Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Visita ao mundo


 

Ruth Cardoso

Prefácio a O Poder da Identidade, do sociólogo espanhol Manuel Castells, tradução de Klauss Brandini Gerhardt, segundo volume da trilogia "A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura". Editora Paz e Terra, Rio, 1999.

Vejo este livro como uma grande aventura, e seu autor como um grande desbravador. Levando uma bagagem pesada, com muita sociologia, bastante antropologia e uma visão política clara, Manuel Castells partiu para visitar o mundo. Tal como os viajantes antigos, observou detalhes, interessou-se pelas diferenças e pelas peculiaridades, procurando um fio de meada que pudesse explicar o mundo pós-moderno ou pós-industrial ou qualquer outro nome que se queira dar para as novidades do mundo globalizado. O desafio era compreender a diversidade de manifestações que se repetiam em muitos países sem ser iguais e que nem se sabe se poderiam ser classificadas como da mesma espécie.

O desafio era grande mas agora sabemos, lendo seus livros, que encontrou as pistas que procurava e com elas decifrou o mistério. Sua grande contribuição foi oferecer uma explicação abrangente, instigante, que renova a teoria da mudança social e apresenta uma visão totalizante que engloba as transformações tecnológicas, a cultura e a sociedade.

Para atingir esse objetivo inovou também no campo da metodologia: o estudo de caso, a observação participante e a preocupação com a comparação estavam sempre presentes (como na melhor tradição antropológica), mas sem esquecer que o objetivo era, e é, chegar a uma visão compressiva em que o geral não seja um empobrecimento do específico. A diversidade é desafiadora, mas alguns (entre os quais Castells) ainda acreditam que é preciso refletir sobre os contextos novos em que se desenrola a vida social para compreender os mecanismos de mudanças e, partindo destas situações, buscar um novo quadro teórico para explicá-los.

No volume I desta série, Castells mostrou o efeito das imensas transformações tecnológicas, especialmente na área da comunicação, trazidas pelas últimas décadas. Ainda mantendo seu gosto pelo materialismo, ele parte desta nova base material para descrever o impacto da informatização sobre as culturas de todo o globo, e apresenta o conceito de sociedade em rede que resume as características do mundo contemporâneo globalizado. Sua definição está na introdução do presente volume, onde lemos:

A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade é caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forna de organização em redes; pela flexibilidade e instabilidade do emprego e a individualização da mão-de-obra. Por uma cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida – o tempo e o espaço – mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e elites dominantes. (p. 17)

Encontramos uma visão nova na construção de conexões que ligam as modificações do capitalismo contemporâneo e seus reflexos nas formas de trabalho e nos eixos fundamentais que organizam as culturas. Por um lado, a globalização impõe padrões comuns pois difunde uma mesma matriz produtiva, baseada na nova tecnologia que apaga distancias mas, por outro lado, propicia reações locais que nascem marcadas pela ampliação da comunicação e pelas novas práticas sociais. As transformações das bases materiais da vida deixam marcas locais não visíveis (porque virtuais), mas que mudam as formas de ação e as orientações básicas das culturas.

Está colocada a questão da identidade, ou das identidades, como um núcleo resistente à homogeneização e que pode ser semente de mudanças socioculturais. Mas, insiste o autor, existem tipos diferentes de manifestações identitárias. Todas estão marcadas pela história de cada grupo, assim como pelas instituições existentes, pelos aparatos de poder e pelas crenças religiosas. E nem todas desenvolvem uma prática renovadora. Algumas se traduzem em resistência à mudança e outras, em projetos de futuro. Exatamente porque a construção das identidades se desenvolve em contextos marcados por relações de poder, é preciso distinguir entre estas formas e as diferentes origens que estão na base do processo de sua criação. O autor distingue:

  • Identidade legitimadora, cuja origem está ligada às instituições dominantes.
  • Identidade de resistência, gerada por atores sociais que estão em posições desvalorizadas ou discriminadas. São trincheiras de resistência.
  • Identidade de projeto, produzida por atores sociais que partem dos materiais culturais a que têm acesso, para redefinir sua posição na sociedade.

Qual o grande interesse dessa tipologia? Ela expõe a diversidade de manifestações que poderíamos enquadrar na categoria de movimentos sociais. Chamaríamos alguns de novos movimentos e outros de tradicionalistas sem ganhar muito na compreensão desses fenômenos. Agora dispomos de um instrumento que amplia nossa visão porque expõe os parentescos entre essas várias ações, sem perder sua especificidade e, principalmente, sem julgá-las valorativamente. É certo que a própria classificação indica o papel inovador de certos movimentos, enquanto outros são obstáculos à mudança. Mas, o que aprendemos imediatamente, é que a dinâmica de cada caso explicará seu desempenho e, portanto, que não existem "bons" ou "maus" movimentos, mas contextos dinâmicos a serem compreendidos. Por esse caminho voltamos a perceber a necessidade de enfrentar os fenômenos novos munidos de instrumentos que permitam compreender a dinâmica sociocultural. Sem classificações valorativas ou preconcebidas, e livre de um determinismo estreito, Castells apostou no movimento constante da sociedade e da cultura, e percebeu as possibilidades de transformação, trabalhando sem direcionismo e sem profecias.

Aprendemos como se formam novos atores sociais, como sua atuação é fragmentada, muitas vezes isolada, mas sempre em interação com os aparatos do Estado, redes globais e indivíduos centrados em si mesmos. Todos esses elementos não se articulam, pois suas lógicas são diferentes e sua coexistência não será pacífica; mas certamente será "produtiva" para a transformação da sociedade.

A globalização não apagou a presença de atores políticos. Criou para eles novos espaços pelos quais se inicia um processo histórico que não tem direção prevista. A criatividade, a negociação e a capacidade de mobilização serão os mais importantes instrumentos para conquistar um lugar na sociedade em rede.

A partir daqui recomendo a leitura deste livro, porque somente a riqueza de informações e a precisão das interpretações poderão conquistar os leitores para que olhem o mundo globalizado com olhos críticos mas também esperançosos.

 

 

Beth Saad

Informações de todos os tipos, mercados globalizados, comunicação digital, TV e Internet, colocando ao vivo e em tempo real em nossas telas as notícias de qualquer parte do mundo, já fazem parte dos hábitos e rotina de grande parcela da sociedade. Do mesmo modo, e pelos mesmos canais, nossa vida é afetada por crises econômicas de outros países, pelas transformações radicais no modo de trabalho e na relação do emprego, pela busca de uma nova identidade e cidadania adequadas a esse novo ritmo e contexto. Uma sociedade que nos absorve na velocidade da luz, antes mesmo de percebermos que já estamos nela.

Uma referência marcante dessa nova era é o professor, sociólogo e urbanista espanhol Manuel Castells, cujo livro O Poder da Identidade, o segundo volume da trilogia "A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura", está sendo lançado pela Editora Paz e Terra (524 págs., R$ 38) com prefácio de Ruth Cardoso. O primeiro volume de sua trilogia analítica da sociedade da informação – A Sociedade em Rede (620 págs., R$ 45) – foi lançado em maio, pela Editora Paz e Terra, com a presença do autor em São Paulo e em diversas capitais brasileiras.

Manuel Castells tem uma relação antiga e sólida com o Brasil, desde os anos 70, e concedeu essa entrevista exclusiva [ao Estado de S.Paulo] para falar sobre um tema fortemente presente em sua obra, com um papel fundamental nessa sociedade da informação, e às vezes pouco percebido por seus analistas e críticos: o papel dos produtores da própria informação. Castells apresenta aqui suas opiniões e abre um diálogo sobre a influência e a ação da mídia eletrônica e on-line e do jornalismo em geral na chamada sociedade de informação.

Estado – Sem nenhum caráter de futurologia, o sr. faz uma lúcida análise dessa sociedade conectada pela convergência de telecomunicações, computadores e redes. Em sua opinião, qual será o salto tecnológico que vai sacudir a sociedade do século 21?

Manuel Castells – Já estão em processo duas grandes mudanças tecnológicas, ambas transformando as condições materiais de nossa existência. A primeira é o salto das atuais tecnologias da informação para as tecnologias de rede ou de conectividade (o fim do computador pessoal), com a integração em um único sistema interativo dos diversos meios de comunicação: Internet, TV, vídeo, áudio e computador pessoal. O segundo salto tecnológico vai ocorrer com a aceleração da engenharia genética: a revolução da biologia será a revolução do século 21. Também vemos indícios do salto maior: a convergência entre as duas revoluções – tecnologias das comunicações e biologia – numa interação plena entre cérebros humanos e computadores. Na verdade, ficção científica e futurologia acabam por pautar a realidade, considerando que realidade é o que já está ocorrendo nos laboratórios científicos mundo afora.

Estado – Em sua opinião, qual seria a nova ou a revisada ética e valores do jornalismo nessa era da noticia em tempo real, em especial para informações do mundo dos negócios e da economia, sensíveis, segundo suas palavras, a "turbulências informativas" e a "movimentos de opinião". Estaria a grande imprensa eletrônica no que poderíamos chamar de olho do furacão da sociedade de informação?

Castells – O ponto crucial é que o comportamento do investidor está conectado globalmente e sujeito a abalos repentinos que são amplificados pelas redes eletrônicas de informação, por estratégias determinísticas e por ações especulativas. Na falta de regulação desse mundo eletrônico, o destino dos investimentos, e o próprio destino de economias inteiras, fica condicionado a um movimento aleatório do mercado financeiro global. Por outro lado, existe, inegavelmente, o controle da informação pelos grandes conglomerados de mídia e um processo de concentração de capitais nesse segmento. Mundialmente, as mídias absorvem e distribuem mais de 90% das informações recebidas por quem tem acesso a elas. Mas também as mídias não são uma entidade única, controlando a tudo e a todos, porque são oligopólios competitivos, não possuem as mesmas estratégias, os mesmos interesses nem os mesmos aliados.

Estado – É verdadeira a crença de que os grandes conglomerados de informação eletrônica reduzem o acesso à informação e aumentam a grande massa de excluídos?

Castells – É preciso entender que a mídia precisa estar, de alguma forma, conectada às necessidades de seu público. Não pode simplesmente impor seus gostos e pontos de vista às pessoas, pois o seus concorrentes vão encontrar uma forma de tomar esse público. As pessoas não são receptoras passivas da manipulação da mídia. Pesquisas recentes enfatizam descobertas interessantes sobre o comportamento do público de mídias interativas, ou seja, um público que reage e formata as mensagens. O contraponto é a Internet, que revoluciona tudo, criando uma rede horizontal de comunicação pessoa a pessoa com interatividade (ou seja, de qualquer fonte – incluindo corporações e governos – e para com qualquer receptor). Naturalmente, sabemos que as massas não estão na Internet e, portanto, dependentes das mídias tradicionais. Mas, as massas ainda não estão na Internet. Quanto mais a educação se desenvolve, quanto mais a Internet se expande, mais pessoas podem criar as próprias redes de informação.

Estado – E como fica nisso o papel do jornalista, trabalhador desses conglomerados e que veicula informações também pela Internet?

Castells – Os jornalistas é que alimentam as informações para todas essas mídias, mas eles não são simplesmente seus fantoches. Jornalistas estão constantemente submetidos às mais diversas pressões e alguns se sujeitam a elas (como também o fazem professores, políticos e policiais). Mas, muitos e muitos brigam para reportar todos os dias a realidade que está a sua frente e para comunicar-se inteligentemente dentro dos limites do meio em que atuam. Resumindo, enquanto os grandes grupos ainda conseguem expressar o seu poder manipulando a mídia, a evolução da sociedade e da tecnologia vai no sentido da diversidade e da contradição da própria mídia.

Estado – Uma de suas teses é que estamos na era do hipertexto eletrônico que unifica a descentralização e diversidade da informação. O jornalismo on-line pode exercer esse papel unificador?

Castells – Atribuí o termo hipertexto eletrônico exatamente porque ele reúne todas as mensagens, de qualquer origem, incluindo a sua interatividade. Portanto, o jornalismo on-line é um componente fundamental para a existência desse hipertexto, juntando as mensagens individuais. O jornalismo eletrônico está se desenvolvendo rapidamente. Não apenas os jornais estão ou estarão na Internet, estarão com atualizações minuto a minuto, é parecido com a TV ao vivo acrescida da maior capacidade analítica e discursiva por conta da expressão textual. A Internet não vai substituir o jornalismo impresso, ao contrário, ela vai dar a possibilidade tecnológica de competição com o imediatismo da TV (que também transmitirá via Internet). Reportar em hipertexto é poder, quase ou até simultaneamente, acompanhar o mesmo fato somando os recursos da TV, do próprio jornal e dos comentários pessoais de diversas fontes. O embrião desse sistema já existe. Falta apenas a decisão de vendê-lo.

