Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um vírus nacionalista está no ar

PRODUÇÃO AUDIOVISUAL

Nelson Hoineff (*)

Na semana passada os jornais noticiaram a mudança de tom das associações de distribuidores de programação americanos, tanto de cinema quanto de televisão por assinatura, em relação às medidas propostas pelo Gedic (Grupo Executivo Para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica) para limitar a presença da programação estrangeira nas telas brasileiras. Enquanto Arnaldo Jabor reproduzia um poema que havia escrito 25 anos antes esculhambando Jack Valenti, a Folha de S.Paulo assinalava que tanto a TAP (que representa os distribuidores de programação para TV fechada) quanto a MPA (que fala em nome das sete principais distribuidoras de cinema) haviam decidido abrandar as posições anunciadas antes, que incluiam até a suspensão da distribuição de alguns canais americanos para os operadores brasileiros.

Não é exatamente o que aconteceu. Os distribuidores, seguindo a doutrina imposta pelo próprio Valenti desde o final dos anos 70, voltaram-se para os discretos lobbies políticos como os principais mecanismos de sustentação de suas posições. A mudança não está neles, mas no lado brasileiro, que costumeiramente ladrava muito mais do que mordia, e bem recentemente percebeu a eficiência maior da ação política. O próprio Gedic, instalado no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, é um bom exemplo disso. A luta se dá muito mais nos gabinetes do que nas declarações inflamadas aos jornais, o que aliás havia sido feito dias antes em matéria de impacto competentemente arquitetada junto ao Jornal do Brasil.


Custo residual

É uma irônica coincidência, muito mais do que uma convergência de posições, o fato de que a Globo esteja justamente neste momento empenhada até o último fio de cabelo em lutar contra a presença do capital estrangeiro nas redes brasileiras de televisão. A Globo lança mão do último argumento que dela se poderia esperar: o de que sua programação é hoje um fator essencial para a preservação da identidade cultural brasileira ? e o enfraquecimento dessa produção resultaria na tomada do espaço cultural justamente pela produção alienígena.

Nada mau para quem há um par de anos era vista como a principal responsável pelo extermínio em massa das culturas regionais brasileiras. A ironia é que, como na metáfora do rabino para sua mulher, todos os lados estão certos.

A sabedoria do rabino consiste em olhar para a questão alternando o ponto de vista de cada uma das partes. No caso da distribuição da programação estrangeira nas televisões, há um fato estratégico que teima em ser o fiel da balança para dizer quem tem razão: o de que estamos no limiar da implantação das plataformas digitais de transmissão e recepção.

Quando se olha a questão sob esse filtro, o que se vê do outro lado é o aumento colossal das demandas de programação. É aí, e não na readaptação técnica das emissoras, que está o calcanhar de Aquiles da televisão brasileira nos próximos anos. O custo do equipamento é quase residual se comparado ao custo de programação ao longo de um período razoável de, digamos, cinco anos.


Sinal vermelho

As estrelas do Broadcast & Cable, a grande feira de equipamentos profissionais que aconteceu durante a semana em São Paulo, eram as novíssimas câmeras HDTV de 24 frames que acabam de ser lançadas no mercado internacional. Pois bem: esse top de linha custa menos do que dois capítulos da novela das 8. O que isto significa, na prática, é que, nos moldes em que as redes se estruturam hoje no Brasil, dificilmente haverá espaço para mais que duas ou três bem antes do final desta década.

A saúde da televisão passa então pelo estabelecimento de condições mínimas de competitividade, da mesma maneira que pelo fortalecimento da produção nacional. O sofisma atual consiste em insinuar que uma e outra são mutuamente excludentes.

Se isso fosse verdade, então o melhor jornal brasileiro seria a edição traduzida do The New York Times. O rabino tem razão: é tão essencial para a televisão brasileira sustentar a identidade nacional por meio de uma programação feita localmente quanto o é encontrar condições mínimas de sobrevivência pelas regras legítimas do mercado. E, no entanto, é inquestionável hoje que as pequenas redes não terão no futuro imediato qualquer possibilidade de produção própria, de compra de programação ou mesmo de comercialização da programação disponível. Há cinco meses, por exemplo, o sinal vermelho acendeu na pequena Rede TV! quando a emissora percebeu que simplesmente não conseguiria vender o Carnaval e o futebol que lhe haviam sido repassados pela Globo.

O vírus nacionalista que está no ar acaba revelando dessa maneira uma enfermidade latente, porém bem mais complexa do que a simples defesa do produto brasileiro. Extrai-se disso, por enquanto, apenas a evidência de que nem todo vírus é intrinsicamente ruim.

(*) Jornalista, diretor e produtor de televisão, autor de TV em Expansão e A Nova Televisão. Em 2000 realizou o primeiro documentário brasileiro em HDTV, "…antes", para a Mostra do Redescobrimento

    
    
    
          

Mande-nos seu comentário