Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Versões da mídia inglesa sobre a ditadura

BRASIL 1964-1985

Tatiana Maia (*)

Aconteceu em 1964 e durou até 1985. Mas até hoje não se sabia que postura a imprensa inglesa, famosa nos quatro cantos do mundo pela imparcialidade, manteve em relação ao golpe militar no Brasil. A versão contada lá fora foi a verdade ou a "verdade verde", proclamada pelos militares? O "cale a boca" dos militares, que calou nossa imprensa, terá silenciado também a mídia internacional?

Que importância teria a cobertura da imprensa inglesa do golpe militar no Brasil?

Toda. A Inglaterra sempre teve papel de destaque no fluxo de informação para o mundo. É disseminadora de pautas para os jornais europeus, "mãe" da BBC, da Reuters, de The Times, The Guardian e os tablóides.

Pensando no impacto da versão contada pelos jornais ingleses na decodificação/interpretação do golpe militar brasileiro pelos leitores mundo afora, decidi analisar a cobertura de três de seus maiores jornais diários.

Um possível silêncio da imprensa inglesa quanto ao que ocorria no Brasil seria uma evidência de que ela teria fracassado no seu mais evidente papel, que é o de promover e apoiar a democracia. Vou um pouco mais além, para concordar com a idéia bolchevique de que imprensa existe para "mobilizar o povo para a revolução".

Entre 1964 e 1985, o Brasil foi testemunha da demolição de um governo democrático de direito e da violação dos direitos humanos. Atraindo a atenção de seus leitores para o que acontecia no Brasil e em outros países sob regimes ditatoriais, a imprensa inglesa talvez pudesse "mobilizar o público para a revolução". Neste caso, tal revolução poderia ser simplesmente uma campanha mundial para o fim desses regimes, como aconteceu em reação à última guerra no Iraque.

The Guardian foi estudado porque era o jornal de qualidade mais vendido em 1964, com circulação média de 277.600 exemplares por dia. The Times foi escolhido porque era o diário com mais credibilidade na cobertura de assuntos internacionais. Era também o segundo jornal de qualidade mais vendido em 1964, com média de 255.225 cópias/dia. O terceiro jornal escolhido para estudo foi o Daily Mirror.

Embora o Daily Mirror seja um tablóide, e os outros dois broadsheets (tamanho-padrão), o impacto causado pela publicação (ou não) de uma matéria nesse jornal era fato relevante, e impossível de não ser levado em consideração por qualquer pessoa disposta a analisar a cobertura da imprensa inglesa. Enquanto o jornal de qualidade com maior vendagem atingiu média de 277.600 exemplares por dia, o Daily Mirror alcançava em 1964 uma média de circulação de 5.085.124 cópias/dia!

Os aspectos observados para definição da postura da cobertura do golpe militar no Brasil entre 1964/85 foram: a preparação para o golpe, o golpe em si, a reação ao golpe, como atos de violência e o governo militar foram descritos tendo como base a semiótica, se foram reportados os casos de pessoas desaparecidas e de censura, a preparação para a eleição presidencial em 1985, o fim da ditadura e o que se esperava para o Brasil com o fim do governo militar.

A análise de jornais de 7.594 dias seria muito trabalhosa e talvez pouco acrescentasse à conclusão que se podia chegar com o estudo dos principais acontecimentos desse período, uma vez que o Brasil não é notícia todos os dias em jornais ingleses.

Para facilitar o processo, verifiquei jornais dos seguintes períodos: entre 22 de março e 30 de abril de 1964 (dez dias que antecederam o golpe e o primeiro mês que o sucedeu) [jornais de 27 de março de 1964 não puderam ser analisados porque na época não circulavam jornais às sextas-feiras santas]; entre 13 de dezembro de 1968 e 13 de janeiro de 1969 (primeiro mês seguinte à implementação do AI-5); entre 27 de outubro e 7 de novembro de 1975 (primeiros dez dias após o jornalista Vladimir Herzog ser encontrado morto numa cela policial em São Paulo) [comecei a analisar a partir do dia 27 porque 25 de outubro foi um sábado, e imaginei que notícias sobre o ocorrido só começariam a circular na Inglaterra a partir da segunda-feira; os jornais de domingo na Inglaterra são considerados independentes de suas versões durante a semana]; e, finalmente, entre 5 e 25 de janeiro de 1985 (últimos dez dias antes da eleição presidencial e os primeiros dez dias que a sucederam).

