Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma correspondente engajada

ENTREVISTA / JAN ROCHA

Daniel Castro (*)

Num dos salões do Hotel Grand Hyatt, na Marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo, mais de 50 jornalistas reuniram-se em outubro para comemorar os 25 anos da Associação dos Correspondentes Estrangeiros de São Paulo (ACE-SP). Entre os homenageados na noite estava Jan Rocha. A jornalista e escritora inglesa, nascida na cidade de Purley, ao sul de Londres, num breve agradecimento ? e por experiência própria ? alertou a platéia: não fiquem muito tempo no Brasil. Vocês podem acabar casando com um brasileiro…

Jan casou com um brasileiro e com o Brasil. E essa união já vem de longe. Correspondente no Brasil do BBC World Service por mais de 25 anos, e do jornal The Guardian, durante dez anos, entre outras publicações, Jan Rocha mereceu a homenagem dos seus colegas estrangeiros de profissão, pois em 15 de julho de 1977 reuniu em sua casa 13 jornalistas, ajudando a formar o que viria a ser a Sociedade de Imprensa Estrangeira de São Paulo (Siesp), o embrião da ACE-SP.

Além da defesa da própria categoria profissional, Jan sempre priorizou a luta pelo respeito aos diretos humanos, tendo fundado, em 1978, com Luiz Eduardo Greenhalgh e James Wright, o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos nos Países do Cone Sul. "Vi de perto o que foi o regime militar. Eu não tinha como não me engajar. Nunca conseguia mandar uma notícia sem me envolver", diz a jornalista, em entrevista ao OI reproduzida abaixo. Parte dessa vivência no Brasil pode ser acompanhada em seus livros: Brazil in Focus (1997), Murder in the Rainforest (1999), Brazil: Country Profile (2000) e Cutting the Wire: the History of the MST (2002).

Jan Rocha atualmente coordena pesquisa para OIT sobre trabalho escravo no Brasil. Sua entrevista:

Como você veio parar no Brasil?

Jan Rocha -
Uma casualidade. Comecei a me interessar pelo país numa roda de amigos, alguns brasileiros, em Portugal. Depois, assisti ao filme Orfeu Negro (1959), do francês Marcel Camus. Mas, diferentemente do que se poderia supor, o que me chamou a atenção não foi a Amazônia. Então assistente social, fiquei fascinada pelos movimentos sociais e pela cultura brasileira. Entrei para uma ONG e trabalhei em projetos nas cidades de Belém e São Paulo. Depois retornei para a Inglaterra.

Como se deu a transformação da assistente social em jornalista?

J.R. -
Eu já havia feito trabalhos em Londres para o pessoal da BBC. Eles conheciam o meu perfil. Precisavam de alguém que conhecesse o Brasil. Também achei interessante a proposta e aceitei.

Você lembra do seu primeiro dia de trabalho?

J.R. -
Foi um verdadeiro batismo de fogo. No primeiro dia tive que cobrir o incêndio no edifício Joelma e a prisão de Ronald Biggs. Depois desse 1? de fevereiro de 1974 eu nunca mais parei.

Não era estranho, naquela época, uma correspondente estrangeira ter São Paulo como base, e não o eixo Rio-Brasília?

J.R. -
E como era… Brasília, por ser a capital, e o Rio, por sua fama internacional, sempre têm mais correspondentes. Naquela época, além de mim, havia talvez cinco jornalistas estrangeiros em São Paulo -
o Rio devia ter uns 50. Mas, gradualmente, São Paulo foi se tornando um importante centro de acontecimentos políticos, sociais e econômicos. Nas ruas da capital paulista ocorreram grandes protestos contra o regime militar. As greves dos metalúrgicos do ABC, comandadas pelo então sindicalista Lula; houve as denúncias de tortura e a morte de Vladimir Herzog nas celas do DOI-CODI; além do importante braço ativo da igreja católica, chefiada por D. Paulo Evaristo Arns. Tudo isso ajudou a cidade a ficar mais conhecida mundialmente. Com o fim do regime militar, começaram a ter mais relevância as notícias econômicas do Brasil. O grande parque industrial paulista, então, começou a despontar nas pautas dos editores das agências internacionais.

A base da BBC no Brasio era em São Paulo?

