Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Vencer em campo, vencer na midia

GUERRA DO IRAQUE

Margarethe Born (*)

No momento em que o mundo todo discute se haverá ou não guerra contra o Iraque e alguns acusam George W.Bush de truculento e até de assassino, minha tese é de que a guerra já está acontecendo bem embaixo de nossos narizes, no espaço público internacional da mídia.

Há vários atores em disputa nesse espaço. Por exemplo: o governo Bush defendendo a guerra. Países como França e Alemanha, que se negaram publicamente a participar. Países do Conselho de Segurança da ONU, que têm poder de veto.

Há também manifestações de algo que já se chama de "sociedade civil internacional": cidadãos de toda parte ouvidos por institutos de pesquisa, grupos de protesto que, com manifestos públicos, ganham acesso ao espaço internacional da mídia.

É nesse espaço midiático de luta que se trava a guerra mais interessante e que já está acontecendo. Mas é um outro tipo de guerra. Não é a guerra-relâmpago que o EUA e seus eventuais aliados poderão desencadear e da qual só veremos algumas poucas imagens filtradas. Ali vão morrer militares e civis iraquianos que tentarem resistir às forças "do Bem" norte-americanas. Eventualmente Saddam será substituído por algum fantoche que assumirá o governo e comandará a "reconstrução nacional".

Do mesmo modo que aconteceu no Afeganistão, o país se submeterá ao controle imperial e quase já não ouviremos falar sobre ele. Então, por que tanto alarde a respeito dessa guerra iminente? O que ela significa para a comunidade internacional e para nós na América Latina?

Aliado automático

A guerra que já está em curso diante de nossos olhos é uma guerra de discursos na qual a mídia é ao mesmo tempo arena e também ator com poder de veto, na medida em que influencia decisivamente a opinião pública de cada país. Desde 1991, quando Bush-pai arrebanhou aliados para combater os iraquianos que tinham invadido o Kuait, começamos a ver esse tipo de guerra acontecer com o confinamento dos jornalistas em seus hotéis e a organização de tours ao front. A maior evidência de uma guerra discursiva é a censura e o controle da imprensa. Nesse tipo de guerra, importa mais o que parece do que aquilo que realmente ocorre.

Neste tipo de guerra, Bush vem provocando a opinião pública internacional para um debate no espaço público midiático: é lícito uma potência imperial ignorar a soberania de um Estado constituído, de um governo aparentemente eleito de forma democrática e invadir seu território a pretexto de neutralizar armas químicas e biológicas que não foram descobertas? A estratégia de Bush é avançar e ver até onde a comunidade internacional lhe permite afrontar tratados e princípios que o mundo tem respeitado desde Westphalia (1648).

Oitenta e dois por cento dos cidadãos da União Européia são contra a guerra (O Estado de S.Paulo, 31/1/03). Setenta e um por cento dos norte-americanos passaram a defendê-la após o discurso de Bush. Mas basta uma única contra-informação para pôr em xeque esses percentuais: pesquisa do Gallup International ouviu gente de 41 países e "80% a 90% dos consultados acham provável que a guerra ocorra nos próximos meses"(Folha de S.Paulo, 01/2/03).

Não é apenas uma guerra de informações, de números, de pesquisas. É uma guerra em que o aliado mais desejado é a opinião pública internacional (e a mídia como sua instância de representação). A posição franco-alemã contrária ao ataque foi respondida de pronto na manchete da editoria internacional de O Estado de S.Paulo, 31/1/03: "Oito países europeus apóiam posição de Bush". Sub-retranca: "Declaração visa a isolar França e Alemanha, dizem especialistas". E no título principal da editoria "Mundo", da Folha de S.Paulo, mesmo dia: "Bush intensifica ofensiva diplomática".

Bush conta com a indiferença tradicional do ser humano quando a pimenta arde nos olhos dos outros. Não se trata apenas de ganhar uma guerra contra o Iraque (e controlar suas fontes de petróleo), mas de saber do mundo até onde os EUA podem ir, o que ou quem poderá pôr-lhes freio.