Estado – Qual o papel da informação jornalística na construção da opinião coletiva nessa sociedade em que o espaço mediático é um composto de individualismos?

Castells – Não existe a unificação das mensagens individuais. Estamos na era de uma contínua sucessão de mensagens de todas as origens, até mesmo de indivíduos. Deixamos para trás o mundo da mídia de massa. Estamos no mundo de públicos específicos, da pluralidade de meios de transmissão e da individualização da interação de um para um ou de um para muitos. A grande questão será em qual mensagem deveremos acreditar diante dessa multiplicidade de opções. Agora, mais do que nunca, o jornalismo responsável, de credibilidade, é importante e valorizado e deverá continuar sendo assim nessa galáxia de informações.

Estado – As bases da sociedade de informação incluem a tão falada relação entre local e global, produzida pelas mídias interativas. Como as empresas jornalísticas podem fazer isso de forma eficiente?

Castells – As empresas de mídia já estão conjugando o global com o local. Negócios, conexões, estratégias e fórmulas de comunicação globais, produtos para públicos específicos. Um bom exemplo é a operação da Star TV na Ásia, de propriedade de Ruppert Murdoch. A rede é global, mas especialmente para a China, produzem novelas em cantonês baseadas em temática local. Na Índia usam a mesma fórmula de uso da temática local com versões em hindu e tamil. Com as notícias e o jornalismo ocorre o mesmo: redes de TV combinam importantes fatos globais com o que traz maior audiência, as notícias locais. Global e local criam redes especializadas (a CNN global, as TVs locais, jornais locais), mas todos estão no mesmo sistema a cabo ou digital. Nas novas mídias a interação entre global e local é contínua, caso contrário os grandes conglomerados não se sustentariam.

Estado – O sr. afirma que "é melhor pensar localmente e agir globalmente", em contraposição à máxima tão celebrada pela mídia "pense global e atue local". Como é isso?

Castells – O verdadeiro poder é global. Mas não se pode unicamente pensar em termos globais porque as questões se tornam muito abstratas. Assim, é preciso pensar localmente, começando por discutir quem você é, onde você vive, o que é que você quer fazer, qual a sua identidade e qual a sua história. Só depois de bem claras e enraizadas, essas respostas podem começar a agir para ter mudanças globais, a partir dos interesses e valores individuais, com a consciência de que o resultado último dessas ações vai afetar o global, mesmo que muitas vezes isso seja um processo de passo a passo e de vitórias em batalhas locais.

Estado – Por que a mídia dessa nova era deveria assumir muito mais um papel de mensageira do que de emissora de mensagens?

Castells – Não é exatamente mensageira. Quero dizer que para a mídia assumir um papel diferente nessa nova era, contribuindo para uma sociedade melhor informada e mais democrática, ela deverá dar prioridade às próprias mensagens, que reflitam o pensamento da sociedade e dos indivíduos que ela representa, em vez de transmitir mensagens que satisfaçam apenas interesses de mercado ou de influências políticas. Considero que transformar a mídia num sistema de comunicação autônomo, responsável e educativo é a batalha política mais importante de nosso tempo.

Estado – Uma forte impressão que fica após a leitura de A Sociedade em Rede é que o mundo da informação favorece a junção numa única entidade multifacetada, jornalistas, comunicadores, cientistas sociais, urbanistas, geógrafos e muitos outros humanistas. A própria atuação profissional é um exemplo vivo dessa idéia. Quem serão os cientistas sociais da era da informação?

Castells – Os cientistas sociais terão mais trabalho do que nunca na era da informação. Já vivemos nesse novo mundo, as pessoas sabem disso, mas não sabem por que nem como isso aconteceu. Isso as leva a um certo terror, por estarem num mundo que exige delas mudanças quase que diárias. E elas não percebem que as coisas não são tão complexas e que podem ser compreendidas e explicadas, exatamente por esses cientistas sociais multifacetados. Mais do que nunca, nosso papel é pesquisar, ensinar, comunicar, numa estreita colaboração com jornalistas, e ficar tão distantes quanto possível dos políticos.

