Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Villas-Bôas Corrêa

M. F. NASCIMENTO BRITO (1922-2003)

“O diretor na redação”, copyright Jornal do Brasil, 10/02/03

“No começo da campanha presidencial de 89, quando as pesquisas dançavam o samba das indecisões migrantes da preferência do eleitorado, o doutor Nascimento Brito convocou em seu gabinete os principais editores e redatores do Jornal do Brasil e os diretores da rede nacional de sucursais.

A pauta, embora com tema previsível, provocou a surpresa do ineditismo quando, ao abrir a rodada de pronunciamentos, o doutor Brito explicou os seus exatos objetivos: o jornal estava se preparando para a cobertura da primeira campanha para a eleição de presidente e vice-presidente da República depois de quase 21 anos da longa e tenebrosa noite da Redentora, da virada do Colégio Eleitoral com a eleição indireta de Tancredo Neves, o presidente que não chegou a tomar posse, e dos cincos anos do mandato do vice José Sarney, às turras com o PMDB das ambições do doutor Ulysses Guimarães.

Da breve introdução caímos no pasmo do principal: o diretor do JB desejava conhecer a opinião dos que faziam o jornal para decidir a linha a imprimir na cobertura, do noticiário aos artigos da responsabilidade da direção. Em minutos, a unanimidade selou a conclusão ética: um a um, todos sustentaram a norma da isenção, da mais estrita e rigorosa imparcialidade.

O doutor Brito passou recibo no truque hábil, confessando que não esperava outra resposta da redação. Mas, ali, se inaugurava a novidade, que não teve seqüência, do solidário compromisso da direção com a redação para a o teste da imparcialidade, que respeitava o leitor, na primeira das derrotas do petista Luiz Inácio Lula da Silva, com a vitória por larga vantagem das mágicas dos marqueteiros do desastre do curto mandato do presidente Fernando Collor de Mello.

Um grande jornal afirma-se na rotina da informação do dia-a-dia mas salta degraus e consolida seu prestígio e respeitabilidade nos instantes de crise, quando o risco ronda a empresa e aperta o cerco na redação. O JB viveria outro momento que enriquece sua tradição, no episódio do atentado do Riocentro, patrocinado pelo DOI-Codi do I Exército. A bomba que explodiu no colo de um sargento e feriu gravemente um oficial frustrou o plano sinistro de provocar o pânico de conseqüências imprevisíveis, no atropelo dos 30 mil assistentes do show de 30 de abril de 1981, comemorativo do Dia do Trabalhador, em 1? de maio.

O malogro do insano atentado terrorista, que divide em duas etapas o interminável mandato do presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo, foi desmascarado pela corajosa investigação da imprensa. Com destaque para a reportagem do JB, que colecionou furos com a competência da dupla imbatível de excepcionais profissionais, Fritz Utzeri e Heraldo Dias.

Dos muitos anos dos meus dois períodos neste jornal – o primeiro, antes da mudança da capital para Brasília, o segundo que se inicia em 89 e não terminou – recordo dois momentos marcantes na história da longa presença do doutor Brito na direção da empresa. Da sua elegante, civilizada e cordial figura, da delicadeza de telefonemas, bilhetes, conversas, elogiando matérias e artigos que despertavam a sua atenção.

Na transição que testemunhei do velho modelo da imprensa acanhada, modesta nas suas instalações, dos tempos das máquinas de escrever ou dos textos manuscritos em laudas de sobras das bobinas para o jornal-empresa do diretor-empresário, o doutor Nascimento Brito é o exemplo didático do diretor que nunca deixou de freqüentar a redação, interessado nos assuntos do dia e preciosa fonte de informação.

Cultivada a vaidade de antecipar-se aos repórteres das diversas editoriais, com as novidades colhidas na sua rede de contatos pessoais. Nota amena nesta modesta coroa de saudade: na fervura de umas das crises da campanha do embirutado Jânio Quadros, encontrei-me com o doutor Brito à porta do jornal. Ansioso, despejou-me enredo fantástico de uma trama para despejar Jânio do andor udenista.

Ora, estava chegando da reunião da UDN com a versão exata. Mas, entrei macio: ?O senhor conversou com o Carlos Lacerda?? Retifiquei a versão fantasiosa e pinguei o comentário malicioso: ?O Carlos é insuperável na campanha, mas a pior das fontes?. À noite, o doutor Brito telefonou-me: ?Você tinha razão. Na versão da crise e na opinião sobre o Carlos Lacerda?.”

“Um ?publisher?”, copyright Jornal do Brasil, 10/02/03

“Doutor Brito, Brito, Maneco – cada um o chamava de um jeito, e ele respondia do seu. Refinado, compenetrado, discreto, cosmopolita, carioca, irônico e gozador. Lorde, um dos últimos.