Do ponto de vista histórico, não se pode deixar de chamar a atenção de quem lê esse texto para a propaganda anticomunista difundida durante a Guerra Fria. Herman & Chomsky [Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media, Londres, Vintage, 1994, pág. 29] alertam que o anticomunismo como religião nacional é um dos filtros na maneira em que as notícias são selecionadas e mostradas ao leitor. Uma ferramenta política de manipulação:


"Esta ideologia, o anticomunismo ajuda a mobilizar a população contra um inimigo, e porque esse conceito não é claro isso pode ser usado contra qualquer um de encontro a políticas que ameacem interesses privados."


A cobertura

Foram encontradas 66 matérias sobre a crise brasileira publicadas pelos três jornais ingleses durante os períodos analisados. The Guardian publicou 33, The Times, 31 e o Daily Mirror, apenas 2. Entretanto, a cobertura do Times foi quase 3 polegadas mais extensa do que a do Guardian. [Uma polegada equivale a 25,4 mm. Uso polegada como medida porque este é o sistema usado na Inglaterra.] Sem contar o espaço dado a fotos, manchetes e ilustrações diversas, The Guardian publicou 316,075 polegadas de texto, The Times, 319, e Daily Mirror, apenas 7 polegadas.

O Guardian não só foi o jornal a publicar mais matérias sobre a crise no Brasil, como foi o único a noticiá-la em primeira página. Seis de suas 33 matérias vieram em primeiras páginas. Por outro lado, nenhuma carta de leitor foi publicada sobre o Brasil nos quatro períodos analisados, em nenhum dos jornais.

Três editoriais versaram sobre o que acontecia no Brasil. Dois no Times: o primeiro com 10,5 polegadas de texto logo após o golpe, e outro, de 10 polegadas, após a implementação do AI-5. The Guardian trouxe um editorial sobre o fim da ditadura no Brasil, com 7 polegadas de texto.

Do total de 87,15 polegadas de fotos e ilustrações publicadas pelos três jornais, o Guardian usou 33,9, o Times, 35,25, enquanto o Daily Mirror disponibilizou 18 polegadas numa única fotografia!

A porcentagem de matérias produzidas por agências de notícias foi baixa, comparada à produção própria dos jornais. Das 635,075 polegadas de texto publicadas, apenas 86,375 polegadas foram assinadas por agências. Correspondentes específicos assinaram 349,625 polegadas, e as 199,075 polegadas restantes foram publicadas sem especificação da fonte geradora. (Ou em editoriais ou sob assinaturas como "nosso correspondente" ou "nosso correspondente na América Latina".)

Os correspondentes

O correspondente que teve mais texto publicado foi Arthur Hopcraft, que trabalhava para o Guardian no Brasil em 1964. Seus cinco artigos foram responsáveis por 56% do total da cobertura que o jornal deu ao golpe militar no Brasil.

Richard Gott, também funcionário do Guardian, foi o único a ter matérias publicadas em mais de um período analisado. Ele falou sobre o AI-5 e também sobre o caso Herzog.

Os títulos

A palavra ditadura foi usada em um único título para descrever o regime implantado no Brasil. Foi pelo Guardian, em 17 de dezembro de 1968. Foi também o Guardian que publicou o único título contendo a palavra tortura, em 15 de abril de 1964. Menções à censura ? a própria palavra censura, censor ou imprensa livre estiveram presentes em quatro títulos. Dois do Guardian, dois do Times.

Os militares no poder foram descritos como presidente em três títulos, e em nenhum como ditadores. A palavra crise foi usada uma única vez, enquanto a palavra exílio foi repetida em cinco títulos.

Contando a história

A cobertura apresentada por cada jornal evidenciou suas visões históricas e políticas. Para o Times, a ditadura foi a salvação para o Brasil contra o comunismo. Para o Guardian, ela trouxe prisões e censura. Este jornal tentou mostrar-se independente do ponto de vista político, mas ainda se deixou influenciar pela ideologia americana da Guerra Fria. Já para o Daily Mirror nada de muito importante estava acontecendo fora da Inglaterra…

Isto lembra aquela célebre frase que remete ao ovo e à galinha. Será que os jornais publicam o que seus leitores querem ler, ou publicam o que acreditam, e os leitores é que escolhem qual jornal comprar de acordo com seus históricos econômicos e políticos?

Entretanto, este comportamento da mídia, de condenar práticas em certos lugares e se calar em relação às mesmas práticas em outras partes do mundo, pode ser explicado pela Teoria da Gratificação, de Katz, que diz que "indivíduos procuram informações que apoiarão suas crenças e práticas, e evitam informações que os desafiem" [International Media Research: A Critical Survey, John Corner, Londres e Nova York, Routledge, 1997, pág. 29.].

