Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Usar na mídia a linguagem do crime é capitular diante dele

LUNETA GIRATÓRIA

E a revista Veja finalmente entra na cobertura da eleição presidencial

Ricardo A. Setti (*)

1.? Em duas semanas, num período já
proximo das eleições presidenciais, a mídia acabou tomada
pela ampla cobertura das proezas criminosas de dois bandidos do Rio de Janeiro:
"Fernandinho Beira-Mar" e Elias "Maluco". Querem retrato
mais claro das proporções que a questão da criminalidade
e da segurança pública atingiu no país?

Como o tema crime/segurança foi e tem sido fartamente tratado por jornais,
revistas, rádio, TV e portais da internet, vamos abordar aqui apenas
um pequeno aspecto dele ? pequeno, mas significativo para nós, jornalistas:
a linguagem que muitos veículos utilizam para cobrir o crime. Especialmente
no caso de Elias "Maluco", apontado como assassino do repórter
da TV Globo Tim Lopes, veio à tona todo um vocabulário que, utilizado
pelos criminosos e, freqüentemente, pela polícia, foi incorporado
ao linguajar das matérias. Tim teria sido "julgado" e "executado"
por Elias e comparsas. Muitas vezes essas palavras têm sido impressas
sem aspas em jornais e revistas, e na TV e rádio não são
precedidas de qualquer ressalva, nem no tom de voz ou na expressão dos
repórteres que, nesses veículos, são parte integrante e
fundamental do impacto da informação no receptor ? ouvinte ou
telespectador.

Quem julga, no Brasil, é a Justiça. "Executar" deveria,
obviamente, ficar restrito a descrever o cumprimento de penas de morte em países
que a adotam. Em ambos os casos, o uso desses verbos banaliza como prerrogativa
de qualquer um tarefas que são exclusivas ? exclusivíssimas ?
do Estado. Mas a coisa não pára por aí. A irônica
e odiosa forma inventada pelos bandidos para designar locais onde fazem desaparecer,
freqüentemente mutilados, corpos de suas vítimas ? "ponto de
desova" ? ingressou sem maiores reflexões na linguagem jornalística,
e não é de hoje.

Certos programas policiais cafajestes de rádio e TV chegam mesmo a usar,
como se fosse brincadeira, a velha maneira macabra e terrível inventada
pelo crime para renomear o cadáver: "presunto". A mesma incorporação
pela linguagem jornalística acontece com uma série de verbetes
do vocabulário marginal: "soldado" ? palavra que, em países
menos contaminados que o nosso pelo papel das Forças Armadas no recente
passado histórico, é um símbolo de orgulho nacional, alguém
que combate para defender a pátria ? aqui virou integrante de quadrilhas
de traficantes; "avião", como se sabe, designa os garotos,
geralmente de favelas, usados por traficantes para transporte de porções
de tóxicos para fregueses.

E algo que não tem necessariamente a ver com crime de morte, mas é
crime ? a escuta clandestina e ilegal de telefones ? ficou ao que parece para
sempre incorporada ao linguajar da imprensa como "grampo", gíria
de delinqüentes que assumimos sem maior hesitação. E por
aí vai.

Utilizar como corriqueiro o vocabulário do crime é uma forma
a mais, entre tantas que temos praticado, de capitular diante dele.

2. ? A cobertura, na sexta-feira, 20, do Globo sobre a prisão de Elias "Maluco", no Rio, foi a melhor entre os jornais do país: sete páginas recheadas de informação de bastidores, perfil de policiais, um raio-X do trabalho de obtenção de informações da polícia carioca, um bem elaborado mapa, muitos sides. E uma manchete forte, de três linhas em três colunas, com uma declaração entre aspas do bandido para o policial que lhe deu voz de prisão: "Perdi, chefe. Mas não esculacha".

A cobertura, profissional e ponderada; mas a manchete fez lembrar os velhos tempos da imprensa popular e dos bandidos de outras épocas que, perto da crueldade, da barbárie e da ousadia dos de hoje, parecem figuras inocentes da antiga literatura para moças, como Mauro Guerra, "Mineirinho", "Micuçu" e "Cara-de-Cavalo, que a revista O Cruzeiro ? algo equivalente, no impacto que tinha no Brasil dos anos 50, ao que a Globo tem hoje ? tornou figuras nacionalmente conhecidas.

