Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Walter Maierovitch

PLANO COLÔMBIA

“Fracasso do Plano Colômbia”, copyright O Globo, 26/08/03

“O Plano Colômbia completou três anos no mês de julho último, e nessa sua primeira fase foram despendidos mais de US$ 2 bilhões. Pelos dados levantados, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) continuaram a arrecadar US$ 500 milhões por ano. Isso mediante a cobrança da chamada ?taxa-revolucionária?, gerada sobre a extração da folha de coca e as exportações da pasta-básica e do cloridrato de cocaína. Vultosas somas arrecadaram, também, os paramilitares das Autodefesas da Colômbia (AUC) e o Exército de Libertação da Colômbia (ELN).

O fracasso do Plano Colômbia foi avaliado pela Anistia Internacional, em recente seminário realizado pelo Congresso dos EUA. O representante da Anistia, Eric Olson, ressaltou que nos últimos três anos, e por força do conflito armado, milhões de colombianos fugiram do país. Seguramente, referiu-se aos 412 mil refugiados, conforme dado oficial. A esse total acrescentam-se cerca de 20 pessoas que diariamente são assassinadas.

Ainda sobre a falência do Plano Colômbia, foram registradas manifestações dos congressistas democratas americanos. Um deles, James McGovern, frisou ser o plano ?cada vez menos uma conquista para os colombianos e cada vez mais uma marca da estratégia militar do governo dos EUA?.

Nos três anos do Plano Colômbia, uma nova pesquisa encomendada pelos EUA estimou em 30% o lucro líquido obtido com a venda de cocaína realizada pelos ?cartelitos? colombianos. Apesar do percentual baixo (30%), o lucro é significativo em razão do movimento planetário da cocaína. Os 70% restantes cobrem gastos e despesas: corrupção de autoridades (20%), transporte, matéria-prima e insumos químicos (12%), advogados e comissões de corretores incumbidos da lavagem do dinheiro sujo (11%), perdas por motivos fortuitos ou apreensões policiais (25%) etc.

Vale lembrar que mais de 80% da cocaína disponível no mercado internacional são de procedência colombiana, saída dos laboratórios operados pelo sistema de cartéis pequenos e interligados. Esse novo sistema substituiu a forma organizacional idealizada por Pablo Escobar, responsável pela introdução do plantio da coca na Colômbia, e que se gabava de ter aberto 3 milhões de postos de trabalhos para os colombianos.

A propósito, os americanos imaginaram que o problema da oferta da cocaína estivesse solucionado quando promoveram e apoiaram as ações que resultaram na morte de Escobar (1993), nas prisões dos irmãos Orejuela (1995), do general-ditador panamenho Manuel Noriega (1992) e dos diversos traficantes mexicanos de ponta, como João Garcia Abrego e o general Gutierrez Rebolo, este com parte da história de sua vida corrupta contada no filme ?Traffic?.

Os americanos e colombianos implantaram o Plano Colômbia em 11 de julho de 2000. Para avaliar os resultados dos primeiros três anos do plano, o czar antidrogas americano John Walthers realizou recentes visitas aos centros sul-americanos de cultivo e produção de cocaína e heroína. In loco, portanto, ele pôde constatar o fracasso do Plano Colômbia.

Os fracassos derivam do fato de o plano não ter conseguido enfrentar problemas fundamentais, agravados pelo fenômeno das drogas. Esses problemas dizem respeito ao desemprego, à injustiça social, à concentração de renda e à corrupção das autoridades. Dos 43 milhões de habitantes da Colômbia, mais da metade vive com menos de US$ 2 por dia. Os conflitos e a violência afetam 25% do PIB, e os paramilitares são empregados para abafar os protestos sociais, especialmente em localidades onde o Estado nunca está presente.

