Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Truman e o espaço público mal resolvido

Margarethe Born Steinberger (*)

 

O

novo filme Truman, o show da vida, do diretor Peter Weir, transforma em espetáculo um conceito muito desgastado nesse final de século, que é o conceito de verdade. No mundo fake do personagem Truman, a verdade vira show.

Truman cresce em uma sociedade na qual, sem que ele saiba, todos são atores contratados por uma emissora de TV – sua mulher, seu melhor amigo de infância, seus pais e até a mocinha do filme que se apaixona por ele e tenta contar-lhe a verdade. Nas ruas, os vizinhos, o vendedor de jornais, os ambulantes, todos são simulacros especialmente construídos para dar verossimilhança ao mundo de Truman. Vivendo em uma espécie de bolha de realidade, Truman começa a desconfiar de que há alguma coisa errada quando descobre que seu pai, morto por afogamento em um traumático passeio de barco, está vivo. Na verdade, o pai de Truman é apenas mais um ator contratado pelo diretor de TV, Christof, para trabalhar no Truman Show, o programa de maior audiência em uma sociedade hipotética, talvez do futuro. É essa sociedade que se acotovela em lanchonetes de fast-food para assistir ao show full-time que é a vida real de Truman.

Para garantir que todos os movimentos e reações de Truman sejam acompanhados pelo público, o diretor Christof (a alusão à onipotência divina fica óbvia) monta uma fabulosa equipe de produção e um complexo sistema de câmeras gravando 24 horas por dia as idas e vindas do personagem em uma gigantesca cidade-cenário.

O filme não deixa claro se o encontro “casual” com o pai pelas ruas faz parte do hábil roteiro do show ou se foi apenas uma bobeada da produção. Mas Christof fatura com isso explorando o trauma e a angústia de Truman ao relembrar a trágica noite do afogamento em meio a uma tempestade. Desde garoto ele vinha carregando um sentimento de culpa por não ter podido salvar o pai.

O tema do filme é a luta de Truman para chegar à verdade e, finalmente, descobrir que o mundo que o cerca não é real e que sua vida foi usada e explorada por um infame megashow de televisão.

O outro lado do filme é a crítica à sociedade de consumo e à cultura de massa, mostrando um público de TV ávido para consumir esse show de verdade que é a vida de Truman,. Costa-Gavras faz a crítica ao mundo pré-fabricado da mídia e à falta de ética com que a televisão se apropria e se utiliza da vida privada do indivíduo.

O tema ganha espaço no contexto da recente denúncia feita na Folha de S. Paulo, de que alguns quadros do programa do apresentador Ratinho, do SBT (Programa Ratinho Livre), são forjados.

Pagando cachês de R$ 200, a produção do programa estaria recolhendo na periferia de São Paulo gente carente, disposta a fazer o papel dos miseráveis personagens – submetidos a todo tipo de violência, desde as drogas até o adultério – que o Ratinho “salva” ou leva ao “arrependimento” diante da audiência.

Também o megaescândalo Lewinsky, que escancarou a vida íntima do presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, serve para ilustrar a avidez com que a mídia e o público tratam o espaço da vida privada. A vida privada é o último reduto da autenticidade, espontaneidade, verdade. Em oposição à farsa diária a que assistimos no espaço da vida pública (vide o show em que se transformaram as campanhas eleitorais, a falta de credibilidade dos políticos e das autoridades em geral), a vida privada (e íntima) transforma-se no alvo de uma espécie de busca metafísica da verdadeira e única essência das coisas e das pessoas.

Revelar que candidatos mantêm filhos fora do casamento – como Collor em sua campanha contra Lula em 1989 – é uma outra demonstração dessa avidez. Uma avidez pelo pecado, pelo que a sociedade concebe como infração das regras. A pornografia e o mau gosto também entram nesse rol, o corpo da mulher é virado pelo avesso tentando mostrar um ângulo supostamente mais íntimo, mais pecaminoso e, portanto, mais erótico. Uma forma de explicar essa avidez sobre os temas da vida privada é exatamente associando ao que os psicanalistas chamariam de “uma libido mal resolvida”. Parece que o espaço público se esgotou em sua condição de satisfazer uma libido social.

Caminhamos para um beco sem saída, porque obviamente o recurso ao espaço privado como potencial reduto da verdade, da autenticidade e da paz existencial também se esgota. Caímos numa espécie de regressão infinita, tirando a máscara da máscara da máscara…

O conceito de espaço público que se opõe a um espaço privado nasce junto com o conceito de Estado-nação, no contexto da Revolução Francesa em 1789. Até ali, o rei era o dono de todos os espaços, era o dono da primeira noite das esposas virgens, não esqueçam de Louis XIV dizendo “L’État c’est moi” – o rei era o próprio Estado.

Não havia portanto noção de direito individual, o indivíduo não podia ter direitos sobre espaços e territórios. Algumas sociedades indígenas ainda preservam essa visão de mundo e não compreendem como é que se pode pensar em possuir algo criado na Natureza. Só Deus pode possuir a Natureza, e por isso, o rei, identificado com a divindade, teria esse privilégio.

Com a criação de um Estado que não mais emana do poder divino, nasce a vida privada, sobre a qual o Estado não tem injunção. E nasce o conceito de poder público, a sociedade que toma em suas mãos o próprio destino, antes entregue a Deus ou à monarquia.

Hoje, cada vez mais, a mídia vem se tornando o espaço público por excelência, o espaço em que se formam opiniões que, por sua vez, irão desencadear ações. A sociedade já não se sente fazendo parte desse poder público do Estado, e desconfia desse Estado que se transforma em máquina de guerra ou em máquina de corrupção, atraiçoando os cidadãos. Ao se voltarem para o espaço privado, a mídia e a sociedade estão também virando as costas a esse espaço público mal resolvido. E estão recaindo em uma espécie de síndrome de Truman, em que a verdade é uma farsa num mundo fechado, relativizado, mediatizado.

O filme de Costa-Gavras, em última análise, é sempre um filme político.

(*) Chefe do Departamento de Comunicação Jornalística da PUC-SP