Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um dilema também jornalístico

Cícero G. Coimbra (*)

 

E

m 1997, o advento da lei de doação presumida para transplantes de órgãos desencadeou uma seqüência de acontecimentos e reações que colocaram o jornalismo brasileiro em um dilema sem precedentes. Inicialmente, integrantes do sistema de captação de órgãos convocaram a mídia para uma inusitada cruzada pelo esclarecimento do público quanto aos meritórios objetivos de seu trabalho, preparando os brasileiros para aceitar a referida lei sem reservas e encarar a sua implantação como reflexo de uma sociedade moderna, formada por cidadãos generosos.

Como justificativa para ignorar a evidente incompatibilidade jurídica entre o substantivo doação e sua constrangida companhia adjetivadora presumida, apresentava-se o argumento de que a esmagadora maioria declara em vida ser favorável à doação e que a nova lei apenas torna essa intenção realidade generosa, libertando-a dos entraves burocráticos do antigo dispositivo legal. Ademais, a qualquer inconsistência jurídica deveria ser considerada mero preciosismo, pois seria ofuscada pelo evidente benefício a tantos desesperados que aguardavam a doação para melhora da qualidade de sua vida.

Para desarmar as possíveis desconfianças da população, vários cirurgiões transplantadores de rim, coração e fígado foram presenteados com largos espaços na mídia. Nunca se viu generosidade igual quando se trata de divulgar noções de neurociência. Todos garantiram que os critérios utilizados para o diagnóstico de morte cerebral (encefálica) têm fundamento científico e, quando corretamente aplicados, jamais permitirão que um paciente potencialmente recuperável seja erradamente identificado como morto.

Foram precisamente essas declarações que me provocaram dúvidas desconfortáveis. Sou médico há 19 anos, recebi treinamento clínico em neurologia no Brasil e nos Estados Unidos, dediquei-me ao ensino médico e à prática da neurociência pragmática, voltada para o desenvolvimento de novos recursos terapêuticos, e fiz meu doutoramento no mais conceituado e produtivo centro europeu de pesquisas nessa área – a Universidade de Lund, na Suécia.

Como preceito científico elementar, nenhum teste, ou conjunto de testes diagnósticos, utilizados em qualquer especialidade médica, apresenta margem de erro igual a zero. Obviamente, esse fato incontestável não prejudica a atividade diagnóstica, sempre que ela tenha como objetivo os interesses de um único paciente. Tais interesses são sempre valorizados acima de quaisquer outros pela ética profissional: na busca, de forma conscienciosa, da satisfação desses interesses, é admissível o erro, inerente a qualquer atividade profissional.

Esse quadro muda quando estão em jogo os interesses conflitantes de dois pacientes – o potencial doador e o receptor. Como regra fundamental de máxima importância, a recuperabilidade do primeiro não pode ser limitada pelos interesses do segundo.

Estudo que se estendeu por vários meses para determinar a extensão dessa margem de erro, pela contraposição dos conceitos que levaram à elaboração, há 30 anos, dos critérios para o diagnóstico de morte cerebral, com o desenvolvimento da neurociência ocorrido no mesmo período, apresentou resultados surpreendentes.

Eles provocaram manifestações de diversos pesquisadores, inconformados com a ausência de base científica dos critérios diagnósticos elaborados a partir de janeiro de 1968, na Universidade de Harvard (EUA). A comissão encarregada de elaborar os critérios diagnósticos naquela universidade reuniu-se apenas um mês após a ocorrência do primeiro transplante cardíaco, realizado na Cidade do Cabo (África do Sul), quando o prognóstico de irrecuperabilidade do coma profundo, associado à ausência de controle da função respiratória, foi pela primeira vez usado para justificar a retirada de órgão vital.

Atraído pelo acontecimento pioneiro, em dezembro de 1967, um repórter da revista semanal americana Newsweek perguntou aos autores da façanha se haviam esperado a parada do coração do doador para, somente então, retirá-lo e, em caso positivo, se haviam tentado reanimar a doadora antes do ato cirúrgico. Impaciente, Marius Barnard (irmão de Christian, o chefe da equipe cirúrgica) qualificou a pergunta de impertinente e acrescentou: “Nossa obrigação era para com ele (o receptor) e não para com essa jovem (a doadora, vítima de acidente de trânsito).” Concluiu o repórter: “Você está morto quando seu médico diz que está!”

Em janeiro de 1968, premidos pela necessidade de viabilizar, do ponto de vista legal, a retirada dos órgãos vitais desses pacientes com prognóstico de irrecuperabilidade, viabilizando-se, assim, o transplante desses órgãos também nos Estados Unidos, reuniram-se os membros da comissão de Harvard e, alicerçados em sua experiência (vivência) profissional, denominaram diagnóstico aquele prognóstico. Redefiniu-se a morte, qualificando-se de portador de morte encefálica todo indivíduo que se mantivesse, ao longo de um determinado período de observação, em coma profundo, sem respiração espontânea e com ausência de reflexos cefálicos (reflexos verificados na cabeça do paciente, tais como a contração das pupilas determinada pela exposição dos olhos à luz intensa).

Evidentemente, sempre que o comportamento de uma variável qualquer é observado ao longo de um intervalo de tempo, com o objetivo de inferir-se quanto a seu comportamento futuro, está-se prognosticando, não diagnosticando. No entanto, essa inconsistência científica e conceptual elementar foi relevada, não somente pela experiência profissional dos médicos, que afirmavam que “pacientes em tal estado não se recuperam”, mas também por apelo aos conceitos vigentes na época, relativos aos mecanismos que levariam o paciente a esse estado de ausência das funções neurológicas. O edema (inchaço) do cérebro, provocado, por exemplo, por um traumatismo craniano, em face da resistência da parede óssea do crânio à sua expansão, determinaelevação da pressão hidrostática no espaço intracraniano, com conseqüente compressão dos vasos sangüíneos, parada circulatória e necrose (morte) das células cerebrais.

Afirmava-se, na época, que a ausência das manifestações neurológicas enunciadas teriam origem na parada completa da circulação sangüínea cerebral, determinando a necrose de todo o tecido nervoso intracraniano em minutos. A observação ao longo de horas seria, portanto, suficiente para a definitiva comprovação da morte. A comissão de Harvard, no entanto, admitiu exceções, criando o que se convencionou chamar critérios de exclusão: pacientes que estivessem hipotérmicos (com a temperatura corporal inferior à normal) ou sob o efeito de drogas depressoras do cérebro, sabidamente recuperavam-se, apesar de apresentarem aquele quadro clínico próprio da morte cerebral.

Assim, as presenças de hipotermia ou do efeito de sedativos foram instituídas como impedimentos para o diagnóstico da morte encefálica, porque, conforme imaginou a comissão, tanto as drogas sedativas quanto a hipotermia poderiam simular o quadro clínico da morte cerebral. Nos anos seguintes, denunciaram-se clamorosas falhas no raciocínio dos propositores daqueles critérios diagnósticos (prognósticos). Provavelmente a mais destrutiva dessas críticas apontava para o fato, há muito conhecido, de que o controle da temperatura do organismo é feito pelo próprio cérebro, sendo, portanto, impossível considerá-lo morto quando ainda mantenha a temperatura do organismo em níveis normais.

Assim, seguindo-se os critérios propostos pela comissão de Harvard, para que fosse possível o diagnóstico de morte encefálica o paciente não poderia apresentar níveis baixos de temperatura corporal. No entanto, a presença de temperatura normal ou elevada comprova a atividade (e portanto a vitalidade) do tecido nervoso. Em 1992, a internacionalmente respeitável figura do médico neurologista James L. Bernat, presidente da Comissão de Ética da Academia Norte-Americana de Neurologia, surgiu em socorro da morte encefálica. Em artigo publicado no Journal of Clinical Ethics naquele ano, Bernat propôs que nem todas as partes do cérebro devem morrer para que o diagnóstico seja possível. Em outras palavras, o diagnóstico de morte encefálica seria aceitável ainda que as regiões do cérebro responsáveis pelo controle da temperatura permanecessem vivas. Recuava-se quanto à proposta inicial da comissão de Harvard, de que os critérios diagnósticos por ela enunciados identificariam a presença da destruição completa de todo o tecido nervoso intracraniano. Sustentava-se, no entanto, o diagnostico, e com ele, o sistema de transplante de órgãos vitais.

