Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um tiro no pé da brasilidade

REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS

Cláudio Julio Tognolli (*)

Causou espécie que o Brasil tenha votado na última quinta-feira (24/7) pela suspensão da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) da Comissão de Direitos Humanos da ONU, pelo prazo de um ano. A posição oficial, afeita à decisão, indica que tudo foi gerado em decorrência de protesto organizado pela RSF, em março passado, contra a decisão de permitir à Líbia uma cadeira comissão da ONU.

Em seus últimos relatórios, RSF vem apontando sem piedade o cerceamento de liberdades em Cuba e na Líbia. E foi justamente por iniciativa de Cuba que a RSF obteve a suspensão corrente. A peça de resistência a ter deflagrado toda a crise é um documento longo e detalhado, que põe a nu a bandalheira das Nações Unidas, elaborado por Jean Claude Buhar, da RSF, intitulado “Descrédito da Comissão de Direitos Humanos das
Nações Unidas: negociatas, incompetência e não-ação”, cuja íntegra, em formato PDF e no idioma espanhol, pode ser obtida em <http://www.rsf.fr/IMG/pdf/Rapport_CDH_esp.pdf>.

Repórteres Sem-Fronteiras tem mostrado, exaustivamente, e exposto ao osso sobretudo, disquisições estruturais que desmascaram democracias de boutique e maquinações geopolíticas que, numa bizarra coreografia semântica, omitem primeiro ? para depois omitir de novo, o que realmente acontece no íntimo em que as decisões são tomadas.

Vejamos:dados de 2002 revelam que nesse ano ocorreram no mundo 1.526 execuções e 3.248 condenações à morte, em 67 países. Nos EUA, justamente no bastião da liberdade de imprensa, mais Irã e China, ocorreram 81% dessas quase 1,6 mil execuções. A pergunta que a RSF se faz, e que lhe custou o index, é : por que a Comissão de Direitos Humanos não propõem sanções a tais executores en masse, incluindo os EUA?

Apesar disso, os Estados Unidos foram contra a suspensão da RSF. Votaram a favor da medida 27 países: Arzeibaijão, Benin, Butão, Brasil, Burundi, China, Congo, Cuba, Egito, Etiópia, Gana, Índia, Irã, Jamaica, Quênia, Líbia, Malásia, Moçambique, Nepal, Nigéria, Paquistão, Quatar, Federação Russa, Arábia Saudita, África do Sul, Uganda e Zimbabue. Votaram contra a suspensão 23 países: Andorra, Austrália, Chile, El Salvador, Finlândia França, Geórgia, Alemanha, Grécia, Guatemala, Hungria, Irlanda, Itália, Holanda, Nicarágua, Peru, Portugal, República da Coréia, Romênia, Suécia, Ucrania, Reino Unido e Estados Unidos.

As abstenções ficaram por conta da Argentina, Equador, Japão e Senegal.

Repórteres sem Fronteiras, ora suspensa, é a mesma que divulga números sempre estarrecedores. Como esses, por exemplo, relativos a 2002:

** 25 jornalistas foram mortos (contra 31 em 2001);

** pelo menos 692 foram presos (contra 489 em 2001);

** pelo menos 1.420 jornalistas foram fisicamente atacados ou ameaçados (716 em 2001);

** pelo menos 389 meios de comunicação foram censurados (378 em 2001).

Apesar de as 25 mortes do ano passado representarem um decréscimo se comparadas às 31 de 2001, todas as outras estatísticas pioraram. O número de prisões, ataques físicos e ameaças contra jornalistas saltou em 2002, ultrapassando os dados de 2001. Faute de mieux, era de se esperar que uma organização que tanto trabalha pela liberdade de imprensa e democracia de informações não merecesse a condenação da pátria dessas bandeiras ? os EUA ? que segundo a RSF executou no ano passado, legalmente, 71 pessoas. Nada mais claro: cairia mal para o país da liberdade de expressão censurar a RSF num voto geopolítico.

Aleivosias e tecnicalidades

Agora, cabe a pergunta: por que o Brasil votou contra a RSF? Pela velha e repassada política do coronelismo.

Falemos de OEA, Organização dos Estados Americanos: há ali tramitando contra o Brasil, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 97 casos de incúria, imperícia, e desobediência das normais internacionais de apuração de crimes. São, portanto, 97 denúncias de que o Brasil não leva à frente investigações sobre homicídios, corrupção, clientelismo e violação de direitos humanos ? a maioria delas dilatadamente divulgadas pela imprensa.

