Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Totalitária Seahaven

Marcel Cheida (*)

 

O

impacto do filme Truman, o show da vida no círculo da crítica especializada revela o onipresente condicionamento do meio televisão no dia-a-dia da produção intelectual publicada nos jornais diários de grande circulação. As análises sobre conteúdo e forma do filme de Peter Weir, de modo geral, apontam a figura heróica de Truman Burbank sobre seu demiurgo, Christof, e todo sistema construído para uma novela servir de produto midiático para ampliar a audiência da emissora e os lucros da empresa capitalista proprietária da rede de TV.

Mais do que a luta de um sujeito ingênuo que suspeita, inicialmente, do comportamento algo artificial das pessoas de “sua” cidade (Seahaven, um porto tranqüilo em pleno oceano ou também um quase Éden ) e depois rompe com os cenários para ultrapassar a porta de saída para a “terra” real, há uma demonstração de como o capitalismo constrói microcosmos totalitários. A crítica de Weir transcende ao conflito entre a virtualidade da televisão e o destino que Truman quer denunciar. Seahaven é uma “pólis” totalitária, cujo criador, Christof, crê no comportamento controlado de todos personagens que interpretam seus papéis ou se alienam diante de Truman. Este, todavia, seu “filho”, foge ao controle pois não possui a consciência do simulacro que representa. Ao contrário, todos os outros atores, produtores, diretores, cenógrafos, editores, empresários e público sabem que participam de uma trama à qual aderem sob a alegação do entretenimento e do lucro.

A moral da estória é típica dos filmes americanos, nos quais o herói solitário supera todas as dificuldades com o esforço, a persistência e ações individuais, pois a liberdade encontra-se nesse conceito filosófico da formação cultural e política daquele povo. Truman não é alguém dotado de inteligência excepcional. Viveu até os 30 anos acreditando em todos à sua volta. Do mesmo jeito que todos acreditavam que ele nunca sairia da cidade ideal, utópica. A diferença fundamental com os antigos filmes é que agora o herói combate o próprio sistema resultante do projeto capitalista e liberal. Os inimigos demoníacos das fitas de far-west de Hollywood, os indígenas, ou da “guerra fria”, soviéticos, chineses e cubanos, antigas entidades malígnas para o Ocidente, foram substituídos por um adversário nascido na própria entranha do sistema.

Ao apontar a rede televisiva global e o simulacro como elementos negativos dada a grandeza que adquiriram por força dos interesses capitalistas, Peter Weir resvalou num problema político gravíssimo: a possibilidade de a mídia combinada com o capital, independentes de qualquer crítica ou sanção social, cultuar o totalitarismo na forma mais sofisticada que possa ocorrer. E contra esse poderoso inimigo, somente a iniciativa individual poderia romper com o regime moldado para ser perfeito, absoluto.

Ao atravessar a porta do cenário ao final do filme, Truman vai em direção ao nada. Fecha-se o ciclo da estória. Surge a indagação do que aconteceria com o personagem. Ao chegar à “terra”, Truman se transformaria num perplexo mortal, cuja angústia deveria se aprofundar na medida em que poderia perceber o quanto fora manipulado. A tomada de consciência de si e a procura de sua origem lembram a expulsão de Adão e Eva e o trágico destino de pagar pelo pecado de se rebelarem contra o Pai porque queriam a sua sabedoria. A liberdade de Truman expressa-se na descoberta do pai-demiurgo e da travessia em busca de si mesmo. E aí o caminho é doloroso. A felicidade é apenas o momento em que atinge uma dimensão emocional superior àquela que o continha, o limitava.

Inevitáveis algumas remissões. As recentes campanhas eleitorais, cujo ciclo teve início com o famoso e manipulado debate entre Fernando Collor e Luiz Ignácio Lula da Silva em 1989 e tem continuidade na última disputa para a Presidência da República e Governos Estaduais ( na qual o Ibope e a mídia construíram simulacros em favor de candidatos conservadores) indicam comportamentos que se alastram de modo pernicioso, num objetivo eivado de tentações totalitárias. A concordância da mídia em estabelecer um único candidato “salvador” e absoluto da Seahaven tupiniquim, contra o agente do mal, denuncia o aprendizado e o treinamento de exércitos de comunicólogos doutrinados para confeccionar um mundo à sua imagem e semelhança, sem o qual estariam condenados ao martírio da verdadeira liberdade, a qual exige um constante exercício de consciência crítica em detrimento da alienação.

