Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Transparência no Poder Judiciário

 

Ana Lúcia Amaral (*)

É curioso como certos temas conseguem passar um tanto quanto despercebidos pelo grande público. Será por que a imprensa não lhes dá maiores tratos, como dá normalmente a qualquer declaração do nosso líder político de tacape, o senador ACM ? na ácida expressão do professor José Eduardo Faria (“O imposto da pobreza”, O Estado de S.Paulo, 28/7/99, pág. 2)?

A nomeação dos novos Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), principalmente em tempos de CPI do Judiciário, foi um propício momento para a promoção da discussão sobre a forma de escolha dos juízes que integram as altas cortes, onde se dá a derradeira instância na via crucis dos processos judiciais, onde se forma a orientação jurisprudencial para os demais juízes de todo este país, ou seja, a sede onde se afirma o que é direito ou não, o que é legítimo ou não.

A nomeação da primeira mulher a chegar àquele tribunal, a ministra (até o feminino é meio estranho aos nossos ouvidos) Eliana Calmon, até que trouxe o tema à tona. Foi a honestidade de sua excelência que expôs à grande maioria da população como se dá a escolha de um juiz, ou juíza, que vai ocupar cargo de extrema importância dentro de um Estado Democrático de Direito, mas por alguma razão não se deu maior atenção ao assunto. Por que será?

Embora na Constituição Federal, no parágrafo único do Art. 104, esteja inscrito que os ministros do STJ serão nomeados pelo presidente da República, dentre brasileiros maiores de 35 anos e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal e das entrevistas feitas com a primeira mulher a chegar àquela alta corte, percebe-se que aqueles dois requisitos são expressões esvaziadas de significado.

A ministra Eliana Calmon contou que havia se inscrito anteriormente para concorrer a uma outra vaga, e por acreditar que aqueles dois requisitos eram o que bastavam, limitando-se a apresentar seu “curriculum”, aguardou que nele fosse reconhecido, ao menos, o notável saber jurídico. Mas assim não se deu e parece que assim não se dá. Descobriu Sua Excelência que seus colegas concorrentes fizeram um périplo por gabinetes de congressistas e ministros de Estado. O notável saber jurídico não tinha nexo necessário com o conhecimento auferido em tantos anos de judicatura. O mesmo se diga do requisito “moral ilibada”.

Objetividade e transparência

O episódio relativo à indicação, para o mesmo STJ, do ministro Francisco Falcão (aquele magistrado contra o qual se promove ação de reconhecimento de paternidade de dois adolescentes, e aguarda que o seu colega, o juiz de primeiro grau, o chame para o exame do DNA, quando poderia muito bem ter se antecipado e já ter se submetido àquele exame, pondo rapidamente fim ao processo) veio revelar que é o conceito de moral ilibada igualmente vago…

Honesta e francamente a primeira mulher a chegar a uma das duas mais altas cortes deste país contou que procurou, entre outros, pelos senadores da República Jáder Barbalho e Antonio Carlos Magalhães para obter apoio, já que esta parecia ser uma das regras do jogo. Acrescentaria eu à adjetivação “honesta e franca”, que pode muito bem caracterizar a Dra. Eliana, a de “corajosa”. Escancarou ela o processo espúrio de escolha de pessoas que ocuparão cargos cujas funções deveriam estar imunes às injunções da “conjuntura política”. Além de honesta, franca e corajosa, a ministra Eliana Calmon demonstrou ter estômago resistente, coisa que eu não tenho, bem como muitas outras mulheres, com o mesmo notável saber jurídico de Sua Excelência, também não têm.

Espúrio porque insere em processo, que deveria se revestir de objetividade e transparência, circunstâncias outras que nada tocam àquele notável saber jurídico e moral ilibada a que se refere a Lei Maior, podendo comprometer, seriamente, a imparcialidade que deve ser a tônica da postura de todo e qualquer magistrado.

Os juízes, como seres mortais que são ? embora haja muitos dentre eles que não se aperceberam desta dura realidade ? estão sujeitos a todas as mazelas da alma humana. Se fôssemos todos anjos não precisaríamos, antes de mais nada, de juízes…

Fico a cismar como se sentiria a ministra Eliana Calmon, quando tendo que julgar uma ação em que se discute matéria do maior interesse do estado da Bahia, ou do Pará, for ela procurada pelos mesmos senadores, ou a pedido desses, para que veja com bons olhos aquela causa. Quem se demonstrou tão honesta e franca, além de corajosa, me faz supor que atuará com toda a independência, sem que possa parecer ingrata. Mas será que sempre seria assim? Exatamente por não sermos anjos…

Vocações tardias

O mesmo processo, o de se procurar “apadrinhamento” para se chegar a um cargo de juiz, se verifica seja para o STF, ou STJ, para os Tribunais Regionais Federais e os de Justiça, nos estados. Em tempos de reforma constitucional, quando está em andamento a relativa ao Poder Judiciário, o debate sobre a definição de um processo objetivo e transparente para a escolha dos integrantes dos tribunais parece de todo oportuno, e dele é essencial a participação de todos os segmentos da sociedade, e não somente os próprios membros do Poder Judiciário, pois cidadania não se consolida sem um Poder Judiciário independente e eficiente.