A principal estratégia americana contida no Plano Colômbia centrou-se na erradicação das áreas de cultivo de coca, mediante o despejo aéreo de herbicidas, do tipo glifosato e fabricados pela multinacional Monsanto, com o nome comercial Round Up. Com isso, os homens de Bush esperavam aniquilar economicamente os insurgentes das Farc. E para continuar a segunda fase do militarizado Plano Colômbia, que esconde os seus interesses hegemônicos e econômicos, propalam ter conseguido reduzir em 37% as áreas de cultivo

A dupla Bush-Walthers, no entanto, continua a silenciar a respeito da causa da migração dos plantios de coca para o Peru e a Bolívia. Na verdade, enquanto herbicidas eram jogados pelos aviões da empresa de segurança Dyn-Corp, contratada pelo governo americano por cinco anos ao preço de US$ 170 milhões, a criminalidade organizada triplicou o cultivo no Peru e na Bolívia, ou seja, manteve-se a oferta. Pior ainda, o herbicida despejado vem provocando danos ecológicos irreversíveis.

Para fugir das fumigações, os ?cartelitos? provocam desflorestamentos. Ou seja, abrem clareiras na selva amazônica colombiana, realizando plantios em terrenos de até 3 hectares. A segunda fase do Plano Colômbia será exposta pelo presidente Álvaro Uribe, em outubro, à União Européia. Na ocasião, Uribe vai postular ajuda financeira para combater o terrorismo e reduzir os seqüestros de pessoas em seu país. As fumigações, no entanto, continuarão por conta da Dyn-Corp. (WALTER FANGANIELLO MAIEROVITCH foi secretário nacional antidrogas)”

 

ANBA / MUNDO ARÁBE

“No vácuo da grande imprensa”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 28/08/03

“Em setembro próximo, entra em operação a primeira agência de notícias do Brasil especializada no mundo árabe. Seu nome é ANBA, iniciais de Agência de Notícias Brasil-Árabe e que também quer dizer, no idioma árabe, notícia. Tanto quanto valorizar o intercâmbio comercial entre o Brasil e os 22 países árabes, o objetivo da agência é fugir do filtro das grandes agências ocidentais e trabalhar a notícia a partir das fontes primárias, com o apoio das agências de notícias e jornais árabes. Para comandá-la, a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, que a manterá, foi buscar uma dupla com grande experiência na grande imprensa, Joel Santos Guimarães, ex-chefe de Redação da sucursal de O Globo em São Paulo e ex-editor-chefe do Diário do Comércio (também de São Paulo), e sua esposa Paula Quental, que esteve por vários anos no Jornal da Tarde. A equipe será integrada também pela editora sênior Giuliana Napolitano e pelos repórteres André Bueno, Geovana Pagel e Inácio França.

Ainda no campo privado e também de relações bilateriais, uma outra iniciativa começa a despontar, a partir de Brasília. É o site Portugal Online, especializado em informação econômica e empresarial luso-brasileira. O portal, atualizado diariamente, também produz uma newsletter enviada por e-mail a empresários, executivos, jornalistas, formadores de opinião e entidades governamentais de Portugal e do Brasil. A coordenação é de Alfredo Prado, Jucélio Duarte e Walter Mota.

