Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Trabalho? Quê? Qual?

Isak Bejzman (*)

 

T

ranqüilamente, sem receio de estar exagerando, posso dizer que estamos vivendo atualmente no Brasil, em tudo que diz respeito a valores do ser humano cidadão deste país, principalmente quanto à dignidade e à auto-estima do brasileiro, um momento perverso e por isso trágico. O brasileiro tem o frango, mas a coisa mais importante, que é sua capacidade de trabalho, nada vale. Mais uma vez, trabalho passa a ser sinônimo de sofrimento.

Baseado na simplicidade dos meus conhecimentos, tentarei exemplificar minha visão do que vem a ser para mim economia. O nutriente mais importante que entra na composição dos alimentos para que um povo esteja bem alimentado se chama proteína. Sabe-se que os alimentos mais ricos em proteína são as carnes. Entre as carnes, uma das mais saudáveis é a carne de frango, ave de rápida reprodução. Um aviário moderno alimenta sua criação com ração feita de milho, soja, vitaminas, sais minerais e outros componentes, como antibióticos – e parece que até hormônios, mas isso é outra história. Portanto, para que o povo coma proteínas é só fazer uma criação intensiva de frangos e dar de comer aos frangos uma ração adequada. É assim que se dá a magia da transformação da soja e do milho em carne. O mesmo com a carne suína e de gado, quando este último é criado no sistema de confinamento.

Nos últimos quatro anos, os aviários e a criação de suínos progrediram no Rio Grande do Sul, enquanto os matadouros de gado faliram em massa. A elite gaúcha começou a fazer churrasco com carne argentina, e a “hinchada” argentina começou a comer carne de frango e de suínos brasileiros. Apesar de o real estar supervalorizado, o Brasil passou a mandar carne de frango e de suíno barata para a Argentina e o mundo, e nós. em plena Pampa, fazendo churrasco de carne argentina. Maravilha, o Brasil democratizou o preço da carne de frango e de suíno. O Brasil exporta carne de frango e de suíno barato para o mundo, e o brasileiro também come-os barato.

Indiscutivelmente, no contexto da economia brasileira, esse fato é um verdadeiro milagre. Um milagre brasileiro que os argentinos não conseguiram fazer com a carne de gado deles, pois ela é bem mais cara: os argentinos não conseguiram democratizar o boi.

Voltando ao frango, chama a atenção que sobre o assunto frango as matérias publicadas na imprensa são descritivas. Que eu saiba (é preciso frisar que aqui em Porto Alegre não leio todos jornais brasileiros, falo em termos de grande imprensa), nenhum jornalista da grande imprensa brasileira, especializado em assuntos econômicos, foi capaz de pesquisar as razões para que a carne de frango e a de porco tenham ficado tão baratas, e a carne do boi, além de mais cara, tenha levado os frigoríficos brasileiros à falência.

A globalização, como fenômeno, deslumbra. Não havia até ontem alguém que contestasse essa nova cultura mundial. Até ontem tudo acontecia por causa dela.

A realidade, por mais que seja negada, insiste em estar presente. Apesar das contestações que já estão surgindo, a Globalização é uma dessas realidades insistentes e gritantes. Ela se caracteriza por ser menos governo e mais mercado. No fundo, ela é a Lei de Darwin, expressa em outras palavras: eu sou capaz, tu não és, azar. Ou, eu estou e se tu não estás, azar o teu]. É óbvio que a diferença entre eu estar e tu não, está relacionada diretamente com as qualidades e capacidades do indivíduo em exercer uma determinada função.

Nesse ponto estamos começando a adentrar a razão principal dessa matéria: o trabalho. É que a globalização criou no mundo uma turba de excluídos. Está aumentando o número daqueles que não têm nada ou quase nada, que são muitos, e diminuindo o número dos que têm muito – mas muito mesmo.

Vejam o pequeno Estado de Israel. Lá, parece que os poucos que estão com muito dinheiro começaram a se preocupar com o problema. E não de forma acadêmica, mas para valer. A coisa por lá está se transformando num conflito social pesado. É que os poucos com muito dinheiro estão um tanto apavorados: o cidadão israelense, lixeiro ou doutor, com dinheiro ou sem dinheiro, trinta dias por ano tem de vestir o uniforme do Exército e tirar guarda numa linha de fronteira ou em algum posto avançado, posições de alto risco. Os dois, o pobre e o rico, são igualmente responsáveis pela segurança do país.

