Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Voyeurismo e mídia

PROJETO DE PESQUISA

Márcio Santim (*)

Este artigo está baseado em projeto de pesquisa que venho desenvolvendo para o nível de mestrado, objetivando a continuidade do estudo monográfico realizado na Universidade Metodista de Piracicaba, intitulado "Revista Caras: a encenação da intimidade" [veja remissão abaixo].

A proposta principal enunciada nesse projeto está na apreensão de alguns elementos que regem a relação entre mídia e subjetividade. Entre eles temos a expansão do voyeurismo, como marca incisiva na dinâmica psíquica do Homem da era globalizada.

Voyeurismo é palavra de origem francesa que já se encontra incorporada ao português e significa, de acordo com o dicionário Aurélio: "Excitação sexual ao observar a cópula praticada por outros, ou simplesmente ao ver os órgãos genitais de outrem, independentemente de qualquer atividade própria."

Na psicologia, é um termo freqüentemente utilizado para definir determinado tipo de desvio psíquico-sexual, entre outras parafilias como sadismo, masoquismo, pedofilia, fetichismo etc. A leitura crítica provém do tratamento concedido pelas ciências psicológicas a esse distúrbio comportamental, que ainda é incipiente e restrito ao âmbito psicopatológico individual.

Estado pueril

Em minha opinião, atualmente temos uma ampliação da manifestação voyeurista, pois este tipo de prazer não está mais contido apenas no olhar pessoas se despindo ou tendo relacionamento sexual; contrariamente, também escoa na curiosidade exacerbada em conhecer outros detalhes e momentos da intimidade de alguém, especialmente se o mesmo for um ícone veiculado pela mídia.

A intimidade, objeto do desejo voyeur, pode aparecer sob as mais variadas formas, como na exibição da decoração residencial, do animal de estimação, da família reunida numa festa ou no foco de uma dessas câmeras "discretas" que permanecem 24 horas no ar em alguns sites da internet.

O voyeurismo tornou-se canal para a satisfação de desejos psíquicos inconscientes, uma catarse social legitimada e incentivada pelos diversos mídias, entre eles programas televisivos de elevada audiência e revistas de grande tiragem, que apelam a um sensacionalismo contextualizado na vida privada. A promessa de prazer e felicidade enunciada pelo marketing mercenário da mídia é continuamente descumprida, criando nos indivíduos uma ilusão efêmera de satisfação.

Na realidade, o prazer psíquico voyeurista caracteriza-se por um estado pueril, centralizado no plano da fantasia, que gira em torno da promessa, ou seja, no desejo do ter, e não no próprio ter. O voyeurismo social engrena-se perfeitamente na funcionalidade do sistema, no sentido de perpetuar o ciclo do consumo irracional e desenfreado.

Fama e sarjeta

A manifestação deste tipo de funcionamento psíquico está atrelada à heteronomia do pensar, sentir e agir, constituindo conjunção global psicológica caracterizada pelo progressivo aniquilamento da individualidade. Trato da psicologia do indivíduo massificado, em que se torna cada vez mais difícil constatar autonomia e diferenças individuais.

A cultura atual tem enorme poder de persuasão, que induz os indivíduos a um processo identificatório no qual o principal instrumento que atende a esse objetivo é a própria mídia. Um estudo que se propõe a observar criticamente a complexa e cada vez mais significativa relação estabelecida entre mídia e subjetividade pode ser um caminho para a construção de um novo e sensato discurso da psicologia sobre seu objeto.

Creio que não seja pioneiro em propor um estudo acerca desse tema. Contudo ao meu ver, considerando a estatura alcançada nos dias de hoje, sua consideração ainda é minúscula dentro da Psicologia.

Os indivíduos são bombardeados, cotidianamente, por uma infinidade de informações, opiniões e entretenimento que passam impreterivelmente pelo filtro da mídia. Os veículos mediáticos podem, perante a opinião pública, num dia colocar alguém na calçada da fama e, no outro, esse mesmo alguém na sarjeta da calçada; podem produzir ídolos que deflagrem uma histeria coletiva – talvez nem mesmo vista no culto prestado aos deuses pelas tribos primitivas – apenas com um simples acenar de mãos para as (os) fãs; podem fazer com que valores contraditórios, numa sociedade predominantemente católica, convivam harmoniosamente; podem influenciar ou até mesmo determinar a formação de opiniões e valores sobre os mais diversos assuntos; enfim, há muitos fatores a serem considerados sobre o poder da mídia, mas acredito que estes, por si só, sejam suficientes para se ter uma idéia de sua abrangência.

Que se manifestem as ciências

Como se observa, a mídia se tornou o crivo da verdade, e não um meio que possibilite ao indivíduo refletir e fazer seus próprios julgamentos diante da realidade. Isso não é preocupante? Não parece que está tudo pronto, acabado e que ninguém mais precise pensar?

O discurso da mídia não seria mais ou menos assim?

"As coisas estão assim porque são assim. Apenas nós temos as respostas às questões e aos problemas que escolhemos como relevantes para a sociedade. Embora muitos não estejam esclarecidos ou convencidos sobre sua veracidade, para sobreviverem nesse espaço em que reinamos não lhes resta outra alternativa a não ser aceitar, acreditar e aplaudir aquilo que enunciamos como verdade, como um súdito aclama seu rei, pagando com isso importância significativa, cujo valor está na submissão incondicional ao sistema e na eleição da ilusão como substância para a razão do viver".

Esse estado ilusivo assume preponderância na medida em que os indivíduos são persuadidos a acreditar que têm vontade própria, e que as escolhas, nos mais diversos âmbitos da existência humana, são viabilizadas por uma sociedade democrática.

O que a psicologia e a sociologia isoladamente teriam a dizer a respeito, com suas respectivas teorias da personalidade e das correntes sociológicas tradicionais produzidas no início do século 20? Seus pressupostos teóricos, por si mesmos, abarcariam a complexidade desse fenômeno? Acredito que, se não houver um diálogo entre essas áreas do saber, obteremos um pseudo conhecimento, provedor do "status quo".

Tenho plena convicção da importância de uma leitura que reúna fundamentos teóricos de diferentes campos epistemológicos, minimamente suficientes para abordar esse fenômeno, e também da emergência na produção de novos conhecimentos nas ciências humanas, atualmente tão desvalorizadas na sociedade brasileira.

(*) Psicólogo

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Caras e a ilusão da intimidade – Marcio Santim e Luciano Rodrigues do Prado

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