Por que não se ocupou a imprensa de indagar dos demais nomeados quem foram os seus padrinhos? Não seria útil para se acompanhar a judicatura dos novos ministros do STJ? Por que não se ocupou a imprensa de lançar e manter a discussão na pauta?

Ainda ligado ao tema da escolha de juízes dos tribunais nacionais, está a manutenção, ou não, do chamado “quinto constitucional”, que se refere aos cargos de juízes (entenda-se ministros, desembargadores) reservados aos advogados e membros do Ministério Público para integrarem aqueles. O sistema constitucional anterior já previa a composição dos tribunais por integrantes da magistratura (os juízes de carreira, aqueles que fizeram concurso público para o cargo de juiz de direito ou federal, e tiveram que correr as mais remotas comarcas pelo interior deste país), do Ministério Público (que fizeram concurso para ser promotor de Justiça ou Procurador da República) e advogados. Vale dizer, enquanto os juízes de direito ou federais têm que judicar durante anos em primeira instância para poder, um dia, ascender a um tribunal, pelo quinto constitucional, profissionais das outras duas carreiras jurídicas podem vir a se tornar juízes sem ter percorrido o mesmo iter. É como se se desse a descoberta, diria eu tardia, de uma vocação!

Parece-me estranho, digo por mim, que após tantos anos numa função, como membro do Ministério Público por exemplo, cuja atividade acaba por moldar um comportamento, uma postura, seja possível, como que por encanto, mudar aquela postura, ter um outro padrão mental.

A par dessa curiosa revelação de vocações tardias, o processo de escolha dos que postulam o cargo de juiz pelo quinto constitucional, ainda que nos tribunais inferiores, se dá no mesmo molde do denunciado pela ministra Eliana Calmon. “Padrinhos”, entenda-se, políticos de peso e representantes de grupos econômicos são procurados…

“Quem indica”

Todo este questionamento justifica-se diante das discussões sobre a conveniência ou não da adoção da denominada “súmula vinculante”. Súmula, dentro do sistema vigente, é a expressão, de forma sintética, do pensamento de um tribunal, da sua jurisprudência predominante, sobre um certo tema que pode orientar ou não as decisões dos juízes de primeiro grau e dos tribunais intermediários. Hoje, a súmula, como uma orientação, pode ou não ser acatada, vale dizer, não vincula as decisões das instâncias inferiores aos seus ditames.

Uma vez adotada a súmula vinculante, o STF e o STJ, dentro das suas competências, poderão fixar uma decisão para casos idênticos. Poder-se-á argumentar que a grande utilidade das súmulas vinculantes seria obstar a multiplicidade de decisões conflitantes sobre uma mesma questão; ou o entulhamento dos tribunais por processos absolutamente iguais, cujo resultado seria previsível, se já predominante um entendimento.

Tantas vantagens não podem ser consideradas abstraindo-se do contexto no qual poderão ser firmadas as referidas súmulas vinculantes: há plena garantia de independência dos ministros que as elaborarão?

Existe hoje, no sistema em vigor, a ação declaratória de constitucionalidade, pela qual a Presidência da República ou uma das Casas do Congresso pode requerer ao STF que declare a constitucionalidade de uma norma que é questionada perante os juízes de primeiro grau. A decisão, na referida ação, pela constitucionalidade da norma vincula todos os magistrados que tiveram que julgar processos envolvendo aquela matéria.

Já a súmula vinculante poderá ser ditada ao ser apreciado um processo individual, iniciado em primeiro grau, sem que o poder público tenha se dado o trabalho de promover qualquer ação para tal fim perante o STF.

O critério do “QI” (quem indica), de forte caráter cartorial/paroquial, com carga política, no pior sentido que esta palavra pode ter, no processo de indicação dos integrantes das altas cortes impõe a urgente instauração da discussão sobre a sua alteração, e nessa discussão a imprensa não pode se omitir, ainda que a Lei de Imprensa, souvenir do ancien régime, cuja aplicação foi abrandada pelo Poder Judiciário, ainda a ronde.

(*) Procuradora Regional da República em São Paulo, membro do Instituto de Estudos “Direito & Cidadania”

 



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