Sabe-se que os prisioneiros afegãos de Guantánamo não tiveram seus direitos respeitados de acordo com a Convenção de Genebra. Houve alguns protestos aqui e acolá, mas a mídia não bateu forte em Bush por causa disso. Agora, diante da ameaça de guerra, movimentos sociais globalizados levam suas manifestações de protesto à mídia em várias partes do mundo. Até quando irão protestar não sabemos, mas até quando a mídia irá divulgar esse "grito das massas"?

A França e a Alemanha decidiram não apoiar o projeto belicoso de Bush. Em nome dos seus eleitores, Chirac e Schroeder firmaram acordo de não se alinhar com a Grã-Bretanha de Blair, aliada quase que automática dos EUA. Entretanto, a Otan ainda é a única força de segurança européia em atividade. Se os EUA solicitarem o uso de campos de pouso e manutenção para suas forças em território alemão, poderá Schroeder recusar? É claro que as alternativas turca e italiana já vêm sendo planejadas, para que o chanceler alemão não se constranja diante da opinião pública de seu país. Também as decisões do chanceler alemão não podem descurar da mídia e das pesquisas.

"Pedágios de segurança"

A questão, portanto, não é a guerra factual, a guerra militar contra um país do Oriente Médio. É a guerra discursiva que Bush propôs à ONU e à sociedade civil internacional através da mídia para ver até onde suas ações podem ser legitimadas. Faz parte dessa guerra a não-assinatura do Protocolo de Kyoto pelos EUA. Faz parte dessa guerra o apoio aos massacres de Sharon sobre os palestinos. Faz parte dessa guerra a estranha condescendência em relação à Coréia do Norte, que optou por sair da lista de países signatários da não-proliferação de armas nucleares.

Na verdade, a Coréia do Norte joga hoje o mesmo jogo de Bush. "Faço, sim, e daí? Quem vai me deter?" É um jogo de testar o limite do outro. Com a China na retaguarda, os norte-coreanos acham que têm cacife para bancar esse tipo de jogo. É um jogo de guerra também, é uma outra guerra discursiva que se trava bem diante de nós, nos nossos jornais, não na vaselina diplomática distante das manchetes como Bush deixa supor.

Se Bush vai ou não invadir o Iraque? É o de menos. A guerra atual é bem mais interessante, afeta a todos nós, coloca-nos virtualmente na mira dos EUA como os próximos alvos, caso discordemos de Tio Sam. Bush foi claro: "Quem não está comigo, está contra mim".

Onde ficam nesse novo tipo de guerra a diplomacia, a ética, a honra, os princípios, o direito (e o dever) de proteção dos (aos) mais fracos? Populações civis vêm sendo massacradas sem punição. A criação de um tribunal penal internacional para "crimes contra a humanidade" por enquanto é modesta, os EUA recusaram-se a participar. Temendo ser eles próprios levados a julgamento.

Por enquanto, na mídia, é Bush que está vencendo a guerra do Iraque (pelo Iraque?). Nenhum organismo multilateral, nenhum "grupo de amigos" conseguiu até agora fazer frente à guerra discursivo-midiática e amoral de Bush. Se a palavra da nova ordem mundial é "negociar", então o que o mundo terá a oferecer aos EUA para garantir a paz, ainda que por algum tempo? Vamos todos pagar "pedágio" aos EUA para garantir a segurança internacional ao melhor estilo Al Capone dos anos 30? Não deixa de ser uma estratégia: recuperação econômica de uma combalida economia do dólar às custas de "pedágios de segurança".

Para Bush, é isso ou os poços de petróleo iraquianos. A comunidade internacional que escolha. Os dados estão lançados.

(*) Jornalista, professora do Curso de Jornalismo e coordenadora do Pós-Graduação latu sensu em Jornalismo da PUC-SP