Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma foto

COBERTURA DE GUERRA

René Armand Dreifuss (*)

A primeira vez que vi esta foto, ela me deu uma sensação estranha;
alguma coisa não estava no seu lugar. Olhando com atenção,
pensei: uma encenação? Um conjunto teatral? Coincidências
de movimentos e quietude? Usei uma lente de aumento e confirmei
uma impressão interessante: a arma do soldado, de cócoras,
não está apontada para as pessoas "paradas"
na sua frente, é dirigida para seu lado esquerdo, descansada,
em inclinação leve para baixo.


FOTO: AP

Mas há outros assuntos que chamam a atenção na foto:

a) uma conversa de pessoas que passam por algum lugar onde haja controle militar, em quadro de conflito, não se desenrola com um soldado situado em "posição" de cócoras; em controle de passagem, um soldado não pode empunhar uma arma do tipo mostrado, e estar disposto a usá-la ? como porrete ou como instrumento de paulada de culatra ? estando em "situação" de cócoras;

b) pensando na possibilidade de ter que usá-la para disparar, é impossível fazê-lo sem estar em alguma das posições de tiro, pois além de atrapalhar pontaria e acerto, o impulso quebraria o ombro ou jogaria a pessoa para trás;

c) a posição de cócoras não é nada comum entre os judeus em Israel, seja para descansar ou para contemplar, mas existe; por outro lado, ela é bastante comum entre partes da população da Cisjordânia ? nos vilarejos, certamente, e não se trata de uma postura agressiva ou de imposição;

d) a mulher, indo (não parada, contida nem detida) pelo caminho (sem nenhum posto de controle militar ou policial à vista) vai em frente e olha para a sua direita, onde está o soldado de cócoras, enquanto as duas crianças compõem o "quadro", equilibrando para trás e para diante, para esquerda e direita, mas olhando de frente para ele;

e) a foto é de um soldado fotografado por trás dele, com o que não é possível ver os traços faciais nem o uniforme;

f) trata-se de um momento captado (podia ser desenhado) e congelado numa foto (lamentavelmente sem som, contexto ou movimento), com a cena sendo fotografada desde o suposto lado israelense.

Por fim, mais uma questão é marcante: não se localiza um soldado em praça deserta, em contexto de tensão e de conflito aberto, para que, junto com as outras três pessoas, sejam as únicas no local. Não há comando que ordene tal localização ou posicionamento, nem soldado que permita ou acate tal ordem.

(*) Professor de Ciência Política da UFRJ e integrante do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp