Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um exemplo didático

MÍDIA & CIÊNCIA

Paulo Bento Bandarra (*)


"Era uma vez um sujeito valente, que teve a idéia de que os homens só se afogavam na água por estarem tomados pela idéia da gravidade. Se tirassem esta idéia da cabeça, digamos, reconhecendo tratar-se de um conceito supersticioso, religioso, eles seriam sublimemente resistentes a qualquer perigo advindo da água. Durante a vida inteira este homem lutou contra a ilusão da gravidade, de cujas conseqüências prejudiciais todas as estatísticas lhe traziam provas novas e múltiplas." (Karl Marx, Ideologia alemã)


É a segunda vez que coloco num texto esta referência, que acho muito ilustrativa dos tempos modernos, mesmo tendo sido escrita há 150 anos e apesar de estarmos em vias de pisar em Marte ? visto que pessoas encarregadas de formar opinião, os jornalistas, ainda não sabem que sobre as águas não se pode caminhar e nem desconfiam por quê. Pois na edição da revista Superinteressante de janeiro de 2004 a reportagem de capa chama para um assunto que a mídia tem tido muita dificuldade de abordar: a comparação da medicina com as práticas que se propõem alternativas ao conhecimento científico.

A matéria é assinada por Barba Soalheiro, que se encarrega de informar ao leitor qual a diferença entre ambas e se funcionam tais práticas. As revistas científicas primam pela qualidade do material, pois perdendo a confiança dos leitores decretam sua sentença de morte, coisa com que as revistas para leigos não têm a mínima preocupação.

Começa a matéria citando o pai da medicina, Hipócrates (460-377AC). Aborda sua grande importância, pois separou pela primeira vez na história as origens das doenças das causas "espirituais" e de "forças maléficas" alheias à natureza. Afirmou que as causas das enfermidades eram naturais, passíveis de serem conhecidas e dominadas pela arte. Mas, erroneamente, a articulista atribui isto que a medicina sempre defendeu e buscou no ambiente, as causas das doenças, como tendo sido trazido pelas práticas alternativas ao conhecimento científico. Na verdade, elas atribuem as origens ao místico e a energias invisíveis.

A medicina é uma só, e é a praticada em todos os locais pelas pessoas que se formaram em Medicina, que é uma profissão que se apóia nas ciências básicas, nas ciências médicas e na experiência de anos de pesquisa e prática. Uma alternativa deve em princípio ter o mesmo efeito, senão um caminho que não nos leve aonde queremos chegar, à cura, não pode se chamar assim. E, neste aspecto, a medicina científica só incorpora alternativas que tenham o mesmo resultado, e não teorias místicas que prometem caminhar sobre as águas, mas não têm como levar o doente aonde ele precisa ir.

Cinco mil anos atrás

Por isso, as alegações místicas são descartadas de saída: quem já caminhou no mar sabe que não há meios de se caminhar sobre as águas de forma fácil. Erra ao atribuir a uma gama enorme de apregoações uma unidade que não existe nem em base e nem em tradição. São na verdade meras práticas anticientíficas independentes, como a homeopatia, a "medicina" chinesa, os florais de Bach (inventado pelo ex-homeopata Edward Bach (1886-1936)), a cromoterapia, a iridologia, a "medicina" ayuvérdica, a "medicina" espiritual, a "medicina" antroposófica, terapias por cristais, reike, radiestesia, todas sem a base de uma unidade epistemológica, mas que prescindem totalmente do conhecimento de fisiopatologia científica, além das práticas pseudocientíficas, como "medicina" ortomolecular, urinoterapia, quiropraxia, drenagem linfática, terapias de vidas passadas, todas igualmente sem unidade, interpretações errôneas da ciência. O interessante é que estas práticas, chamadas holísticas, que integram a alma ao corpo como uma visão superior defendida pela articulista, descartam toda a necessidade de se estudar o corpo material, que é acessível à ciência, e são praticadas por pessoas sem estes mínimos conhecimentos.

Assim, chamar a medicina científica de ocidental ortodoxa demonstra desconhecimento mínimo que se deveria ter ao abordar um assunto científico, que é o de dominar, pelo menos, o significado das palavras do vernáculo. Neste aspecto, a ciência não é ocidental, pois na China, no Japão e na Índia se mede a temperatura da água e a força da gravidade, e a ação da penicilina se opera da mesma forma na parede celular. Não há diferença alguma pelo hemisfério em que se dão os fenômenos científicos, razão pela qual se consegue pousar um jipe-robô no planeta Marte. Ortodoxo significa "relativo a ou conforme com a ortodoxia, que professa os padrões, normas ou dogmas estabelecidos, tradicionais". Ora, nenhuma prática que neste momento se está fazendo dentro de uma UTI, de um centro de neurocirurgia, no uso de um exame de ressonância magnética, numa terapia genética, tem a ver com crença ou tradição. São ações do que mais moderno existe no campo científico, e nenhum remédio é dado por dogma, tradição ou crença no sobrenatural. No entanto, todas estas práticas médico-científicas estão, sim, baseadas nos conceitos de René Descartes (1596-1650), e continuam fazendo sentido. O princípio com que se está desvendando o código genético é este, o entendimento da natureza como algo cognoscível e que tem "mecanismos" próprios, e não mágicos. Esta é uma idéia básica ensinada na minha época no primário: quem quer falar em ciência não pode errar de forma tão grosseira.

