Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Trágica cobertura

Precisão, clareza, concisão e rapidez na elaboração da matéria são características básica que compõem um bom texto jornalístico. Tudo, é claro, precedido de um trabalho de reportagem que inclui curiosidade intelectual permanente, apuração exata dos fatos e habilidade em contextualizá-los.

Mas a prática profissional no dia-a-dia da imprensa escrita nem sempre reflete essas preocupações. Exemplo típico ocorreu no último sábado (8/11), quando da cobertura feita sobre tragédia registrada após show de rock do grupo Os Raimundos, no Clube de Regatas Santista, em Santos. Morreram sete jovens entre 14 e 20 anos e outras pessoas ficaram feridas.

A simples leitura dos quatro grandes jornais brasileiros (Folha, Estadão, O Globo e Jornal do Brasil) reflete que a cobertura do acidente foi no mínimo inadequada. Sob a espada do fechamento antecipado das publicações dominicais, os editores desses veículos sucumbiram diante da exigência de um tratamento mais apurado da notícia. Os desmandos foram incríveis e até mesmo hilários, não fosse o clima trágico que envolveu o acontecimento.

O Jornal do Brasil, por exemplo, anunciou na primeira página que oito pessoas haviam morrido, duas delas não identificadas. Todos os outros veículos publicaram a lista com sete vítimas fatais.

Não bastasse o JB inventar uma vítima a mais, "matou" também um senhor de 44 anos de nome Nilo Mantovani, quando na verdade quem morreu foi seu filho, Luiz Roberto, de 18 anos. A Folha também incluiu o nome de Nilo na lista dos mortos. O Estadão publicou o nome correto, mas manteve o equívoco na idade – 44 anos.

Ainda em relação a nomes, JB, Estadão e Folha deixaram claro a que vieram: para confundir. O sobrenome Bessallis virou Bessalles, que se transformou em Salles. Martins ficou sendo Matias e Pablo virou Paulo. Como cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, O Globo resolveu o impasse: não publicou a lista das vítimas. O problema é que omitiu também o nome da cidade onde tudo ocorreu – Santos. O mesmo aconteceu no Estadão, que esqueceu de indicar o local na chamada de capa. O JB informou que tudo teria acontecido em Pontal da Praia, em Santos. O correto é no bairro Ponta da Praia – Santos.

A Folha de S. Paulo, aparentemente privilegiando a precisão defendida em prosa e verso em seu Manual de Redação, não só falou que o fato ocorreu em Santos, como informou que a cidade fica a 72 Km a sudeste de São Paulo.

Mas atirou a precisão no lixo quando abriu manchete: "7 morrem e 51 ficam feridos…" e iniciou o texto jogando a dúvida para o leitor "Pelo menos sete pessoas morreram…". O Folhão também esbarrou na clareza quando citou a causa das mortes: asfixia mecânica. O que é isso?, deve estar perguntando o leitor. O mais irônico de tudo é que a matéria da Folha saiu publicada ao lado da coluna do ombudsman.

Deslizes à parte, a cobertura da imprensa como um todo foi "oficialesca". Resumiu-se a dados do boletim de ocorrência, da Prefeitura, do clube e, com exceção de O Globo, deixou de lado os depoimentos dos feridos e outras pessoas do público que estavam no local. No máximo, Folha e Estadão citaram que "segundo testemunhas…". Quais? Elas não teriam todo um cenário a descrever?

Nesse ponto, o jornal de Santos – A Tribuna -, único diário da cidade, foi competente. Publicou depoimento assinado de uma jovem que assistiu ao show e passou o clima que envolveu a tragédia.

Apesar de ter editado uma caderno de quatro páginas sobre o assunto, A Tribuna também cometeu deslizes. O maior deles e o mais constrangedor quando da publicação de entrevista com um integrante do grupo Os Raimundos.

Título da matéria: "Baixista mostra preocupação com seu público". A foto posada focaliza o grupo bem-humorado, com peso para um dos componentes sorrindo e com os dedos sinalizando paz e amor.

Não bastasse, a entrevista não foi feita após a tragédia, como o título leva a crer. Mas, em conversa que ocorreu anteriormente ao show e cujo teor tem muito mais a ver com a trajetória do grupo.

Em resumo, a cobertura da imprensa mais uma vez mostrou por que a credibilidade do jornalismo vem sendo colocada em xeque. Se meia dúzia de repórteres não conseguem ser precisos em relação a simples fatos, imagine-se quando têm que recorrer à competência de análise e à contextualização. A função principal do jornalista é a de mediador entre a realidade e o leitor. Duro é saber, no atual cenário, quem é maior prejudicado: a realidade ou o leitor.

(*) Coordenador do Departamento de Jornalismo da Unisanta e professor da UniSantos.