As elites israelenses começaram a se perguntar: por quanto tempo o faminto vai garantir com uma metralhadora Uzi nas mãos a grana daquele que come, veste, habita e estuda bem? Aparentemente, o magno problema do senhor Binyamin Netanyahu não é exclusivamente o senhor Arafat. O primeiro-ministro de Israel, o senhor Bibi, precisa encarar também a tal globalização. Para felicidade geral da nação brasileira, o presidente do Brasil, professor e sociólogo Fernando Henrique Cardoso, pode dormir descansado. Os brasileiros excluídos, os desempregados, jamais terão uma Uzi nas mãos e a seu lado um brasileiro com grana, com outra Uzi nas mãos, ambos responsáveis pela segurança do país. Ele, o excluído, o trabalhador brasileiro, estará junto a uma montanha de excluídos.

Wanderley Codo diz que sobre o trabalho paira a inscrição de Dante: “Deixai aqui toda a esperança, oh vós que entrais”. Inscrição que, para a ciência, se transmuta em: “Por que gastar os olhos onde reina a desesperança?, e Codo conclui: “Mesmo assim, quem raspar a superfície amarga que veste o trabalho haverá de reencontrar a vida, o jeito dos homens inventarem a identidade”.

Em 1971, um grupo de 23 psicanalistas argentinos publicou uma coletânea de artigos no livro Cuestionamos. Esses psicanalistas, frente a uma gama de realidades, passaram a se autoquestionar sobre as limitações que seu próprio instrumento de trabalho, a psicanálise, passou a lhes impor. No prólogo da obra, o saudoso psicanalista Josef Bleger pergunta: Questionamos o quê? A psicanálise em si? A ciência que tem por objeto teórico o inconsciente com todas suas implicações? Não… Questionamos as omissões que comete o pensamento psicanalítico atual. Escotomiza (atrapalha a visão) o modo como a estrutura da nossa sociedade capitalista entra, através da família, como cúmplice na causa da neurose, e que se introduz, através de nós, pelo fato de pertencermos a uma determinada classe, em nossa prática clínica, invade nosso enquadramento do caso, e distorce nossos critérios de cura”.

O próprio Freud, que era avesso a política, escreve em sua obra O futuro de uma ilusão: “Uma cultura que deixa insatisfeita um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à rebelião não tem probabilidades de conservar-se definitivamente, nem se o merecesse”. A leitura da obra e minha experiência pessoal me fizeram ver que a Psiquiatria Dinâmica estava deixando algo muito importante de lado. Devia existir uma psicopatologia decorrente do trabalho em si, isto é, a doença mental como produto das relações de e no trabalho. Com isso não pretendo dizer que a essência do psiquismo humano parou de existir. O que pretendo dizer é que o trabalho apresenta uma psicopatologia que lhe é própria.

Historicamente, com a queda do feudalismo, o ser humano parecia ter adquirido a liberdade, deixou de ser propriedade do senhor da terra. E pensar a psicopatologia desse ser humano liberto exclusivamente em termos de relações familiares é que significa escotomizar a paisagem. Passei a olhar para dentro do ambiente de trabalho. Passei a ver em minúcias os três universos: a sociedade, a família e o trabalho. Diz a psicologia que o ser humano nasceu para o prazer, entretanto, sem trabalhar ele não sobrevive. Para onde um de nós se virar ali estarão o indivíduo e o trabalho, lado a lado. Se ele é um pedreiro ele vive, dorme e sonha como pedreiro. Toda a sua vida afetiva estará ligada ao fato de ele ser pedreiro, e é com esses predicados que vive sua vida social. É claro que essa variável não exclui os aspectos humanos de um pedreiro. Ele não vai deixar de ter seu complexo de Édipo, como todo ser humano. Fica claro também que a vida de um ser humano não se resume a trabalho, mas é importante que se comece a pensar na ausência do trabalho e o que isso significa.

Victor Frankel sintetizou esse paradoxo humano quando prisioneiro de Hitler num campo de concentração nazista. Ele comparou a vida no campo de concentração a uma vida sem emprego. Para ele, ambas são vidas sem perspectivas, sem amanhã.

Vocês já repararam como o político brasileiro em geral adora usar a palavra “esperança”? Qual é pois a esperança de um desempregado? Comer carne de frango?

(*) Médico psiquiatra e jornalista