Estado – O último capítulo de sua trilogia começa e termina com um poema de Pablo Neruda que justifica toda a sua dedicação à pesquisa. Nada melhor que a poesia para expressar que a sociedade conectada está muito menos ligada à tecnologia e muito mais unida pela capacidade humana em agregar a diversidade. Seja qual for o futuro, seja qual for a próxima onda tecnológica, é possível dizer que enquanto nossos poetas puderem expressar esse turbilhão de mudanças, a natureza humana prevalecerá?

Castells – Sim, a poesia é essencial, porque fala direto ao coração, sem reflexões e conclusões. Poesia é a vida pura, transformada em linguagem para impactar as mentes de outros, para purificar as vidas de outros. Mas, nós não estamos ameaçados de perder a natureza humana. Ela sobrevive por si, pela própria transformação. É fato que estamos num momento de rápidas transformações de nossa natureza e quem seremos no futuro dependerá de nós mesmos. Deixo para os leitores a decisão se isso é uma afirmação otimista ou pessimista.

(*) Copyright O Estado de S. Paulo, 17/10/99

 

 

Paulo Vaz (**)

Acabam de sair no Brasil os dois primeiros volumes da impressionante trilogia do sociólogo espanhol Manuel Castells, A era da informação. Impressionante é o adjetivo apropriado pois trata-se de um feito intelectual. Castells tinha uma relativa notoriedade na comunidade acadêmica por seus trabalhos em sociologia urbana. A trilogia, porém, discute praticamente tudo o que está acontecendo. O leitor se familiariza com personagens e lugares da Europa, América, África, e Ásia. Encontra uma análise mais aprofundada de temas que ocupam a agenda da mídia: revolução tecnológica, modificações no trabalho, transformações na família, ecologia, massacres étnicos, fundamentalismo religioso, nacionalismo, tráfico de drogas, etc. Superando as mais de mil páginas, o leitor terá acompanhado o surgimento dos chips, visto a renovada popularidade de Deus e chegado à explicação do colapso da União Soviética, passando no caminho pela maior freqüência na prática de sexo oral nos últimos 50 anos. É compreensível que Castells descreva heroicamente o seu esforço, dizendo que viveu numa "selva de livros" durante os 15 anos de redação dos livros.

Apesar do longo tempo de gestação, por expressões e metáforas, percebemos que Castells sentia urgência em conceituar o presente. "Pela primeira vez na história" é expressão recorrente nos livros, dando forma a um sentimento de singularidade absoluta. Só hoje o mundo vive sob as mesmas regras econômicas, a tecnologia afeta a mente, o patriarcado está em crise, etc. A singularidade é demonstrada pela comparação de nosso presente a acontecimentos maiores da história humana. Por exemplo, a Internet e a multimídia terão tanto impacto quanto a invenção do alfabeto. Pior: estamos no "estágio embrionário" de transformações que ocorrem num instante se vistas sob uma perspectiva histórica. Daí o uso freqüente do termo "explosão" para descrevê-las: dá a imagem de mudanças rápidas, de grande alcance e impacto sobre nossas vidas. A trilogia é um retrato panorâmico do mundo vertiginoso.

Castells não se vangloria de sua erudição, mas de ter encontrado os fios que explicam o que estamos vivendo. Três fatores autônomos, surgidos no final da década de 60, responderiam por todas as mudanças: a revolução das tecnologias da informação, a crise do capitalismo e do socialismo com a restruturação apenas do primeiro na década de 80 e, por fim, os movimentos libertários que reagiam à autoridade e às injustiças ao mesmo tempo em que propunham a busca de novas experiências. Vejamos Castells tramar estes fatores-fios para constituir o tecido do nosso mundo.

O desafio maior da revolução engendrada pelas tecnologias eletrônicas e a engenharia genética é saber por que as inovações são incessantes e interligaram rapidamente o globo. A dinâmica do paradigma industrial baseava-se na descoberta e propagação de novas fontes de energia; o paradigma informacional, diz Castells, é marcado pela invenção de novas tecnologias para processar e transmitir informações. Deste modo, a introdução de novas tecnologias amplia a possibilidade de inventá-las, promovendo uma difusão praticamente imediata e uma dinâmica exponencial. Sendo a informação sua matéria-prima, este nosso paradigma perpassa todas as atividades humanas por afetar nosso pensamento: altera o modo como nascemos, aprendemos, produzimos, consumimos, sonhamos e morremos.