Na área pública, também cresce o interesse em driblar o filtro da grande imprensa. A Agência Brasil, por exemplo, mantida pela Radiobrás, mudou o foco. Sob o comando de Eugênio Bucci e Gustavo Krieger, começa a passar por profundas e significativas alterações em sua orientação editorial, tendo como pano de fundo o jornalismo de interesse público e não de governo. Uma dessas mudanças é a inversão de prioridades editoriais: menos ênfase no tempo real (que já é muito bem coberto pelas agências comerciais) e produção de mais reportagens e matérias exclusivas, com foco sobretudo nos chamados jornais regionais. Em 9/7, a empresa criou um Centro de Imprensa no site, dando, assim, o primeiro passo para organizar e sistematizar o fornecimento do conteúdo produzido pela Agência Brasil. Em 30 dias, 1.457 veículos e jornalistas credenciaram-se para receber as pautas e acessar matérias exclusivas no site. Resultado: com essa estratégia, a Agência está conseguindo chegar com muito maior vigor em quase todos os rincões do País, rincões esses que são atingidos exatamente pelos jornais de circulação regional. O trabalho vem sendo realizado por uma equipe de qualidade, quase toda ela com origem e atuação recente na grande imprensa, com direito até a repórter especial, caso da dupla Xico Sá e Ubirajara Dettmar, que estão cobrindo com independência e isenção o circuito da fome no País. Eugênio Bucci, por exemplo, presidente da Radiobrás, foi por muitos anos da Editora Abril, atuando como diretor de Redação por uma temporada da Super Interessante e depois como Secretário Editorial – o que contemplava todas as publicações. Além disso, fez crítica de televisão, escrevendo para vários veículos. Seu segundo, na Radiobrás, é Gustavo Krieger, outro que passou por alguns dos principais veículos do País, ocupando, por último, a Direção da Sucursal Brasília do Jornal do Brasil.

Ainda na área pública, temos a Agência de Notícias da Previdência, criada sob o comando de Wladimir Gramacho, premiado jornalista que foi da Folha de S.Paulo e também de outros veículos de expressão nacional. A orientação é ampliar a transparência e a constância de matérias sobre a complexa e polêmica área da previdência social. Desde o último dia 15 de agosto, por exemplo, toda a imprensa brasileira tem à disposição, no site, uma série de reportagens especiais produzidas pela equipe do próprio Ministério, levando à população esclarecimentos e informações sobre o tema. A intenção, do mesmo modo que a Radiobrás, é chegar sobretudo aos veículos regionais, que não têm condições de manter correspondentes em Brasília. Todas as 6?s.feiras o material é renovado com novos artigos, entrevistas exclusivas – com autoridades ligadas à área – e reportagens especiais sobre o tema. Outro projeto encampado pela equipe é o de valorizar a atuação das rádios comunitárias (não confundir com as piratas). Desse modo, o ministro Ricardo Berzoini já concordou em ceder um horário semanal de sua agenda para entrevistas com representantes desses veículos. À frente desse trabalho, Gramacho tem ao seu lado Isabel Sobral, na Coordenação da Assessoria de Imprensa; Marcello Antunes, a quem cabe explorar e sugerir uma agenda de pautas para toda a Comunicação; Gabriela Leal, na assessoria da Secretaria da Previdência Social; e Janaína Leite (recém-chegada da Dinheiro). Outra novidade é o retorno de Luiza Damé, após rápida passagem pela filial da Máquina da Notícia, convidada a assumir a assessoria da Secretaria de Previdência Complementar (Fundos de Pensão), assunto que deve figurar na pauta dos grandes jornais ainda por muito tempo, em conseqüência da própria reforma da Previdência.

De um certo modo, iniciativas como essas representam uma forma de ocupar o vácuo deixado pela atuação da grande imprensa na cobertura de temas alternativos e que hoje são relegados a planos secundários.

O interessante é ver que são iniciativas sérias, idealizadas e operacionalizadas por pessoas e equipes de qualidade, num trabalho que não é excludente e sim complementar ao da grande imprensa.”

 

FERA DE MACABU

“Imprensa: fábrica de feras”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 27/08/03

“O jornalismo brasileiro já foi ainda mais perverso. Noutros tempos, houve repórteres que não se contentaram em enforcar a honra alheia: o corpo teve mesmo de balançar. Assim se depreende da narração de Carlos Marchi, em seu ?Fera de Macabu? (Editora Record), livro de que originou o especial que será exibido nesta quinta-feira (28/08), às 22h45, no programa ?Linha Direta-Justiça?, apresentado por Domingos Meirelles, na Rede Globo.