É justamente nesse contexto que se inserem as críticas veiculadas pelo site da UNIFESP (www.epm.br), na seção de Serviços ao Público. Nela aponta-se para o fato de que a quantidade de energia gasta para a execução das funções neurológicas avaliadas segundo os critérios diagnósticos propostos pela comissão de Harvard, é três vezes superior àquela necessária para o controle da temperatura do organismo. Por sua vez, a quantidade de energia necessária para manter vivas quaisquer das células cerebrais é ainda inferior a essa última. Portanto, à medida que lentamente se eleva a pressão hidrostática intracraniana (reduzindo-se a circulação sangüínea e com ela o suprimento energético ao tecido nervoso), o paciente atravessa um estágio inicial em que as funções neurológicas avaliadas pelos critérios de Harvard não mais se encontram ativas, mas são apenas detectáveis as funções que requerem baixo gasto energético, como o controle da temperatura.

Nesse estágio, apesar de que todas as células cerebrais recebem energia suficiente para sobreviver, o paciente pode ser dado como morto, por satisfazer critérios diagnósticos que focalizam exclusivamente as atividades celulares que requerem mais alto gasto energético (consciência, reflexos cefálicos e controle da respiração). Nessa fase, a execução do teste da apnéia, em que o respirador é desligado por 10 minutos (ao longo dos quais 40% dos pacientes apresentam grave queda da pressão sangüínea e mesmo paradas cardíacas fatais), pode levar a circulação sangüínea cerebral ao colapso total, provocando-se a morte que, com o teste, pretendia-se apenas diagnosticar. Quaisquer exames confirmatórios realizados a seguir podem evidenciar apenas o efeito mortal do teste da apnéia.

As críticas veiculadas no site da UNIFESP apontam também para o fato de que, passados 30 anos da elaboração daqueles critérios, hoje aplica-se a hipotermia induzida (resfriamento proposital do organismo) e o coma induzido (coma provocado por altas doses de medicação depressora do sistema nervoso) para tratamento das situações que normalmente evoluem para a morte encefálica (veja-se como exemplo o caso do ator Gerson Brenner). Sabe-se hoje que particularmente o resfriamento do organismo é capaz de impedir, e mesmo reduzir, o inchaço do cérebro, normalizando a pressão intracraniana e a circulação cerebral, o que salvaria o paciente da “morte encefálica”.

O princípio determinante desse efeito é provavelmente o mesmo envolvido na aplicação de gelo nas primeiras horas que se seguem a uma entorse ou contusão comum, para evitar-se o “inchaço” da zona afetada. Dessa forma, chega-se a uma situação absurda: sempre que o diagnóstico de morte cerebral for feito em vítimas de traumatismo craniano (que compõem a quase totalidade dos doadores de órgãos vitais no Brasil), necessariamente o paciente não terá tido acesso e esses novos e mais efetivos recursos terapêuticos. Em outras palavras, não terá recebido os cuidados terapêuticos adequados, pois os critérios vigentes exigem a ausência de hipotermia e de drogas sedativas para que o diagnóstico possa ser firmado. Como a quase totalidade dos hospitais que funcionam como fontes arrecadadoras de órgãos no Brasil não se encontra preparada para proporcionar o tratamento hipotérmico (resfriamento induzido) a esses pacientes, comprova-se o absurdo.

Como justificar a ausência desses recursos com a falta de verbas, quando somas vultosas estão sendo aplicadas na implantação do sistema de captação de órgãos desses mesmos pacientes? Como justificar o fato de que, atualmente, em diversos hospitais públicos brasileiros, os pacientes sob risco de vida (risco inclusive de desenvolverem morte encefálica), disputam leitos de UTI com pacientes já rotulados como tal, e ali permanecem apenas aguardando os resultados dos exames que os qualifiquem como doadores? Deixa-se os primeiros nos corredores do pronto-socorro do hospital até que desenvolvam o quadro compatível com a morte encefálica? Para onde serão deslocados então, até que aguardem os exames preliminares para a doação?

A eficiência da hipotermia e das altas doses de sedativos para antagonizar os mecanismos determinantes da morte encefálica suscita uma pergunta aterradora: terão sido os eminentes membros da comissão de Harvard descuidados a ponto de não considerarem a possibilidade de que os pacientes em hipotermia recuperam-se justamente pelo efeito terapêutico da baixa temperatura, e não apenas porque ela possa simular o quadro clínico da morte cerebral? Em face das retaliações suscitadas pelas críticas públicas aos critérios diagnósticos de morte encefálica, um novo texto, escrito em inglês, foi colocado no site da UNIFESP em julho passado, para obter impressões dos próprios propositores internacionais da morte encefálica. Cartas e emails foram enviados, em resposta, por estudiosos da morte encefálica de vários países.

Destaca-se a opinião de James Bernat, em carta datada de 8 de outubro, endereçada “a quem interessar possa”: “Em minha opinião, este texto faz uma contribuição importante à precária literatura corrente relativa às bases científicas para o emprego de testes diagnósticos de morte encefálica. Eu acredito que a hipótese e os dados apresentados pelo doutor Coimbra são cientificamente válidos e merecem ser publicados.”

Destaca-se também a opinião de Alan Shewmon, manifestando-se como membro da Comissão Organizadora do Terceiro Congresso Mundial sobre Coma e Morte: “Em nome da Comissão Organizadora, gostaria de convidá-lo a apresentar sua estimulante pesquisa. A Comissão considera o seu trabalho altamente original e de grande importância potencial, tanto para os aspectos clínicos quanto éticos que envolvem a morte encefálica.” Destaca-se ainda a manifestação de Yoshio Watanabe, diretor do Centro Médico de Toyota, que declara em carta de 16 de outubro passado, comentando os resultados surpreendentes obtidos no Japão pelo professor Nariyuki Hayashi, que permitiu que 14 entre 20 vítimas de traumatismo craniano grave, submetidas ao tratamento hipotérmico, reassumissem sua vida normal: “Ao ler os artigos escritos pelo professor Coimbra sobre os efeitos neuroprotetores da hipotermia demonstrados por seus estudos experimentais, pode-se agora claramente entender porque a técnica do professor Hayashi é capaz de salvar tantos pacientes aparentemente desenganados, e porque a não aplicação do teste da apnéia realmente contribui para o alto grau de sucesso em evitar-se a morte encefálica real.” (…) “Um diagnostico apressado de morte encefálica sem tentar-se essas novas medidas terapêuticas pode muito bem constituir-se em assassinato, ou pelo menos em imperícia médica” (…) “Creio que o último artigo do professor Coimbra, intitulado Implicações da penumbra isquêmica para o diagnóstico de morte encefálica, deva serimediatamente publicado em uma das mais prestigiadas revistas internacionais e a informação nele contida deva ser distribuída a todos os cientistas da área básica, a todos os clínicos, tanto quanto a pessoas leigas, de forma a promover-se maiores e mais sériasdiscussões em relação ao conceito de morte encefálica e ao transplante de órgãos utilizando, como doadores, pessoas declaradas como encontrando-se em estado de morte encefálica.”

Eis então aqui declarado o dilema do jornalismo brasileiro, confrontado por seu próprio ideal de bem informar ao seu público: Manter-se-á ainda assim susceptível à argumentação de que os critérios utilizados para o diagnóstico de morte encefálica são indiscutivelmente aceitos a nível internacional? Manter-se-á sensível à argumentação de que polêmicas sobre esse tema devem ser abortadas, de forma a não provocar desconfiança no público quanto à falibilidade dos médicos em diagnosticar a morte encefálica?

O que espera da mídia aquele que busca a informação? Espera ouvir, ver e ler apenas notícias filtradas, direcionadas para formar opinião em favor do sistema de captação de órgãos? Considerando os resultados obtidos pelo professor Hayashi, entre as 10 mil pessoas que morrem anualmente com o diagnóstico de morte encefálica, no Brasil, quantos pais de família, filhos e mães poderiam reassumir sua vida normal, voltando ao convívio de seus familiares, para os quais sua morte constituir-se-ia em perda irreparável, sofrimento que jamais se apaga?

Não é correto expor o cidadão à polêmica, esperando que dela sobreviva, afinal, apenas a verdade, fortalecida, seja ela qual for?

(*) Médico neurologista, pesquisador e professor universitário