J.R. -
Não. Essa é uma longa história. Na década de 70, o escritório central da BBC para a América Latina ficava em Buenos Aires. Mas não havia lógica. A começar pela geografia. Não dava para cobrir todos os países, as distâncias eram enormes. Em 1983 ou 84 resolveram transferir o escritório para o Brasil, mas ainda ficava no Rio. No fim dos anos 80 resolvi escrever uma carta ao meu editor em Londres argumentando que era mais viável ter São Paulo como base para a América Latina. Além da geografia do estado, argumentei que os serviços públicos na cidade eram mais rápidos e havia destinos aéreos para todos os lugares. Em 1988, enfim, o escritório veio para São Paulo.

São Paulo, porém, continua sendo pouco conhecida no mundo…

J.R. -
Concordo. A cidade não tem um bom trabalho de divulgação lá fora. E bem que merece. As pessoas não se dão conta de que São Paulo é a terceira maior cidade do mundo. Além da parte industrial e de serviços, reúne gastronomia, cinema, artes e um rico parque arquitetônico, em boa parte ainda conservado. Uma verdadeira floresta de prédios.

Você conhece quase o Brasil inteiro. Quais as principais dificuldades para o trabalho de um correspondente num país desse tamanho?

J.R. -
O Brasil é muito complexo. Um editor na Europa, por exemplo, envia uma pauta sobre matança de índios no Pará. Dependendo do lugar, você pode levar três dias para chegar. Você precisa saber antes, se possível, se a notícia é verdadeira. Para isso você precisa conhecer a história daquele povo e daquela região, ter boas fontes. Isso não é fácil. Sem esse conhecimento, fica muito difícil trabalhar. Outra dificuldade é que o Brasil acaba tendo três "capitais": Rio, Brasília e São Paulo. As três têm uma grande produção de notícias. Em outros países geralmente se tem uma grande cidade.

A internet não ajuda?

J.R. -
Sim, mas tem um limite. Hoje, os correspondentes não viajam mais como antigamente. Isso não é bom. Tem muita notícia de escritório.

Dá para se engajar?

J.R. -
Nesses 25 anos eu vivi num país que passou por grandes turbulências. Eu vi de perto o que foi o regime militar. Por ser correspondente, não era bem vista pelo governo. Eu não tinha como não me engajar. Nunca conseguia mandar uma notícia sem me envolver. Esse engajamento se dava por meio das reportagens que falavam do desrespeito aos direitos humanos. Para muitos isso é um crime. Eu sempre o fiz e não me arrependo. Tem pessoas que não se envolvem. É uma questão pessoal.

Mas você era bem recebida?

J.R. -
Pelo população sim, mas pelo governo… Em 1974, eu enviava notícia sobre tortura. Então eu não era bem-vinda. Era difícil enviar as reportagens. Minha fita tinha que passar pela censura. Esses dias, por exemplo, descobri que uma matéria minha sobre o processo de extração de babaçu no Maranhão recebeu do governo a seguinte menção: "Não contém nada contra os bons costumes do Brasil". Mas não são só os governos militares que não gostam de notícias negativas. Nenhum governo gosta.

Como você driblava a censura?

J.R. -
naquela época a BBC tinha um noticiário de grande abrangência e repercussão, o BBC Brasil. Muitas notícias saíam nesse serviço e não saíam nos jornais brasileiros. Era um bom canal de informação para quem estava exilado. Minhas fontes eram os próprios jornais brasileiros. Eu visitava a redação do Estado de S.Paulo. As matérias que não eram publicadas e, em função da censura, eram trocadas por receitas de bolo, por exemplo, iam parar nos murais do jornal. Eu lia essas notícias e as reproduzia na BBC. Outra fonte eram os próprios processos na Justiça.

O governo reclamava?

J.R. -
Sim. Até recebi uma carta reclamando de uma matéria sobre direitos humanos. Mas a embaixada britânica nunca me pediu para fazer outra coisa. Em geral eu recebia apoio.

O Brasil é hoje uma democracia. Mas uma reclamação comum é que o país não tem um espaço importante na mídia mundial.

J.R. -
O Brasil ainda continua desconhecido. Os principais jornais da Europa e Estados Unidos não têm espaço para a América Latina. Fazem um registro esporádico. A culpa é dos editores. Para a grande maioria, o Brasil não é importante. Isso quer dizer que o país não está em guerra, não fica no Oriente Médio…

Com o governo Lula muda alguma coisa?

J.R. -
Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso visitou Londres, os jornais locais deram pouco ou nenhum destaque. A primeira visita de Lula à Inglaterra pode ter um resultado mais expressivo. O Lula é o primeiro presidente de esquerda eleito no Brasil após a ditadura militar. É um momento histórico. Pode ser diferente.

(*) Coordenador de relações com a mídia da Câmara Americana de Comércio de São Paulo