A vítima chamava-se Manoel da Motta Coqueiro, um fazendeiro da localidade que compõe o apelido infame em destaque no título da obra (na época, Macabu era uma vila; hoje, é o município fluminense de Conceição de Macabu). Coqueiro foi executado em Macaé, terra natal de Marchi, que cresceu intrigado com aquele sussurrar intermitente da população – do alto do cadafalso, o condenado lançara uma maldição sobre a cidade: um século sem progredir. Curiosamente, a riqueza só a alcançaria em abril de 1955, com o desembarque da primeira missão técnica para investigar a existência de petróleo no País. Sim, o enforcamento do fazendeiro, acusado de ter sido o mandante do assassinato da família de um colono, deu-se em 6 de março de 1855.

De acordo com o jornalista, esse é o maior erro judiciário da história do Brasil. Acrescento eu: talvez, entre aqueles de que tenhamos conhecimento. Descobriu-se, depois da execução, que Coqueiro era inocente. Dom Pedro II, contrito por ter-lhe negado a graça imperial, pôs-se a perdoar os condenados à morte. Decretou o ?fim informal? da pena de morte no Brasil.

Carlos Marchi considera vergonhoso o trabalho da imprensa nesse episódio: além de publicar apenas as informações que interessavam aos adversários políticos de Coqueiro, não investigou e ainda tratou de estigmatizar o fazendeiro perante a opinião pública. O jornalista diz-se visceralmente contrário à pena capital. ?Eu acho um absurdo inominável um jornalista defender a pena de morte?.

Depois da exibição do programa na Rede Globo, Marchi, hoje sócio de uma consultoria em São Paulo, será entrevistado on-line no endereço www.globo.com/chat. Antes, vamos debatendo por aqui, com os leitores do Comunique-se.

José Paulo Lanyi- Como você chegou a essa história?

Carlos Marchi- Essa história, que conheço desde menino, sempre me perturbou. Primeiro porque traz o germe da injustiça – um homem inocente foi enforcado. Segundo porque traz a marca sempre brutal da pena de morte. Terceiro porque, como confesso nas últimas linhas do livro, eu nasci na cidade onde Coqueiro foi enforcado e, como tal, nunca consegui compreender o medo coletivo, a culpa coletiva que se exprimia pelas vozes do povo sempre que se falava no caso Coqueiro ou sempre que alguma coisa ruim ou errada ocorria – a culpa era sempre da maldição. Maldição, que maldição? Já no patíbulo, ele se disse inocente pela última vez e lançou uma maldição sobre a cidade – ela não se desenvolveria durante cem anos. O mais paradoxal ou dramático é que a maldição se cumpriu religiosamente – haja ou não bruxas no mundo – e marcou por cem anos a crença popular da cidade. Para mim, o fato de um povo se envolver com o mito de uma maldição durante cem anos merecia, na melhor das hipóteses, uma explicação histórica e, na pior, a saída de uma catarse coletiva. Penso que a explicação histórica trará, com o tempo, a catarse, ou seja, a auto-absolvição de um povo que se julgou culpado por uma execução injusta em meados do século 19.

JPL- Como foi a sua pesquisa?

