Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Walter Ceneviva

ECOS DO DOMINGO ILEGAL

“Censura e punição: realidades inconfundíveis”, copyright Folha de S. Paulo, 18/10/03

“Na série de comentários sobre a Constituição que estou desenvolvendo neste mês, trato hoje da liberdade de comunicação. Retomo a decisão judicial que tirou do ar o programa de Gugu Liberato, porquanto toda a sociedade tem interesse em questionar a censura, pois isso diz respeito diretamente ao exercício dos direitos de cada cidadão, que caracterizaram mais do que tudo a Carta de 1988. O vocábulo ?censura? tem, no linguajar comum, significados diversos, correspondendo a uma forma de restrição ao comportamento de alguém. Nos meios de comunicação, é ato de autoridade que lhes impõe, permite ou proíbe a transmissão de informações e comentários, segundo os desígnios do poder. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, com a dupla autoridade de seu cargo e de sua condição de qualificado lidador do Direito, disse bem: a proibição a priori é censura e, como tal, incompatível com a Constituição.

No que aqui nos interessa, a forma de controle dos meios de comunicação pela autoridade pública, seja qual for o Poder a que esta pertença, tem sempre sua natureza impeditiva, porquanto interfere na liberdade de comunicar antes que esta se concretize. Nos tempos da ditadura militar, a interferência se fazia por censores oficiais, postos nas Redações ou até por simples telefonemas às emissoras, proibindo-as de divulgar matérias consideradas contrárias ao interesse do poder dominante.

A história da censura, na acepção aqui examinada, confirmada nos três lustros de vida da Constituição, indica permanentemente o mesmo tipo de comportamento. Num certo momento, a autoridade pública, dizendo agir em nome da lei, interrompe o fluxo da obra artística ou jornalística entre a fonte emissora (o jornal, a revista, a estação de rádio ou televisão) e o público.

Para melhor compreender a definição de censura, no caso do programa proibido, é preciso distinguir com absoluta clareza uma situação da outra. A luta contra a censura é a defesa da prática democrática e do direito fundamental de todos os cidadãos, retratado no inciso IX do artigo 5? e no artigo 220 da Constituição, assecuratórios da plena liberdade de manifestação. Outra coisa é a verificação de condutas criticáveis por desrespeitarem os bons costumes, estimularem a delinquência, infringirem ou não as leis vigentes. Há que constatar se constituíram infrações administrativas, legais ou mesmo criminais. O grau da culpa será avaliado em face da conduta apurada de cada um deles.

As duas situações não se confundem. A Constituição situa a diferença com clareza. Se princípios éticos ou relativos aos valores protegidos, por qualquer modo, são desrespeitados, a lei tem mecanismos próprios para a punição. Desenvolvem-se necessariamente através de outros atos da autoridade, destinados a apurar e a punir. Proibir o programa posterior, cujo conteúdo se ignorava, aludindo a defeitos do programa anterior, é censura. E, não obstante as respostas dos juristas contra a censura sejam vigorosas, como já fez o ministro da Justiça, nenhuma delas foi melhor que a do escritor francês Gustave Flaubert, escrita em 1852: ?A censura, seja qual for, parece-me uma monstruosidade, algo pior que o homicídio: o atentado contra o pensamento é um crime de lesa-alma?. Os constituintes de 1988 certamente foram inspirados pela mesma convicção.”

“O fantasma da censura prévia”, copyright O Globo in Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 16/10/03

“Após a decisão judicial que determinou a suspensão de uma das apresentações do programa ?Domingo Legal?, a frase que mais me chocou, na mídia, sobre o caso foi a de que a decisão configurou ?censura prévia?.

Tudo começou porque esta foi a tese da defesa. Confesso que até fiquei meio decepcionada com o caminho que adotaram, de tão infundado. Era óbvio que a suspensão ocorreu como forma de punição pelo conteúdo do programa já exibido, sem relação com o conteúdo do programa futuro. Digo forma de punição, pois a Constituição prevê até a possibilidade de cassação da concessão, mas pensamos que isso não seria plausível de se pedir em uma liminar.

Ao alegar que houve censura prévia, a defesa do SBT está no seu papel. Afinal de contas, têm que defender o seu cliente e usaram a tese mais bombástica possível. Era tudo o que grande parte da mídia queria para desqualificar a decisão.

Começou então uma verdadeira campanha para taxar aquela decisão de censura. Mas o que mais me preocupou foi o fato de alguns jornalistas e juristas, a quem admiro muito, também terem entrado em tal campanha. Muitos passaram a dizer que a liminar configurou censura porque um programa foi suspenso sem que a juíza soubesse o seu conteúdo. De forma contraditória, outros disseram que a liminar não configurou censura, também porque a juíza não sabia o conteúdo do programa futuro. E sempre, rondando o nosso trabalho, a tese de que foi ?censura prévia?.

Mas o que é censura? Quem sentiu na pele sabe muito bem o que é, e verá que o que aconteceu ao ?Domingo legal? não tem qualquer ligação com os empastelamentos sofridos pelas redações na ditadura.

Ao pesquisar ainda mais sobre o tema, verificamos que o que caracteriza a censura não é o fato de ser prévia ou posterior, mas 1. o fato de ser aplicada por agente da administração pública (não por juiz); 2. de não admitir direito à defesa ou contraditório (o SBT tanto teve esse direito, que recorreu); 3. e ainda o fato de ser baseada em critérios vagos como a ordem moral e política.

Posso afirmar que nossa Constituição não admite censura, nem prévia e nem posterior. Por mais absurda que tenha sido a conduta do SBT no episódio, nenhum representante do poder executivo, da polícia, do Exército, poderia pôr em prática qualquer sanção sem o crivo do Judiciário, através do devido processo legal. Ao mesmo tempo em que proíbe qualquer censura, a Constituição admite o acesso ao Judiciário como defesa diante da programação da TV, quando houver lesão ou ameaça de lesão a direito.

Então, censura e acesso à Justiça não podem ser a mesma coisa. Do contrário, a Constituição seria contraditória ao vedar a primeira e admitir o segundo.

Que bom, o fantasma da censura está mesmo afastado. Viva a liberdade de expressão e viva a liberdade dos cidadãos em se defenderem dela. A decisão judicial decorre dessa defesa, e não da volta do fantasma.

(*) Procuradora regional dos Direitos do Cidadão.”