Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Verdades sobre o “jornalismo verdade”

Lira Neto (*)

 

O

s leitores do O Povo e do Diário do Nordeste, os dois maiores jornais do Ceará, estão sendo testemunhas de uma verdadeira guerra editorial. O estopim do confronto foi aceso na semana passada, quando se tornou público o lançamento de um novo jornal, pertencente à Empresa Jornalística O Povo. Uma publicação voltada para um segmento de mercado mais popular, até agora inexplorado pela imprensa local. O Diário do Nordeste reagiu imediatamente. Em questão de horas, o DN montou uma equipe e anunciou também o surgimento de um segundo jornal no Grupo Verdes Mares de Comunicação. Curioso perceber que o Hoje e o Jornal da Rua, idealizados com o mesmo propósito de buscar as classes C e D, nasciam com campanhas de marketing também similares: durante toda a semana que passou, os anúncios dos dois novos jornais prometeram ao leitor cearense um “jornalismo verdade”.

“Vem aí a verdade nua e crua”, dizia anúncio na primeira página do O Povo de terça-feira, referindo-se ao lançamento do Hoje. “Vem aí um jornal que não tem medo de mostrar a verdade”, alardeava por sua vez anúncio de página inteira, no dia seguinte, no Diário do Nordeste, anunciando a chegada do Jornal da Rua. “Fique sabendo que a verdade virá, doa a quem doer”, insistia O Povo. “A verdade mais perto de todos”, rebatia o DN. Leitores que procuraram o ombudsman para discutir o assunto indagavam se tais slogans, afinal de contas, não acabavam sendo comprometedores para O Povo e o DN.

Dizer que os dois novos jornais vão trazer a “verdade” para a imprensa local, não seria a mesma coisa que afirmar que, até aqui, nós não temos nos pautado pela verdade dos fatos? Ao dizer que “a verdade vem aí”, não estaríamos confessando que ela nunca esteve aqui?

Sangue e sexo

O fato é que, ao longo da história, o rótulo “jornalismo verdade” tem se mostrado um eufemismo. Um modo enviesado e cínico de se referir a um certo tipo de jornalismo dispersivo, que reforça preconceitos e investe pesado no submundo do crime, na invasão da privacidade alheia, no sensacionalismo. Uma imprensa sem escrúpulos, dona de interesses inconfessáveis e sem qualquer sombra de dilema ético. “Do Caça e Pesca ao Araturi, só não lê quem já morreu. E, se morreu, aparece no Jornal da Rua“, avisa o anúncio , em letras garrafais. Enquanto isso, na última quinta-feira, praticamente toda a metade superior da primeira página do O Povo estava ocupada por um anúncio sobre o lançamento do Hoje. Ilustrando a peça publicitária, a foto descomunal de uma bunda e, no detalhe, uma mão ameaçadora, empunhando um revólver. Ícones do sensacionalismo. Sexo e violência, síntese do tal “jornalismo verdade”.

O Povo ajustou a campanha

O problema é que aquele anúncio, estampado na primeira página do O Povo na quinta-feira, não falava a mesma língua de uma matéria interna, publicada na editoria de Cidades, que dava maiores detalhes sobre o perfil editorial do novo jornal. O texto da matéria falava do nascimento de “um jornal popular de qualidade”. Citava a Carta de Princípios e o Código de Ética da Empresa Jornalística O Povo, documentos que reafirmam o compromisso da empresa com um jornalismo que se paute pela construção do espírito crítico e da cidadania. Havia uma evidente contradição entre a linguagem inicial da campanha de lançamento do Hoje com o perfil editorial que era prometido na matéria publicada em Cidades. O ombudsman discutiu tal contradição em comentários internos, ao longo da semana passada. Nos dois últimos dias, O Povo parece ter começado a ajustar e afinar o discurso da campanha de lançamento com os propósitos anunciados na matéria. Em vez de bundas e revólveres, os anúncios começaram a mostrar cenas do dia-a-dia da cidade. “Vem aí o jornal mais popular do Ceará”, era o novo slogan.

Antes tarde do que nunca, a campanha de lançamento do Hoje descobrira o abismo que separa um jornal “popular” de um jornal popularesco. Fazer um jornal “popular” não significa sustentar-se no binômio sangue-e-sexo, capitalizando o estranho fascínio por certa zona de sombra da alma humana, mercantilizando a catarse alheia, fazendo o apelo fácil aos instintos reprimidos no cotidiano. Ou seja: não significa fazer o tal “jornalismo verdade”.

Em busca de novos leitores

Fortaleza é uma cidade de mais de dois milhões de habitantes. No entanto, os três principais jornais locais, O Povo, Diário e Tribuna do Ceará, tiram juntos, diariamente, pouco mais de 50 mil exemplares em média. Existe, portanto, um universo enorme de pessoas que a imprensa cearense historicamente não conseguiu atingir. Um mundo de indivíduos à margem da informação e, por conseqüência, do exercício pleno da cidadania. A baixa escolaridade e a ausência do hábito da leitura, aliadas ao reduzido poder aquisitivo da maior parte da população, têm sido obstáculos praticamente intransponíveis para os jornais locais, que apresentam assim um índice tão encabulado no número de exemplares vendidos por habitante. E é justamente esse público até aqui alheio ao mercado editorial que os autodenominados “jornais populares” buscam conquistar.

Para as empresas jornalísticas, uma estratégia providencial, que consiste em ampliar e abrir novos mercados editoriais e publicitários, através da descoberta de um público consumidor emergente. Publicações voltadas a esse segmento de mercado têm nas mãos também uma imensa responsabilidade social. Elas teriam, em tese, a função de orientar seus leitores em relação a questões básicas do dia-a-dia, bem como traduzir para uma linguagem o mais acessível possível as discussões da atualidade. Democratizar o acesso à informação escrita. Formar leitores em um público até então marginalizado da mensagem impressa. Uma tarefa fundamental. E, jornalisticamente, não menos nobre. Isso é o que propõe o projeto editorial do Hoje. Vamos esperar para ver.

Leitores exigirão melhor jornalismo

A chegada do Hoje terá que produzir desdobramentos imediatos no O Povo.

Teremos que, a partir daí, modular nosso tom editorial sempre numa oitava a mais em relação ao mercado. Isto é: o surgimento do Hoje abre a necessidade de uma qualificação ainda maior para O Povo, que deverá ser um jornal cada vez mais analítico e reflexivo.

Nos últimos tempos, O Povo recorreu a anabolizantes popularescos para incentivar as vendas. O exemplo mais recente é o das tais “tatuagens radicais”, encartadas em nossas edições de domingo. Daqui para frente, promoções artificiais desse tipo não farão mais sentido. Definitivamente, a sofisticação editorial e a excelência jornalística é que terão de ser nosso diferencial em relação aos demais jornais da cidade.

É isso o que os leitores irão exigir de nós. Ou entendemos isso ou o lançamento do Hoje e do Jornal da Rua poderá dar início a uma verdadeira canibalização do mercado. Um efeito reverso, em que os criadores se verão engolidos pelas próprias criaturas. Aconteça o que acontecer, não há dúvidas que estamos vivendo um momento histórico na imprensa cearense. O desafio está lançado. Espera-se que estejamos suficientemente preparados para ele.

(*) Ombudsman de O Povo, de Fortaleza