CM- Eu conhecia a história de ouvir falar- em Macaé, todo mundo falava nela. José do Patrocínio narrou a história para um jornal do Rio de Janeiro em 1877, escrevendo em formato de folhetim-dramalhão. À época, ele tinha 22 anos e nenhuma experiência jornalística. Durante cento e trinta anos todo mundo entendeu o caso Coqueiro pela ótica de Patrocínio. Com a história na mão, decidi trabalhar com fontes primárias. Comecei a trabalhar com a cópia do processo que ainda existe no Arquivo Nacional e, por outro lado, fiz uma busca minuciosa em cartórios, igrejas, cemitérios e arquivos locais, inclusive correspondências familiares das fazendas de Quissamã, a base da nobreza da época. No começo me assustei com as contradições da história de Patrocínio. Mais adiante percebi que ele- apesar de ter escrito apenas 22 anos depois do crime- não se preocupou em relatar a verdade, mas em escrever um libelo contra a pena de morte. Aí abandonei seu texto e mergulhei nos documentos do Arquivo Nacional, da Biblioteca Nacional, do Arquivo Histórico do Exército, do Mosteiro de São Bento, do Instituto Histórico e Geográfico e de dezenas de pequenos arquivos municipais e familiares do norte fluminense. Posso dizer que pesquisar no Brasil é como brincar de achar agulha no palheiro. No Arquivo Histórico do Exército, por exemplo, descobri que Coqueiro esteve preso na Fortaleza de Santa Cruz. Para achar o livro de registro de presos da década dos 50 do século 19, tive de buscar um livro em uma pilha desorganizada de uns dois mil livros semelhantes. No Arquivo Nacional os documentos quase nunca estão classificados, o que transforma a busca do pesquisador numa loteria cansativa. Enfim, é o Brasil sem memória.

JPL- Quais são as principais contribuições da sua obra à historiografia do País?

CM- Fiquei surpreso quando o mestre Evandro Lins e Silva, que, para minha honra, escreveu o prefácio, disse que meu livro supria uma lacuna histórica no Brasil – nós não temos bibliografia sobre a pena de morte, embora a pena de morte tenha existido no Brasil durante quase quatrocentos de nossos quinhentos anos de história. Acho que este é um mérito. Outro mérito foi contar a vida de um cidadão comum que experimentou a dor de um trágico erro judiciário. Num país que não preza seus arquivos e não cuida de seus registros históricos, contar a vida de grandes heróis é fácil. Duro é contar a vida de cidadãos comuns. Por último, acho que meu livro tem o mérito de revelar que até um homem rico podia sofrer uma condenação injusta – se era assim com os ricos, o que acontecia com os negros e pobres, com os escravos? Quer dizer, eu estava contando, na verdade, a vida dos escravos, que quase nunca têm voz e vez na História brasileira. Enfim, acho que consegui fazer um pequeno tratado sobre a injustiça. Quanto ao reconhecimento, o que posso dizer é que o livro está esgotando a segunda edição -seis mil exemplares na primeira e quatro mil na segunda- com muitas críticas positivas, muitos elogios e nenhuma contestação.

JPL- Como surgiu o interesse da Rede Globo pelo episódio?

CM- Quando lancei o livro, em 1998, eu tentei interessar o pessoal do ?Globo Repórter? para uma reportagem especial. Não rendeu nada. Há um ano e meio eu vendi os direitos do livro para uma produtora carioca que se interessou em filmar a história. O filme começa a rodar em novembro. Um belo dia, há três meses, me ligou um colega, Fábio Lau, repórter do programa ?Justiça?, pedindo uma entrevista para uma reconstituição do caso Coqueiro. Soube por ele – e confirmei depois – que várias pessoas na Rede Globo tinham lido o livro. E que essas pessoas se encantaram com a história e queriam rodar uma minissérie de quatro capítulos. Não deu por razões econômicas – uma reconstituição de época é muito cara. Por fim, prevaleceu a idéia de mostrar o caso Coqueiro num especial do programa ?Justiça?. Esse programa tem um formato curioso. Tem a parte jornalística e a parte dramatúrgica da reconstituição. Eu dei entrevista para a parte jornalística, como autor do livro. Mas nada tenho com o roteiro da parte dramatúrgica. Meu negócio é pesquisar, investigar e escrever textos jornalísticos. Não sou especialista em roteiros. Eu vi partes do especial, antes da edição final, e muitas fotos da reconstituição, porque o pessoal do programa queria estar seguro da veracidade das afirmações e da autenticidade dos cenários e figurinos. Foi complicado, por exemplo, descobrir como era o estandarte da Confraria da Misericórdia, que acompanhava as execuções e tentava, por várias formas, salvar o condenado.