Houve muitos aspectos reportados de forma dúbia pelos jornais. The Times disse que João Goulart tinha se exilado na Europa, depois disse que era na Argentina, e também considerou a possibilidade de ele estar no Paraguai ou no Uruguai. Para The Guardian, Goulart estava na Bolívia…

Na cobertura do golpe é evidente a influência da ideologia americana, principalmente nas matérias de Hella Pick, correspondente nos Estados Unidos. A única mulher correspondente encontrada nesta pesquisa acabou passando uma visão incompleta e distorcida dos fatos. Suas fontes foram sempre o governo americano e seus artigos não mostravam nenhuma visão crítica dos acontecimentos.

Outro aspecto que deveria ter tido mais destaque e não teve foi a prisão de JK. Para The Guardian e The Times, Juscelino foi apenas um entre os 200 presos após o AI-5. Ignorou-se o fato de que se tratava de um dos maiores presidentes que o Brasil já tivera e um dos maiores opositores do regime.

O símbolo da perseguição após a implementação do AI-5 foi na verdade o jornalista Alberto Dines, então editor do Jornal do Brasil, preso no Natal de 1968. Dines atribui o fato a um lapso corporativista. "Foi injusto e eu não digo isso por modéstia", declarou Dines por e-mail em 19 de agosto de 2002. O mesmo sentimento de corporativismo jornalístico entretanto não foi visto na cobertura do assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Enquanto The Times deu 21,25 polegadas para noticiar a prisão de Dines, a morte de Herzog ocupou apenas 2,5 polegadas.

Algumas pessoas podem aceitar a desculpa de que a imprensa inglesa noticiou os eventos que ocorriam no Brasil desta maneira porque a censura tinha feito os correspondentes calarem, já que estrangeiros também foram perseguidos e presos, a exemplo do que ocorreu a um repórter francês. Mas o fato é que mesmo quando a ditadura acabou, ou quando a censura foi finalmente retirada, os jornais ingleses continuaram não demandando por justiça, mesmo tendo um jornalista brasileiro trabalhando para ela.

Conclusões gerais

A cobertura dada ao regime militar brasileiro pode ser encarada como inesperadamente extensa, se aceitarmos o conceito de que a notícia perde seu impacto com a distância entre o veículo que a publica e onde aconteceu o fato.

Entretanto, não causa nenhuma surpresa se levarmos em consideração que, mesmo o Brasil não tendo sido parte do Império Inglês, logo não tão "notícia" para os jornais ingleses como suas ex-colônias, o Brasil é o maior país da América Latina. Por isso, a imprensa inglesa séria tinha o dever de informar aos seus leitores (formadores de opinião) sobre o que estava acontecendo no Brasil.

Por outro lado, o Daily Mirror não tem essa obrigação para com os formadores de opinião. Como tablóide, sua função é a de "divertir seus leitores, mais do que chateá-los com assuntos pesados".

Como ambos os processos de seleção e distorção da notícia acontecem em todos os passos da cadeia entre o evento e o leitor, isso explica por que o Guardian mostrou uma cobertura dos fatos mais fiel que o Times, principalmente no primeiro período analisado, uma vez que o processo do Guardian com freqüência foi "correspondente-editor do jornal-leitor", e o do Times foi "repórter-editor da agência de notícias-redator do jornal-editor do jornal-leitor".

De qualquer maneira, mesmo a cobertura podendo ser vista como longa, ela não se aprofundou. Foi basicamente costurada com despachos do governo ou material previamente publicado ou transmitido pelos veículos de comunicação brasileiros. Não houve nenhuma fala de pessoas comuns, do "povo", em nenhuma das 66 matérias, todas sobre o país ou pessoas da elite brasileira.

Desta forma, pode-se concluir que o povo brasileiro não teve voz na imprensa inglesa durante o regime militar. Os jornais foram quase como palanques para que autoridades passassem suas opiniões.

Não houve nenhuma matéria de aspecto ou interesse humano sobre a implementação da ditadura no Brasil. Não foi descrito como o golpe mudou as vidas dos brasileiros ou o que acontecia com as pessoas exiladas. A única exceção foi matéria (se é que podemos chamar assim) publicada pelo Daily Mirror, na segunda-feira 6 de abril de 1964, sob o título "Em exílio: uma mãe e seu filho". Entretanto, essa matéria foi tão inconsistente que não adicionou nada à cobertura como um todo.

Também não houve nenhuma entrevista com nenhuma das partes envolvidas no processo. Nenhum pedido de justiça para os que estavam sendo presos contra a lei. Não é preciso dizer que também não houve nenhum relato real de pessoas sendo torturadas pela polícia.

