Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Um Big Brother de verdade

GLOBO S.A

Nelson Hoineff (*)

A criação da Globo S.A. anuncia, em meio a tantas outras coisas, a inevitabilidade da profissionalização do negócio de televisão no Brasil; e aponta para uma época em que as redes deixarão de ser empresas estritamente familiares e serão forçadas a pulverizar sua propriedade, como já acontece na maior parte das empresas de comunicação eletrônica do mundo.

Empresas prestam contas aos seus acionistas, o que não quer dizer que necessariamente prestem contas à sociedade. Mas a precariedade não apenas da administração como do entendimento da própria atividade sugere que as mudanças não tardarão a aparecer também nos conteúdos. Numa sociedade anônima é mais difícil errar, simplesmente porque há muitos interesses conflitantes atentos ao erro. É emblemático o que aconteceu na semana passada, quando Ted Turner, que fundou e desenvolveu a CNN, foi repreendido publicamente por executivos da emissora depois de ter comparado as ações das forças armadas israelenses às dos terroristas suicidas palestinos [veja, nesta edição, artigo "CNN paga pelo que não vez", de Luiz Weis, na rubrica Feitos & Desfeitas]. Turner, que até há dois anos era a personificação exata da rede, foi lembrado em público que a CNN é hoje parte de um grande conglomerado de mídia (AOL Time Warner) e que ele já não tinha autoridade para falar em nome dela. O ex-dono se desculpou no dia seguinte.

Ao manifestar intenção de colocar suas ações no mercado, a Globo sai na frente de um processo que há muito tempo já se sabe irreversível ? e que ganhará velocidade com as exigências determinadas pelo início das transmissões digitais, os custos que elas acarretam e as possibilidades que elas envolvem.

Ao discursar, semanas atrás, no III Fórum Brasil de Programação e Produção, o ministro Juarez Quadros, das Comunicações, afirmou que o governo não tem pressa em dar a partida para a era digital. Foi contestado por pelo menos dois executivos de redes abertas no país ? José Roberto Maluf, do SBT e Roberto Franco, da Record. As redes abertas têm, sim, o medo de perder o bonde da história, em particular os serviços possibilitados pela TV digital, atrás dos quais estão também as operadoras de telecomunicações, para não ir muito longe. É uma nova época, de novas formas de conteúdo, novos serviços e a integração de uns e outros. Isso custa muito caro ? bem mais que os 10 bilhões de dólares que se estima para a fase de reequipagem ? e não pode ser conseguido sem o aporte de capital estrangeiro.

Se a televisão brasileira vivesse no melhor dos mundos, isso seria um bom argumento para demonstrar que ela já não pode mais caminhar sozinha. Mas a televisão aberta transita com imensa dificuldade por um caminho que ela já deveria conhecer, porque vive nele há 50 anos.

As desigualdades entre as redes são monstruosas, grande parte delas vive na indigência e, no que diz respeito ao produto que vendem, os resultados dificilmente poderiam ser piores. Afora alguma excelência em teledramaturgia (que a Globo ainda detém) e momentos espasmódicos de bom jornalismo, a televisão brasileira nunca esteve tão ruim, tão distante de servir à sociedade ou de desenvolver uma programação que revele um mínimo de familiaridade ou amor pelo veículo.

Direito ao palpite

Os números falam por si. A Globo faturou no ano passado algo em torno de 1,4 bilhão de dólares. Está exatamente no patamar das principais redes abertas norte-americanas. (A NBC, que foi a grande campeã desse ano, teve um faturamento recorde de 2,7 bilhões de dólares; a CBS ficou com 1,9 bilhão de dólares, a ABC com 1,5 bilhão de dólares e a Fox, com 1,3 bilhão de dólares). Os números da Globo representam cerca de 70% do bolo publicitário para a televisão aberta no Brasil, enquanto as redes americanas dividem mais equilibradamente o faturamento.

No que diz respeito à TV por assinatura, as disparidades se multiplicam. Só os dois canais de notícias da NBC (CNBC e MSNBC) tiveram no ano passado um faturamento publicitário de 450 milhões de dólares. Todo o investimento publicitário em TV por assinatura no Brasil foi de 60 milhões de dólares. Com altíssimo endividamento e baixíssimo nível de penetração, as operadoras começam agora a estudar novos modelos de negócio e corrigir erros primários de empacotamento, que talvez não tivessem acontecido se os modelos atuais tivessem se desenvolvido sob maior responsabilidade.

O grande problema neste momento não é saber se as emissoras poderão começar a admitir sócios estrangeiros. É saber quais estrangeiros vão estar dispostos a investir nas televisões brasileiras sem ter direito a dar palpite num gerenciamento que reiteradas vezes se demonstrou desastroso. Trinta por cento do SBT, só para dar um exemplo, valem, grosso modo, cerca de 250 milhões de dólares. É improvável que alguma empresa de mídia do mundo queira depositar esse dinheiro sem ter direito a opinar sobre sua destinação.

Estressante e vital

É também inaceitável que o controle do conteúdo seja transferido a sócios estrangeiros. Assim como não se pode cogitar que a televisão brasileira se desenvolva na era digital sem o aporte de novos recursos e parcerias com empresas que detém tecnologia, know how e mecanismos de produção afinados com o século 21. Cria-se, então, o imbróglio do qual o sectarismo, a arrogância e a auto-suficiência são as três piores portas de saída.

Para evitá-las, não custa se debruçar sobre alguns pontos essenciais ao entendimento da questão:

1. As redes de televisão estão servindo à sociedade brasileira? Estão gerando massa crítica? Estão fazendo da TV brasileira um veículo de excelência intelectual, fomentador da auto-estima da população e de sustentação da cidadania? Estão pelo menos gerando empregos?

2. O que pode haver de errado na pulverização do capital, além da desnacionalização do conteúdo? Hoje esse conteúdo é nacionalizado? A televisão gerida hoje por famílias brasileiras tem atendido à necessidade de pluralização da produção? Tem estimulado ao menos o fortalecimento das culturas regionais?

Não é preciso esforço algum para perceber que os principais problemas da televisão no Brasil não guardam relação com a composição acionária das empresas. Os principais entraves residem nos compromissos, raramente atendidos, de estimular competitividade, produzir programação de qualidade, gerar empregos, altos índices de nacionalização, regionalização e pluralização da produção e, como condição para isso tudo, de viabilização das emissoras a partir de sua atividade-fim.

O fato é que o negócio da televisão não guarda a menor semelhança com os dias pitorescos de setembro de 1950, quando Assis Chateaubriand inaugurou na marra a TV Tupi, em São Paulo, e os técnicos e artistas contratados se perguntavam o que fazer no dia seguinte. O dia seguinte é hoje a década seguinte. Não é concebível pensar o negócio televisão sem antecipar os resultados das modificações que ela sofre todos os dias ? e as estratégias que isso implica.

A brincadeira acabou, virou jogo de adulto. Talvez menos divertido do que antes, mas bem mais caro, bem mais estressante, bem mais vital. O negócio da televisão é hoje um big brother levado a sério. Todo mundo vota para tirar todo mundo ? e vai ficando quem souber se compor melhor com o parceiro que também está tentando derrubar.

(*) Jornalista e produtor de TV