A globalização resultou da conjugação entre revolução tecnológica e restruturação do capitalismo. Além de permitirem organizar os componentes da produção em escala global e de fazerem da inovação e da flexibilidade as peças-chave da competição entre empresas, as novas tecnologias de informação possibilitaram à economia mundial funcionar como unidade em tempo real. No mercado financeiro, por exemplo, o dinheiro pode ser transferido imediatamente entre bolsas quaisquer do globo. Unificação tecnológica não significa integração. A rede conecta e desconecta lugares e indivíduos de acordo com sua relevância para a dinâmica variável do capitalismo global, às vezes excluindo um continente inteiro, como parece ser o caso da África.

O trabalho foi profundamente afetado pela globalização. Castells discute a diversificação de funções e ritmos e a polarização das desigualdades econômicas; ressalta, porém, a importância do conhecimento no processo de trabalho dado o impacto das tecnologias de informação. Estaria emergindo uma nova clivagem social em substituição à oposição entre capital e trabalho: de um lado, estão os trabalhadores com educação ampla e prolongada, capazes de se reprogramar diante das mudanças e cosmopolitas em termos de mobilidade espacial e de crenças; de outro lado, aqueles que, por sua formação reduzida, encarregam-se de trabalhos genéricos, necessários coletivamente, mas dispensáveis individualmente, podendo ser contratados em qualquer lugar do mundo ou substituídos por máquinas.

A globalização e as tecnologias de informação criam, para Castells, a "cultura da virtualidade real", aquela que faz das aparências nas telas de computador e TV a própria experiência. Cada vez mais estamos expostos à mídia e, à diferença de outras culturas, estão em crise as instituições e personagens que separam o real do imaginário, o prazer do bem comum, o sério do jogo. Se tudo pode ser traduzido em informação, educação, religião, política, arte, entretenimento, narrativas pessoais, pornografia, em suma, todas as mensagens encontram espaço na tela acolhedora. Mas se o meio é a mensagem, a indiferenciação é o resultado. No seu programa, Ratinho condensa as figuras do padre, médico, educador e político; em contrapartida, qualquer uma destas figuras, para ter sua mensagem difundida, deverá se parecer com um apresentador de TV.

A vez da exclusão em rede

A difusão de fluxos globais de capital, informação e imagem provoca miséria e perda de sentido. Para grupos e indivíduos, construir sua identidade torna-se tarefa dramática e inevitável. O novo funcionamento midiático, ao indiferenciar mensagens, destitui de autoridade as instituições que se encarregavam de fixar o sentido. Ao mesmo tempo, não podemos mais construir nossa identidade nem com referência a costumes – pois o lugar perde peso na construção da sociabilidade diante dos fluxos globalizados – nem com referência a funções no trabalho, dados os efeitos conjugados do novo paradigma tecnológico e da restruturação do capitalismo.

Os movimentos libertários de maio de 68 participaram ativamente desta nova configuração do mundo. Mesmo derrotados, suas idéias ressoaram e permaneceram na ecologia, no feminismo, na defesa dos direitos humanos, na liberação sexual e na igualdade étnica. Seus efeitos, porém, são maiores que a simples reformatação do sonho Iluminista. Contribuíram para a constituição do paradigma tecnológico que privilegia o uso descentralizado da tecnologia. Facilitaram a restruturação do capitalismo ao se separarem da esquerda tradicional, diminuindo o poder dos sindicatos. Ampliaram a incerteza individual ao colocarem em crise a família através de sua crítica ao patriarcado. Sua abertura cultural favoreceu a experimentação com a manipulação de símbolos, aprofundando a indústria do entretenimento e participando, deste modo, da implantação de uma cultura da virtualidade real.

Contudo, o efeito maior foi que os valores destes movimentos libertários tornaram-se aqueles da elite cosmopolita; já os grupos marcados pela incerteza econômica e simbólica, destituídos de informação, recursos e poder, ao cavar suas trincheiras contra a globalização, recorreram exatamente aos valores "eternos" que os movimentos questionavam: Deus, família e nação. Reinventam a tradição para resistir à globalização. Sua lógica, porém, amplia o terror: excluídos, lutam para excluir aqueles que os excluem. Nota-se a referência à tese de Marx sobre a emergência do socialismo: os expropriados expropriarão os expropriadores. Ao invés do sonho de igualdade, fraternidade e liberdade, a exclusão dos que excluem molda nosso pesadelo concreto de guerras religiosas, étnicas e nacionalistas. A exclusão recíproca entre a rede e os movimentos defensivos de identidade responde pelo alastramento da miséria e da violência no mundo.