Talvez não tenha sido o primeiro (Assis Chateaubriand, dos Associados, e Paulo Bittencourt, do Correio da Manhã, o antecederam), mas foi aquele que melhor definiu e representou uma função até então inexistente na imprensa brasileira: a do empresário-administrador comprometido com a qualidade jornalística. Comandante que não precisa manejar a arma mas é capaz de fazer de cada um dos comandados o melhor dos soldados. O publisher, aquele que viabiliza a publicação, assegura a sua continuidade e a mantém a serviço dos leitores. A modernização deste JB começou pela Rádio JB e teve brilhantes parceiros mas só um protagonista: Manoel Francisco do Nascimento Brito. Este título, ele conquistou graças a um conjunto de atributos especiais. Faro para descobrir talentos, sedução para atraí-los e capacidade de confiar.

Sob a sua batuta, o Jornal do Brasil não realizou apenas a mais duradoura e profunda revolução jornalística da segunda metade do século passado. Ao lado dela iniciou a transformação da empresa jornalística brasileira colocando-a nos mesmos padrões de organização e eficiência das empresas de outros segmentos.

Graças à feliz combinação da vontade de mudar a publicação com a vontade de mudar a empresa publicadora, Nascimento Brito, o publisher por excelência viabilizou uma experiência editorial ímpar ao longo de quase meio século. Há poucos dias, morreu um ícone, Oldemário Touguinhó, o homem-jornal. Agora, foi-se outro, o homem-empresa jornalística. Conviveram durante quatro décadas. Rigorosamente diferentes. Igualados na vocação para buscar o melhor.

Foi editor-chefe do JB (1962-1973)”

“O criador da opinião”, copyright Jornal do Brasil, 10/02/03

“Quando os jornais brasileiros exprimiam ostensivamente a vontade do dono, M. F. do Nascimento Brito fez questão de adotar no Jornal do Brasil, como ponto de partida na reforma que iria definir o seu estilo de comando, a separação entre notícia e opinião. Esta era exclusiva da direção e aquela seria o novo pacto de trabalho da redação.

O sinal do compromisso entre o jornal e os jornalistas foi a abolição da lista de nomes proibidos. Todos os jornais tinham os seus desafetos e não faziam segredo. Cada jornal cultivava os seus excluídos. O JB sepultou o costume atrasado.

Não foi por acaso que, na segunda metade dos anos 50, os jornais do Rio e de São Paulo (de presença nacional) se habilitaram à condição de empresas. Era necessidade pressentida mas não definida com clareza nem objetividade. Nascimento Brito sentiu cedo, nos anos 50, as limitações do mercado publicitário incipiente, confinado a produtos secundários e ao ranço do jornalismo provinciano.

O JB não era exceção. A quantidade de jornais excedia as possibilidades de sobrevivência de todos. Era o fim dos jornais a partir de títulos de propriedade registrados. Iam nascer os jornais como grandes empresas. As aspirações sociais e econômicas desenhavam, no entanto, um novo perfil do brasileiro. A industrialização iria confirmar nos anos 60 as expectativas da classe média já vacinada contra o pessimismo plantado no país essencialmente agrícola. A crise política viria para ficar muito tempo e esgotar a sua carga histórica cumulada. Foi por aí que o Jornal do Brasil encontrou a passagem que o levaria a jogar com a liberdade de informação e com uma opinião que falava a uma parcela social em ascensão política.

Depois de conhecer, antes dos 30 anos, as limitações do velho JB , Nascimento Brito foi viver por dentro o funcionamento dos jornais americanos. Voltou para disputar a prova de modernização que iria dizimar títulos que se recusavam a se estruturar e agir como empresas. Com a contribuição do JB, a liberdade de imprensa não mais seria exclusiva dos donos dos jornais: reservava-se uma cota para os jornalistas. Não foi por acaso que só então vieram para ficar e frutificar as revistas de texto. O jornalismo de denúncia substituiu com qualidade e responsabilidade o nível tradicional de ataques pessoais que era privilégio dos donos de jornais.

A separação entre informação e opinião foi dogma para Nascimento Brito, que providenciou um altar onde, todas as tardes, celebrava o culto da opinião no JB. Reunia os editorialistas, debatia os assuntos de maior destaque e selecionava o que deveria ser comentado. Todos, diretores e editorialistas, se preparavam para o ritual cuja contrapartida era o reconhecimento da liberdade de informação assegurada a todas as editorias. Reduziu-se a distância entre a empresa e os jornalistas. O exercício diário da busca da coerência e as demonstrações oportunas de coragem das posições assumidas valeram ao JB o reconhecimento de jornal de opinião elaborada. Informado das críticas feitas entre proprietários de jornais que viam ausência de comando na ampla liberdade da redação, Nascimento Brito respondeu a quem lhe levou o comentário: no JB, realmente, o dono não manda. Pede.

A morte de M. F. do Nascimento Brito cria a oportunidade para a reavaliação de meio século de sua presença no JB, com a elegante discrição que não perdia oportunidade de lembrar aos editores que ele e os seus (a família e os jornalistas) não deviam ser notícia nem fotografia. A morte, porém, o libera do compromisso.”