine investigar um grupo maoísta radical, com o nome de ?Caminho Luminoso?, num país latino-americano com presidente japonês?" Ou referências ao jornalismo de "mentiras", com histórias bizarras publicadas sem qualquer pudor ou um mínimo de investigação pelos tablóides de diversos países. Todos demos boas risadas com os exemplos. Mas também foi lembrado que "sonegação de informações públicas por nossos governantes deveria nos causar tanto espanto quanto essas mentiras". Sem dúvida, foi um dos melhores momentos de descontração e reflexão do encontro de jornalistas.

Apesar de tudo, o que tem ficado claro nos últimos tempos, pela profusão de seminários como esse, é que, apesar de todas a dificuldades, estamos todos mobilizados, ou pelo menos sensibilizados. Certamente ainda não sabemos muito bem o que fazer. Os mundos das idéias e das práticas profissionais se contradizem no dia-a-dia das redações, de uma realidade cruel de desemprego e de uma crise econômica que se aprofunda. Coisas simples e, aparentemente, óbvias, como a necessidade de um código de princípios éticos, básico, comum a todas as empresas, não obtém consenso de nossos profissionais. "Isso não vai dar certo. O que não for incluído nesse código poderá sempre ser considerado permitido." Muito bem. Então, devemos abolir a nossa Constituição de tantos retalhos e emendas ou os velhos códigos de justiça. O que não está incluído está automaticamente permitido! É sempre muito difícil ir além da mera discussão.

Mas ainda nos emocionamos com nossa profissão. Temos orgulho de nossa capacidade de indignação. Não perdemos a oportunidade da autocrítica. Algumas dessas "tiradas" irreverentes não pouparam sequer o objeto do encontro: "Não deveria haver jornalismo investigativo. Todo jornalismo ?deveria? ser necessariamente investigativo." Quanta sabedoria! Deveria, mas não é. A pressa, a falta de recursos, a irresponsabilidade profissional ou a necessidade de bater a competição a qualquer custo contrariam as boas intenções. Em verdade, para reafirmar a realidade, vale uma outra frase do jornalista colombiano Gerardo Reyes: "Jornalismo investigativo é só para quem não tem padrinhos… na redação". Outra frase cruel mas, infelizmente, representativa de nossa realidade.

Querem mais uma pérola? "No jornalismo americano não se paga por informações. Eu perderia meu emprego, seria demitido", disse um dos convidados estrangeiros. Mas, meio envergonhado, apressou-se em citar o recente caso da CNN, que pagou cerca de 50 mil dólares à organização terrorista al-Qaeda por vídeos com conteúdo supostamente "jornalístico". Nos EUA também se aplica a máxima universal da nossa profissão: "Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Principalmente se você quiser sobreviver num mercado jornalístico cada vez mais competitivo e menos coerente.

Mas nem só de frases vive um seminário. Também se divulgam "novas estratégias". A última, segundo representantes da Globo, seria não mais dar crédito ao cinegrafista em algumas matérias "sensacionais" por motivo de "segurança". Divulga-se muito essas matérias, e fatura-se muito também, em negócios milionários com TVs e agências internacionais, mas preserva-se a identidade do profissional para evitar retaliações perigosas. Incrível? Não. Uma categoria que luta há anos para "garantir" a necessidade e a obrigatoriedade de ter seu trabalho reconhecido rende-se às pressões do perigo e do patrão.

Competição e união

Mas num seminário com jornalistas não se perde viagem. E nem críticas: "É, então o próximo passo deve ser o repórter encapuzado!" Cria-se um novo jornalismo investigativo, anônimo, com matérias não-assinadas. Tudo pela segurança! E o reconhecimento profissional, as promoções e os prêmios? Ficam, provavelmente, para o editor ou para o dono da empresa. Claro, tudo se justifica. "Trata-se de uma medida temporária. Estamos em crise, temos que preservar a segurança pessoal do profissional. É do seu próprio interesse." Certo. Mas também deveríamos lembrar que, assim como na democracia, perder um direito é sempre muito fácil e justificável. Reconquistá-lo, ao contrário, é quase sempre impossível. Em momentos de crise, tanto aqui como nos EUA, abrir mão de direitos arduamente conquistados, por quaisquer motivos, é perigoso e sempre convém somente às boas intenções do patrão ou do presidente americano.

O que nos remete a outra "máxima" proferida durante o seminário, que pode não ser muito criativa mas é, sem dúvida, muito apropriada: "Viver é muito perigoso". Ninguém discutiu. O tema da segurança profissional tratou de caríssimos cursos no estrangeiro, despesas com segurança particular para alguns profissionais de TV e novas medidas sigilosas (sic) para garantir o futuro do jornalismo investigativo. Discutiu-se a necessidade de equipamentos especiais, seguros de saúde e mesmo seguro de vida para os jornalistas. Mas, na atual conjuntura, é difícil discutir ou garantir alguma segurança contra demissões sumárias, cortes cada vez maiores nos orçamentos ou aumento nas margens de lucro das empresas, principalmente na presença de tantos "chefes". Isto, sim, é muito arriscado!

Deveríamos relembrar que os principais temas desse debate sobre jornalismo investigativo, a velha ética e as novas técnicas, jamais eliminarão as "angústias" e os "perigos" da nossa profissão. Mas, certamente, podem nos garantir um sentido mais claro ou uma razão mais justificável para enfrentar esses problemas inevitáveis. Em tempos de crise, o jornalismo investigativo, que deveria sempre incomodar e "contrariar" interesses insiste em, pelo menos, manter o bom-humor e sobreviver. Mas jamais considerar que deve continuar, sempre, a qualquer custo. Ou, o que seria pior, perder seus principais objetivos de responsabilidade social e de solidariedade profissional: "Competir no cotidiano mas unir-se diante do perigo."

(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de TV e professor de Telejornalismo na Uerj e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