Reconstituímos, enfim, o tecido esgarçado proposto por Castells para vestir nosso mundo. De um lado, a rede, globalizando informação, capital e imagens, com suas conexões móveis e excludentes econômica e culturalmente; de outro, a maior parte da população que, além de não ter flexibilidade diante das mudanças aceleradas, perde seus circuitos de proteção e a possibilidade de ação política, é marcada pela incerteza estrutural e procura apoio simbólico em idéias de religião, família, pátria e raça.

O livro constata um mundo em catástrofe se continuar valendo a lógica da exclusão recíproca. Afasta-se, portanto, das profecias de redenção tecnológica e de fim da história. Dada a nova clivagem social, o caminho de resgate da esperança estaria na construção de políticas culturais. Viveríamos em um mundo superdesenvolvido tecnologicamente, mas subdesenvolvido social e culturalmente. O sonho Iluminista torna-se palpável; contudo, a exclusão recíproca dele nos distância. Sua concretização, aposta Castells, dependeria de o feminismo e a ecologia atingirem uma amplitude semelhante à conquistada antes pela luta dos trabalhadores. Primeiro, porque estes movimentos, à diferença dos movimentos fundamentalistas, reagem à globalização pressupondo uma identidade cosmopolita e democrática. Permitiriam também escapar à lógica excludente da rede ao reorientar o desenvolvimento tecnológico. O princípio de eficácia hoje dominante vincular-se-ia ao patriarcado e à dominação da natureza. Vitoriosos a ecologia e o feminismo, redistribuiríamos a renda, afirmaríamos a comum pertinência de todos os seres vivos e a solidariedade entre gerações.

A amizade de longa data entre Castells e nosso presidente e primeira-dama, que prefaciaram, respectivamente, o primeiro e o segundo volumes, dá à recepção do livro no Brasil uma conotação política adicional. Para alguns, a mera leitura pode significar gesto de adesão. O tom apologético das passagens onde comenta o governo do amigo coloca, porém, um dilema simples: ou Castells redigia a publicidade do governo FHC, ou não foi amplo na seleção de suas fontes. De qualquer modo, a trilogia é uma obra de referência útil a um público amplo. Embora volumosa, permite recortes modulares de acordo com o interesse do leitor pois cada capítulo pode ser considerado uma breve monografia sobre um tema.

Por sua vocação enciclopédica, o livro desperta o rancor do especialista, que ressente a invasão de seu campo por uma visão sintética usualmente competente. Mas se aceitar o convite de Castells, enriquece sua perspectiva pelo enquadramento do campo em um panorama. Podemos, porém, apreender limites que não resultam da irritação com a erudição de Castell. Um é não aprofundar temas decisivos à sua argumentação. Destaca-se aqui a escassez de comentários sobre a flutuação das moedas. Embora diga que "o capital financeiro hoje coloniza o futuro", não analisa o jogo do câmbio como instrumento na luta política entre Estados-Nação e fonte de incerteza estrutural. Um panorama é apenas um retrato; não há tampouco o cuidado de articular as mudanças aceleradas com a inserção em uma narrativa histórica. Esta ausência é transparente na permanência de uma visão onde a tecnologia aumenta a riqueza, a dificuldade consistindo em distribuí-la. Mesmo mostrando que a tecnologia transforma a experiência por afetar a mente, acaba delimitando as questões éticas que provoca à alternativa simplista entre subdesenvolvimento social e superdesenvolvimento tecnológico. Enfrentar estas questões implica considerar que o efeito mais profundo do novo paradigma tecnológico é nos obrigar a "transformar as categorias sob as quais pensamos todos os processos", repensando então o que é o pensamento humano e sua história. Pela delimitação econômica das questões éticas, até mesmo pela esperança excessiva depositada na ecologia e no feminismo, parece que Castells não seguiu o seu conselho. Em suma, a trilogia destaca-se como síntese e não pelas inovações teóricas.

(*) Copyright Idéias/Jornal do Brasil, 30/10/99
(**) Paulo Vaz é professor de Filosofia