Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Voto indireto nos EUA

O VEXAME AMERICANO

Cláudio Weber Abramo

Movido mais pela curiosidade do que por algum motivo cívico, tenho acompanhado a cobertura das idas e vindas das eleições presidenciais norte-americanas. Fundamentalmente, sigo a CNN.

Célebre por montar grandes operações de cobertura, a CNN patinou bastante no início mas, depois, aprumou: repórteres e âncoras na Flórida, no Texas, em Washington, opiniões cuidadosamente equilibradas entre os dois lados, porta-vozes de ambos os candidatos, advogados e por aí foi. A cobertura dos fatos imediatos acompanhou o padrão norte-americano típico: raspava a superfície, mas não planejava coberturas nem levantava questões óbvias. No tipo de jornalismo declaratório praticado nos EUA, e cada vez mais no Brasil, não é o editor que planeja a edição, mas as fontes. Estas, por sua vez, não são bestas, não acreditam que notícias brotam espontaneamente do nada e executam um planejamento cuidadoso do que dirão. O paraíso do assessor de imprensa, o verdadeiro editor.

Quais questões óbvias a CNN não levantava? Vai aí a principal: a possibilidade de recontagem manual de votos é prevista em quase todos, senão todos, os códigos eleitorais dos estados dos EUA. De forma que a tentativa de interrupção do processo tentada pelos republicanos não passou de chicaneria, coisa que qualquer jurista constitucionalista poderia ter esclarecido. Mas nenhum foi ouvido. O ex-secretário de Estado James Baker, representante de George W. Bush na Flórida, chegou a declarar que a contagem manual seria menos precisa do que a mecânica, sem que ninguém – nem mesmo os democratas –, muito menos a emissora, exibisse a falácia formal do argumento.

Contagem manual

Causava espanto o evidente viés pró-Bush da repórter designada para cobrir o estado-maior da campanha do candidato republicano: uma senhora com ar maldoso, um verdadeiro James Baker de saias. Aliás, como disse o candidato independente Pat Buchanan, os democratas sabem play hardball – isto é, jogar pesado – muito melhor do que os republicanos, apesar de todo o ar façanhudo dos assessores de Bush. Warren Christopher, com sua fala mansa, e Bill Daley, filho de um famoso e eterno prefeito de Chicago, ambos assessores diretos de Al Gore, deram de dez em Baker.

Essa questão de saber se o apuração manual seria ou não questionável recebeu pouquíssma atenção da CNN. A informação de que a legislação de todos os estados dos EUA prevêem contagens manuais em caso de dúvida, sumiu. Como não foi mencionado o fato de que no estado do Texas, de onde George W. Bush é governador, a norma eleitoral não apenas prevê esse mecanismo como ainda chega a definir que devem ser contados como votos os tais pregnant ballots, quer dizer, cédulas sem furo, mas com uma simples depressão nalguma posição.

Certo dia, a CNN começou a veicular uma matéria da maior importância sobre o assunto, que mostrava que o próprio National Bureau of Standards dos EUA havia emitido laudo questionando a fidedignidade das máquinas apuradoras. A matéria foi interrompida pela entrada de um boletim e nunca mais voltou ao ar.

Na noite de quinta-feira, a CNN entrevistou o chief scientific officer da Sun Microsystems, um sujeito bem inteligente, o qual, cirurgicamente, explicou por que a contagem manual é melhor. E perguntou ao âncora, que ficou sem saber o que dizer: "Se sua vida estivesse em jogo, você preferiria que a decisão fosse tomada por uma máquina ou por um painel de seres humanos?".

Maluquices federativas

A CNN tampouco perseguiu o tema que constituiu o pano-de-fundo de tudo aquilo, o por que de a eleição presidencial ser indireta. Ela é indireta devido ao princípio federativo que está na base da formação do país. Lá não são os cidadãos que formam o Estado, mas cada unidade federativa. Portanto, quem elege o presidente é a Califórnia, a Flórida, Nova York etc., não os cidadãos. Que eu tivesse visto, ninguém disse isso na televisão. O que se disse foram as habituais manifestações daquela inimitável arrogância ignorante norte-americana segundo as quais os Estados Unidos dariam exemplo mundial de práticas democrático-eleitorais, e que as peripécias deste ano estariam deixando o mundo "perplexo". Desde quando, cara-pálida?

A alteração do mecanismo indireto para eleição do presidente exigiria uma emenda constitucional, o que, por seu turno, só se faz com aprovação das assembléias de três quartos dos estados. Quer dizer, não vai acontecer nunca – mesmo porque, caindo isso, se abririam precedentes arriscados (arriscados lá para eles, bem entendido) com respeito a todas as inúmeras maluquices federativas daquele país.

Não obstante, não faltou quem, na TV brasileira, vaticinasse que, já nas próximas eleições presidenciais, o voto indireto terá caído.

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