A conclusão então é a que ditadura brasileira não foi na verdade newsworthy (de interesse editorial) para a imprensa inglesa. Reforço meu argumento com o exemplo extraído da cobertura do Guardian da decretação do AI-5. Enquanto esse jornal disse brevemente, em quatro parágrafos, assinados pela Reuters e a UPI, na primeira página do dia 16 de dezembro de 1968, que o Brasil estava sob censura, ele deu 20 parágrafos ao desenrolar da ditadura na Grécia (seis parágrafos assinados por Cedric Thornberry na página 3 e 14 parágrafos na página 9 sem assinatura). Na página 2 do dia 18 de dezembro de 1968 Thornberry, em sete parágrafos, usou um porta-voz do governo para informar que 200 pessoas haviam sido presas, incluindo o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Mas deu no mesmo dia oito parágrafos, e com primeira página, em matéria que humanizava um único refugiado grego na Noruega. Este mesmo refugiado foi ainda assunto para três outras matérias no dia seguinte, somando um total de 25 parágrafos.

Postura dos jornais por aspecto analisado

** Preparação para o golpe

The Times: Deu grande cobertura, descrevendo o medo de que o Brasil se tornasse um país comunista. Previu o golpe. Apesar de não ter usado adjetivos, sugeriu que o país estava sob atmosfera de revolta. Todos os seus títulos trouxeram palavras com apelo negativo forte como revolta, crise política e distúrbios.

The Guardian: Publicou apenas uma matéria antes do golpe. Deu a impressão de que não estava alerta para o clima real no Brasil.

Daily Mirror: Calou-se.

** O golpe em si, em 1? de abril de 1964

The Times: Deu grande cobertura, descrevendo o golpe como "almost bloodless" (quase sem sangue). Goulart era uma ameaça à ordem pública e a calma finalmente retornou ao país quando os militares ganharam controle total.

The Guardian: Deu grande cobertura, mais fiel aos fatos do que o Times. Mencionou a possibilidade de o golpe ter sido patrocinado pelos Estados Unidos. Mas a possibilidade foi negada por Washington.

Daily Mirror: Calou-se.

** Reação ao golpe e à ditadura

The Times: Disse não ter havido reação contrária ao golpe, e sim um carnaval para festejá-lo. Não fez nenhuma menção ao Partido Comunista. Disse que o golpe teve apoio da maioria da população.

The Guardian: Descreveu prisões e o medo de uma guerra de guerrilha em reação ao golpe.

Daily Mirror: Contou do carnaval no Brasil para festejar o golpe. Também revelou-se "so sorry" porque, por causa do golpe, a bela primeira-dama brasileira havia se transformado em exilada política…

** Violência

The Times: Muita violência foi descrita antes do golpe. Mas não foi mencionada durante o processo do golpe em si.

The Guardian: Mencionou que o Brasil estava longe de estar calmo, como os militares haviam descrito.

Daily Mirror: Calou-se.

** Militares no poder

The Times: Eram as pessoas que "salvariam" o Brasil do comunismo. Mas eram também pessoas que agiram contra o Congresso.

The Guardian: Eram pessoas que agiram contra o Congresso e perseguiam qualquer um que fosse ao menos simpático ao comunismo.

Daily Mirror: Calou-se.

** Pessoas desaparecidas

The Times: Praticamente calou-se para este fato. Tocou no assunto vagamente em poucas matérias.

The Guardian: Contou que pessoas estavam desaparecendo em prisões das quais o próprio regime confessava ignorância.

Daily Mirror: Calou-se.

** Censura

The Times: Alertou para o perigo de o Brasil perder sua liberdade de expressão desde antes o golpe acontecer. Depois do AI-5, continuou denunciando as ameaças à imprensa brasileira de maneira consciente. Não disse, porém, que a censura tinha sido estendida aos intelectuais.

The Guardian: Contou que os militares haviam imposto censura à mídia quando tomaram o poder, mas foi negligente ao não falar do assunto após o AI-5.

Daily Mirror: Calou-se.

** Preparação para a eleição presidencial

The Times: Publicou matéria no dia da eleição dizendo que Tancredo era o favorito nas pesquisas. Disse também, en passant, que o Congresso havia tentado implementar eleições diretas.

The Guardian: Deu uma ampla cobertura, falando sobre os conflitos entre o provável novo presidente e os sindicatos, mesmo antes da eleição.

Daily Mirror: Calou-se.

** Fim da ditadura e eleição presidencial

The Times: Descreveu o processo de votação e mostrou o resultado das eleições. Nenhum "balanço" da ditadura foi feito.

The Guardian: Descreveu o processo de votação, mostrou o resultado das eleições e falou da celebração popular após o resultado. Nenhum "balanço" da ditadura foi feito.

Daily Mirror: Calou-se.

** Brasil depois da ditadura

The Times: Voltaria a ser uma democracia plena.

The Guardian: Precisaria de sorte e tempo para resolver os problemas herdados pelo regime militar.

Daily Mirror: Calou-se.

(*) Jornalista