Na idéia de globalização germinam, aceleradamente, discursos impermeáveis à pluralidade do pensamento; globalização torna-se sinônimo de “coisa perfeita”, total. A mídia brasileira, consciente ou inconsciente, recepciona esses germes travestidos de artigos ou conceitos econômicos, políticos e até filosóficos, transformados em frases-feitas ou slogans publicitários, que, de fato, constituem propaganda ideológica avassaladora, confeccionada por sofisticadas técnicas de persuasão marqueteira. Aliás, a censura aos artigos de Alberto Dines, na Folha de S. Paulo, e de João Ubaldo Ribeiro, no Estadão, revelam que os jornalistas também agem como algozes e agentes pretensamente totalitários, ignorantes sobre seus papéis, crentes na solução final denominada de neoliberalismo globalizante, a qual não pode ser questionada sob hipótese alguma. É a produção de um preconceito cruel, inquisidor, que serve de justificativa para todos os atos daqueles que detêm menor ou maior poder em subjugar qualquer idéia “suspeita” de oposição. Sabemos que o preconceito estrutura-se no maniqueísmo, na bipolaridade entre o certo e errado. Sem qualquer dimensão ética, todo aquele que se impregna ideologicamente desse modelo de pensar vê o mundo entre o dia e a noite, sem qualquer entardecer ou amanhecer. Tal qual Christof, esses medíocres ditadores tencionam submeter o mundo a um modelo fácil de ser manipulado, bastando para isso subjugar as pessoas e as idéias aos roteiros e produções virtuais, artificiosamente elaboradas a fim de estimular a massa à crença de razões inconfessáveis e que, devido à fragilidade, não podem ser expostas ao debate público.

Truman é o eterno herói das lendas, dos mitos e das histórias políticas que permeiam gerações e gerações. É também a antítese do sistema midiático, em que pese ser fruto dele. O paradoxo é explicável em si, mas sua lição transcende à proposta simplista de uma crítica pontual à TV e àqueles que a usam como ferramenta de entretenimento e publicidade, meios para ampliar o faturamento cada vez maior dos grandes e poucos grupos controladores do sistema econômico. Sob o manto da liberalidade econômica e financeira, os monopólios da mídia (parodiando B. Bagdikian) implementam uma didática lição de como a massa deve obediência a um sistema global (a Seahaven capitalista); caso queiram atravessar o portal do cenário, cada um com sua Santa Maria (é irônico o nome dado ao veleiro, pois Colombo encontrou o Novo Mundo que simbolizou a terra da esperança, da liberdade; já, Truman, vai encontrar uma realidade terrível, na qual estará sozinho, oprimido), estará ameaçado de encontrar a triste realidade, o abandono, a falta de segurança e do grande pai que a tudo provê, tal qual Christof.

Nessa transformação da “pólis” democrática, o maior instrumento do Estado deixa de ser a lei e a legítima e democrática intervenção do Judiciário e do Legislativo nos conflitos sociais para que a mídia tome seus lugares e encontre no entretenimento o meio mais persuasivo para impor vontades. Se os sistemas extremos como a ex-URSS ou a Alemanha Nazista utilizaram a força do Estado e o totalitarismo ideológico como instrumental de controle social na busca do regime absoluto, hoje a mídia tende a assumir esse papel na medida em que padroniza sua linguagem e cria um simulacro que exerce a força centrípeta sobre as idéias, convergindo-as para um único centro, liquidificando as demandas plurais do mundo informatizado.

Mesmo a Internet, com a capacidade de prover a troca de informações entre milhões, é insuficiente para o combate à TV comercial ou a cabo, por uma simples razão. É um percentual muito ínfimo da população – em particular dos países ditos emergentes – que tem acesso aos microcomputadores, aparelhos domésticos ainda elitizados. Ao contrário das emissoras de TVs, rádios e jornais impressos.

Podem alguns afirmar que a correlação de forças do mercado é suficiente para impedir que sistemas totalitários se imponham, pois as cobranças sociais oriundas da consciência do consumidor são métodos que levam as empresas a rever seus procedimentos. Não fosse um argumento a mais daqueles que detêm o controle sobre esses sistemas, poder-se-ia estabelecer um grau de esperança nessa “mão invisível” de Adam Smith. Mas o argumento não se sustenta. A combinação do controle econômico, político e ideológico nas mãos de uma minoria, governantes ou mercado, é perniciosa para qualquer sociedade. E a “mão invisível” não só o é como não tem substância alguma, pois quem existe é o consumidor ou o cidadão em carne e osso, com vontades, desejos e objetivos que podem ou não ser condicionados.

Truman Burbank não é a resposta crítica como muitos querem. É o problema ainda sem solução.

(*) Prof. de Ética e Legislação do Jornalismo na PUC-Campinas