3.? O excelente Profissão: Repórter, heróico esforço de construção do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, agora está em novo endereço na internet. Confira, e anote entre seus "Favoritos": <http://sites.uol.com.br/prof.reporter/>

4. ? …a semanal de celebridades IstoÉ Gente, dirigida pelo jornalista Luciano Suassuna. Na reportagem de capa sobre Rosinha Garotinho, a repórter Vivianne Cohen conseguiu extrair da candidata favorita ao governo do Rio pelo PSB a admissão que, se for eleita ? e se Garotinho for remetido pela campanha presidencial ao desemprego, como parece que vai ser o caso ?, o marido poderá participar de sua administração.

Ah, ela também se declarou admiradora da falecida "mãe dos pobres" da Argentina, Evita Perón.

5. ? A mídia em geral, mas especialmente os jornais, não conseguiu ainda encontrar uma forma de cobrir a campanha eleitoral para o Congresso e para as Assembléias Legislativas e de ajudar os leitores a escolher entre milhares de nomes. O Congresso, sabemos, é peça vital para a democracia. Mas, além disso, é ali que vai ser decidida boa parte das principais promessas feitas na campanha pelos presidenciáveis, já que o cumprimento de várias delas depende de reformas na Constituição. E as reformas requerem três quintos dos deputados e dos senadores, em votações separadas, em dois turnos separados. Não é brincadeira.

Dos jornalões de âmbito nacional, O Globo é o que tem feito um maior esforço para mostrar perfiletes dos candidatos a deputado federal e estadual. Em menor grau, O Estado de S.Paulo segue na mesma linha. O Correio Braziliense ? que não é um jornal nacional, mas tem importância nacional ? idem. Jornais regionais apresentam uma melhor performance, como O Povo, de Fortaleza.

Na campanha pelo Senado, com eleição majoritária e menos candidatos, a cobertura é menos econômica. Mas ainda insatisfatória.

6. ? O Jornal do Brasil, em sua nova fase, continua muito ralo, com o noticiário espalhado por matérias e notas curtas. A profundidade que exibe em alguns colunistas e articulistas está invariavelmente ausente das matérias. Pior: parece ter sido uma opção editorial.

7. ? Transcrição de nota aqui publicada na semana passada:


"A coluna volta a insistir: muitos coleguinhas estão precisando dar uma olhada no dicionário para ver o real significado de estratégia. A palavra é quase invariavelmente utilizada no lugar de tática, mas não raro como sinônimo de estratagema, artifício ou ardil. Tudo virou ?estratégia?".


Pois bem, vejam este trecho do editorial da Folha de S. Paulo de domingo (23/9), sobre como poderá ser o segundo turno da eleição (os grifos são para ressaltar palavras e não existem no original): "A questão que fica, porém, para os adversários do petista, é a de qual estratégia adotar para frear a sua ascensão. Há fortes indícios de que a tática de atacá-lo agora não se revelou eficaz, pelo menos até agora. O candidato que mais se valeu desse estratagema, o governista José Serra, além de ele próprio não ter crescido (…)", etc., etc.

8. ? A edição de setembro da revista masculina americana GQ, comemorativa de seus 45 anos bem vividos, tem gordas 506 páginas. Isso, claro, porque os Estados Unidos atravessam grave fase de estagnação ecomômica.

9. ? A duas semanas das eleições, pode-se dizer que, finalmente, Veja começou a cobrir de fato a campanha eleitoral com a edição que está nas bancas: entre reportagens e boxes da matéria de capa, mais entrevistas com os quatro presidenciáveis, dedicou ao tema 26 nutridas páginas, mais o excelente ? como sempre ? artigo de Roberto Pompeu de Toledo que "fecha" a revista.

10.? Ainda sobre a atual campanha presidencial: é interessante constatar a freqüência com que nós, jornalistas, deixamos de fazer o óbvio. A edição de Época que está nas bancas designou Joyce Pascowitch para cobrir um dia da campanha de um presidenciável (no caso, o tucano José Serra, que inaugura o que será uma série com os quatro). Apesar de espremida pelo pouco espaço, é matéria recheada com vida real e boas fotos. É óbvio, não é mesmo? Só que ninguém tinha feito ainda.

(*) Jornalista