Ortodoxa só podemos chamar a homeopatia, que se orgulha de ser "clássica" e se basear em dogmas que a ciência, há 200 anos, mostra serem falsos. Uma, por não ter uma base racional, só fantástica, e a segunda, pela exaustiva tentativa de mostrar efetividade, evidenciou ser puro efeito placebo. Mas Hahnemann, que inventou toda a prática imutável, voltou ao princípio de que as doenças não tinham causas naturais, retornou a idéias pré-hipocráticas (arcaicas em ciência), de que eram devidas a forças espirituais e a castigos pelos pecados praticados pelo homem. Basta ver que a Associação Médica Americana, a Federação Médica Alemã (Medizinische Verbände und Organisationen), a Associação Médica Canadense, a Associação Médica Britânica e a Academia Francesa de Medicina não consideraram a homeopatia uma prática médica. Podemos chamar de ortodoxa, também, a "medicina" chinesa, que se baseia em crença esotérica imutável há 5 mil anos, alega caminhar sobre as águas e não demonstra ser capaz disso também.

Pesquisas coerentes

A ciência dá as costas às alternativas? Não. As alternativas é que deram as costas à ciência e querem ser reconhecidas como tal sem passarem pelo mesmo crivo dos medicamentos que se usam na UTI, com que tratamos uma neoplasia na quimioterapia, que comprove o mesmo que uma cirurgia de ponte de safena realiza. Afinal, o desenvolvimento enorme em terapias, novos exames, novas técnicas cirúrgicas, o descobrimento de novos tratamentos provam que a medicina busca exaustivamente novas alternativas constantemente. Para uma pessoa com boa formação acadêmica, ouvir alguém apregoando os milagres de um copo de capim liquidificado, uma dose de urina pela manhã todo dia, caldinhos de flores para "energizar" o espírito ou gotículas de água ultra-diluída bem sacudidas, de antemão sabe que nem precisa fazer trabalho algum, pois a ciência já demonstrou que se afunda ao tentar caminhar na água, independentemente da crença que temos nas nossas boas intenções ou na nossa imponderabilidade.

Alega-se o uso crescente destas práticas que se propõem alternativas ao conhecimento científico como demonstração de verdadeiro paradigma. Se as pessoas estivessem sendo bem-informadas sobre as bases do conhecimento, ensinadas a desenvolver senso crítico, isso não estaria ocorrendo. Mas a idéia mística está voltando não apenas na medicina, em que é uma conseqüência do comportamento de fim do século. Basta assistirmos o crescimento das religiões e suas guerras e mortes por este motivo, para reconhecermos que o secularismo está em retração e o irracional tem marcado presença ao nosso redor. E, neste aspecto, a imprensa tem uma responsabilidade fundamental de discutir as coisas em todos os aspectos. Mas, esperaríamos, com uma qualidade melhor do que neste exemplo.

Seria falta de dinheiro para trabalhos nesta área? As verbas de financiamento para a ciência sempre são escassas. Mas quem vai investir na obtenção de provas de que se pode caminhar sobre as águas? É lógico que as verbas sejam destinadas a pesquisas coerentes, que tenham algum fundamento científico.

Nas mãos de um curioso

Os trabalhos científicos são raros em "medicina" alternativa. Desperdiçaram-se somas grandes neste aspecto, e os trabalhos são rejeitados pelos sectários quando demonstram a inutilidade da terapia, alegando que a ciência está atrasada e só no futuro se comprovará. Eles adivinharam que funciona, e não aceitam as evidências que demonstram o contrário. Além do que, muitos só têm este ganha-pão e não podem prescindir dele sem risco de falência. No entanto, uma coisa que se propõe alternativa à medicina tem que apresentar o mesmo resultado. Não é da explicação mirabolante que o paciente necessita, mas sim a melhora do seu estado ou a cura equivalente à da medicina.

Isso faz com que o médico seja mais objetivo frente ao paciente, pois não precisa inventar uma história longa e fantasiosa sobre as relações "espirituais" com outras vidas de uma simples amidalite corriqueira que se trata com um simples antibiótico. Não vai criar explicações de energias "misteriosas" para explicar uma apendicite. Mas isso não quer dizer que, ao não perder tempo mistificando, não veja o paciente como um todo. Ciente da enormidade do conhecimento médico atual, que obriga as especialidades a se dividirem em subespecialidades devido às alternativas descobertas, sabem que o colega que assim se especializou pode dar uma solução mais rápida e atualizada.

Afinal, o texto da Superinteressante não respondeu ao leitor o que são as "duas medicinas" e deixou no ar o que se propôs. Elas funcionam ou não? Respondo que os enfermos só devem confiar, para seu restabelecimento, em práticas que não venham a perder mais saúde, tempo desnecessário e dinheiro inutilmente. E nisto, como em qualquer atividade humana, é prudente que se recorra ao que já tem comprovação do resultado. O resto é especulação.

Ninguém voaria num avião de testes inventado por um leigo, mas coloca a vida nas mãos de um curioso…

(*) Médico

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