Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Todos "dominados"

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HORÁRIO NOBRE

Ivan Yazbeck (*)

"Tá dominado! Tá tudo dominado!". Confesso que me arrepio de medo e revolta cada vez que ouço o assustador grito de guerra sendo despejado da tela da TV Globo para dentro de minha casa e de meus ouvidos. Aprendi o significado da expressão na redação dos jornais onde trabalhei nos últimos anos (O Dia, A Notícia e Extra), com a responsabilidade de fazer valer o equilíbrio entre a informação e o visual do jornal. Como editor de Arte cabia-me comandar a feitura dos infográficos, o que significa conhecer a fundo a notícia para ilustrar e resumir o principal com informações telegráficas, de forma ilustrativa e atraente.

Daí que os infos mais encomendados eram justamente para ilustrar as matérias sobre os conflitos rotineiros entre quadrilhas de traficantes equipados com o que há de mais moderno em armamentos, que se enfrentam na ocupação dos espaços por onde começa e se espalha o comércio das drogas no Rio de Janeiro. Eram, em 1999, 192 pontos, geralmente dentro das favelas, segundo informações da Secretaria de Segurança Pública, detalhados num calhamaço contendo a localização de cada "boca", o nome do chefe da área, o número de homens sob seu comando, a quantidade e os tipos de armas. O balanço fornecia outros números impressionantes sobre o comércio de drogas no Rio, que mobilizava na época perto de 5 mil pessoas. O fantástico movimento financeiro esbarra em meio bilhão de dólares por ano, pouco menos que o orçamento da TV Globo.

Um belo e promissor mercado, sempre crescente, com consumidores em todas as esferas sociais, dos mais miseráveis aos mais abastados, pedindo mais maconha e mais cocaína.

Certa vez, enquanto o repórter me passava as informações sobre a guerra do dia, fiquei sabendo que quando alguém declara que "tá tudo dominado" está informando o fim da batalha pela conquista do pedaço. Lembro que ainda brinquei com Carla Alcântara ? excelente infografista do Extra ? ao passar idéias gerais sobre o trabalho, de meia página, pedindo-lhe um "efeito sonoro" para destacar bem as palavras, que deveriam ser "ouvidas" pelos leitores ao abrirem a página, e não apenas lidas. Como Carla não foi capaz de tal milagre usei o bordão "Tá dominado!" como título principal.

Na hora do fechamento, a editora da página preferiu substituí-lo por outro mais óbvio: "Marcelinho PQD x Isaías do Borel" ou qualquer coisa assim. Foi quando o Extra deixou escapar a oportunidade de "furar" a "música" que pouco mais de um ano depois estouraria Brasil afora, via TV Globo.

De modo que dá para se imaginar a perplexidade que me paralisou ao ouvir o tal grito de guerra, berrado da garganta de um jovem, em tom ameaçador e decidido, dentro de minha casa. Passado o susto, veio a revolta ao constatar que se tratava da principal atração de um comercial sobre um CD com uma seleção do que há de "melhor" no funk carioca, editado pela Som Livre. O brado, que leva o pavor não só aos bandidos dominados como a toda uma população que os rodeia (por extensão, a cidade do Rio de Janeiro), estava sendo repetido nos lares de milhões de brasileiros como coisa banal, para atrair os apreciadores de um "bom" funk…

Imbecilidade geral

Na Som Livre, o produtor/idealizador do tal CD não deve ter se importado muito com o "detalhe" de estar vulgarizando e exaltando subliminarmente o tenebroso significado real da frase. E, além do mais, haverá de defender o "produto" até a morte, expondo os números de vendas, os lucros etc. Isto é o que importa. Assim, a Som (Deus me) Livre haverá de apelar aos mais rasteiros e desbotados argumentos ("é isso que o povo quer…") para enaltecer e tornar popular um dos estandartes dos bandidos ? como se fosse a coisa mais corriqueira do mundo.

Será que ninguém na TV Globo (na área de jornalismo, principalmente) teve sensibilidade suficiente para alertar a todo-poderosa dona Marluce sobre a divulgação irresponsável de idéias relacionadas a uma realidade estúpida e violenta, da qual todos os brasileiros, de norte a sul, querem distância?

Não.

Ninguém terá a coragem necessária para chegar perto dela e dizer: "?Tá dominado? é coisa de traficante, dona Marluce, não pode ser berrado no ouvido de nossos espectadores, ainda mais no intervalo do Jornal nacional, como um comercial a mais de uma coletânea da Som Livre"?

Se eu estivesse perto, completaria: tem mais, dona Marluce, a TV Globo pode até ser enquadrada em algum artigo do Código Penal que fale sobre incentivo, de alguma forma, a práticas criminosas. Qualquer advogadozinho de porta de cadeia saberá redigir a argumentação incriminatória contra a Globo, baseado no princípio de que os maiores beneficiários de tal propaganda são os traficantes, elevados à condição de grandes estrelas ao ver sua linguagem difundida com auras de glória em horário nobre.

Triste conclusão: dominados estamos todos nós, não só pelos traficantes, mas pela imbecilidade geral que tomou conta deste país há tempos, e que está assumindo proporções cada vez mais assustadoras na TV em geral.

(*) Jornalista e escritor

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