Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Todo o Brasil em São Gonçalo

CÂMERA OCULTA

Nelson Hoineff (*)

O que acontece no gabinete de um subsecretário municipal em São Gonçalo (RJ) não é muito diferente do que ocorre em mais de 5 mil municípios pelo país. O Brasil inteiro sabe disso ? de ouvir falar. Ver é diferente. Não porque imagens valham necessariamente mais do que palavras. Mas por uma questão estritamente semântica. Denúncias dessa natureza só ganham corpo quando acompanhadas por confissões. E confissões, quando precedem a própria acusação, só podem acontecer de duas maneiras: pelo arrependimento seguido de um profundo sentimento de culpa do criminoso, ou por sua exposição involuntária a instrumentos de captação de som e imagem durante o ato do crime.

Quando isso acontece, é só a televisão ? e nenhum outro meio ? que pode revelar o crime em amplitude. A irredutibilidade a outros veículos é um dos instrumentos mais popularmente utilizados para se avaliar a qualidade do conteúdo. No caso de matérias jornalísticas que se valham do recurso da câmera oculta, há vários outros instrumentos de avaliação ? de caráter ético sobretudo. Há quem acredite ? entre eles o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello ? que ao se fazer passar por outra pessoa o repórter pode incidir em crime de falsidade ideológica. Mas a questão extrapola naturalmente leituras técnicas do texto legal.

O que a matéria do repórter Eduardo Faustini, veiculada pelo Fantástico (domingo, 21/4), mostrou foi uma visão multifacetada do Brasil e da sua televisão: o crime ? ou a sucessão de crimes ? em si; a prefeitura de São Gonçalo como um microcosmo do país inteiro; e jornalismo televisivo de alta qualidade.

É difícil negar o crescimento da qualidade do telejornalismo brasileiro nos últimos anos ? sobretudo, quem diria, por intermédio da TV Globo, que há pouco tempo oferecia tão pouco de bom jornalismo e tanta empulhação em seu lugar. E é sintomático o fato de quase todas as matérias capazes de exemplificar esse crescimento valham-se do recurso da câmera oculta (a série sobre o "Feirão das drogas" conquistou recentemente o Prêmio Esso), mesmo que em alguns casos as imagens sejam colhidas por jornalistas amadores e até mesmo (como no caso da corrupção de delegados de polícia) pelo próprio poder público.

TV e mídia impressa

A mesma câmera oculta que pode servir para grosseiros atentados contra a privacidade (e, sobretudo, contra a capacidade de discernimento do espectador) produz denúncias que ficariam sem qualquer comprovação em caso contrário, estimulando o público a acreditar apenas no que "ouve falar" ? quando a corrupção sistemática de homens públicos pode confundir-se com histórias de lobisomens e discos voadores.

Matérias como a de Eduardo Faustini lembram que o telejornalismo brasileiro tem crescido a taxas seguramente superiores às da mídia impressa (até porque, de novo, só havia espaço para crescer). A memória do homem é curta e a do telespectador, muito mais. Reportagens investigativas, matérias que confrontassem diretamente qualquer dos poderes seriam impensáveis na televisão, não apenas nos anos da ditadura militar: também antes e sobretudo depois dela. A desoficialização da televisão é fato muito recente ? e o observador da mídia não está desatento a isso.

No ambiente mesquinho, pobre de idéias e cristalizadamente servilista em que vive a televisão brasileira, o crescimento de uma vertente de jornalismo corajosa e lingüisticamente própria ao veículo relembra, na pior das hipóteses, o espaço que o meio tem para acompanhar adequadamente as grandes questões brasileiras. Não se deve esquecer que, quando a utilização da câmera oculta começou a se generalizar na televisão, ela se concentrava nos pequenos crimes, nas matérias policiais, na denúncia do mais fraco. Já em 1991, o próprio Faustini, a bordo do Documento Especial, visitava com uma câmera oculta os gabinetes de senadores e deputados em Brasília para comprovar que as secretárias morriam de rir quando alguém procurava por eles numa sexta-feira.

De lá para cá, o jornalismo televisivo no país amesquinhou-se por um lado, mas agigantou-se por outro. Na Globo, já passou quase a fazer parte da rotina a veiculação de matérias essencialmente televisivas bem menos comprometidas com o poder político e econômico. Pode não ser muito, mas já é alguma coisa.

É por matérias como a dos corruptos de São Gonçalo que o público já começa a ver a televisão como uma instância tão forte quanto a mídia impressa na vigilância da sociedade. A televisão aberta já não é mais povoada apenas pelos trogloditas dos reality shows; ela exerce também um papel que parecia óbvio, mas que por muito tempo a sociedade não esperava que ela fosse aceitar.

(*) Jornalista e diretor de TV