“Um grande problema que as ONGs de direitos humanos encontram é a morosidade com que o Brasil cumpre as recomendações da OEA ou as medidas cautelares que obrigam o Brasil proteger pessoas ameaçadas de morte”, explica este Observatório Sandra Carvalho, diretora da ONG Justiça Global, comandada pelo professor de Harvard James Cavallaro.

Outro fato importante, ressalta Sandra: os relatores especiais da ONU como Nigel Rodley, da Tortura, e Jean Zigler, do Direito à Alimentação ? e agora Asma Jahanguir, das Execuções Sumárias, que chega ao Brasil em 16 de setembro ?, têm produzido relatórios contundentes contra o Brasil, com diversas recomendações que não têm sido implementadas. Avalia a diretora da ONG Justiça Global “que a imprensa tem cumprido um papel fundamental de denúncia e fiscalização do governo brasileiro no que diz respeito aos direitos humanos ? a banda boa da mídia, não a que viola direitos humanos”.

O voto do Brasil pela punição da RSF foi um tiro dado no próprio pé da política externa brasileira. Deixou claro que nossa realpolitik continua a do toma-lá-dá-cá. Somos ainda filhos espirituais da contra-reforma católica: que se mandem à fogueira os homens da RSF porque deles é a culpa de lastrearem, como bons jornalistas que são, violações de direitos humanos e de direito à informação, inclusive de processos judiciais que acabam gerando, diretamente, essas 97 petições que correm contra o Brasil na OEA.

No final da tarde de sexta-feira (25/7), a página do ministério das Relações Exteriores do Brasil na internet pôs no ar a seguinte nota à imprensa:


“Ministério das Relações Exteriores

Assessoria de Comunicação Social

Palácio Itamaraty, Brasília-DF, CEP: 70170-900; telefones: (61) 411-6160/2/3; fax (61) 321-2429; e-mail <imprensa@mre.gov.br>

Nota n? 297 ? 24/07/2003 # Distribuição 22 e 23

Decisão do ECOSOC sobre a ONG Reporters Sans Frontières ? International

O Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) considerou hoje, 24 de julho, o relatório do Comitê de Organizações Não-Governamentais das Nações Unidas. O relatório recomendou a adoção, pelo ECOSOC, de decisão suspendendo, por um ano, o status consultivo especial da ONG ?Reporters Sans Frontières ? International?, por considerar haver aquela organização infringido dispositivos relativos à participação das ONGs nas Nações Unidas, tais como estipulados pela Resolução 1996/31 do ECOSOC, de 25 de julho de 1996. A recomendação do Comitê foi motivada pela atuação inadequada da mencionada ONG durante a última reunião da Comissão de Direitos Humanos, bem como pelo fato de não terem sido por ela apresentados nos últimos anos relatórios sobre sua contribuição para os trabalhos das Nações Unidas, como exigido pelos regulamentos.

A decisão foi aprovada pelo ECOSOC por 27 votos a favor, 23 votos contra e 4 abstenções.

O Brasil votou a favor por entender que o procedimento aplicado pelo Comitê ? órgão competente para deliberar sobre questões relativas ao relacionamento das ONGs com as Nações Unidas ? foi regular e observou as regras pertinentes, inclusive quanto ao direito de defesa.

Após o voto, o Brasil formulou declaração em plenário, na qual reiterou a importante contribuição das ONGs para o trabalho das Nações Unidas e para os avanços na área dos direitos humanos.”


Mais uma comprovação, como queríamos demonstrar: a linguagem de cartório notarial, filha da burocracia medievo-católica, dá conta do recado. O Itamaraty varreu para baixo do tapete as questões centrais, e se ateve ao formalismo gongórico. A peça informativa à imprensa é mais um dos tantos exemplos de quem leu com afinco, e a aprendeu com rigor, as lições de um Eichmann (vide Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt) ou de um Oliver North (sim, o repórter da Fox no Iraque) quando do escândalo Irã-Contras: tecnicalidades, aleivosias de ordem processual, ritualismos de cunho notarial, artimanhas de talhe classificatório, enfim, tudo serve para justificativas. Mas jamais a verdade.

(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor da ECA-USP e do Unifiam (SP), membro do International Consortium of Investigative Journalists (www.icij.org)