Iconoclastia

JPL- Qual é a diferença entre a narração histórica de um jornalista e a de um historiador?

CM- Houve um tempo em que se entendia que a narração e a interpretação da História eram exclusivas dos historiadores. Mas os jornalistas provaram que também podem ajudar a contar a História dos países e para isto contribuíram Fernando Morais, Eduardo Bueno, Paulo Markun, Domingos Meirelles e muitos outros. Talvez os jornalistas tenham menos rigor acadêmico, mas certamente eles têm uma forma iconoclasta de pesquisa que produz resultados peculiares. E têm, também, uma forma de construir conteúdos que tornam a história mais solta, mais humanizada, mais interessante. No fundo, historiadores e jornalistas têm papéis complementares. Os primeiros pesquisam, analisam e interpretam a História obedecendo a rígidos padrões científicos. Jornalistas têm um papel, digamos, menos vinculado a cânones. Historiadores, obrigatoriamente, não computam informações não comprovadas. Jornalistas têm mais liberdade de considerá-las e especular com elas. Historiadores se preocupam com o rigor acadêmico e não com a democratização de suas obras ou com a possibilidade de que o povo possa ler e entender mais sua História. Jornalistas, ao contrário, podem e querem esse alcance popular, pois estão comprometidos com os efeitos democráticos da distribuição de informação. De um lado, os historiadores privilegiam a qualidade da informação, mas – para ser franco- escrevem muito mal. Nós não pesquisamos com tanto rigor – embora também saibamos investigar -, mas escrevemos com maestria. O resultado é que nossos livros vendem mais, impactam mais, alcançam mais o povão. Nós, portanto, cumprimos nosso papel de distribuidores de informação e os historiadores cumprem o seu, que é garantir o rigor histórico.

JPL- Você já enfrentou a resistência de algum historiador, quanto ao conteúdo do seu livro?

CM- Houve um episódio curioso logo após o lançamento. Uma crítica -aliás, muito favorável- publicada no Jornal do Brasil mencionou que Coqueiro foi o último enforcado no Brasil – o que era um equívoco. Eu mostro no livro que a inocência de Coqueiro impressionou a corte e o imperador Pedro II. Em razão disso, o imperador começou a conceder a graça imperial a todos os condenados, a partir de início da década dos 60. Primeiro, para os ditos homens livres, e mais tarde aos escravos. Quer dizer, o caso Coqueiro acabou marcando o fim informal da pena de morte no Brasil. Um historiador carioca publicou um artigo no mesmo JB dizendo que era um erro crasso meu livro afirmar que Coqueiro tinha sido o último executado no Brasil. Só que o meu livro não afirma isto em nenhuma linha. E mais: cita várias execuções posteriores à de Coqueiro. Fui obrigado a escrever um artigo puxando as orelhas dele e dizendo que ele leu a crítica, mas não leu o livro.

JPL- A julgar por esse episódio, pode-se dizer que naquela época ouvir os dois lados era uma quimera…

CM- A parte mais dolorosa do meu livro foi constatar e relatar o vergonhoso papel que a imprensa da época cumpriu no caso Coqueiro. Os jornais da época eram meros instrumentos da elite: publicavam o que os poderosos enviavam. Quase nenhum jornal tinha repórteres. Ouvir os dois lados era uma óbvia quimera, num país de regime imperial. Não erra muito quem disser que Coqueiro foi enforcado pela imprensa, que lhe atribuiu uma irreal imagem aterradora, tanto pelas informações equivocadas, como pelo apelido chocante- a Fera de Macabu. Ele não teve muita chance com a Justiça. Mas com a imprensa, diria que não teve nenhuma. Em compensação, encontrei na coleção do Diário do Rio de Janeiro uma descrição extraordinária do ato de execução, perpetrada por um extraordinário jornalista anônimo. O que me convenceu de que naquela época não havia muitos princípios, mas já havia maravilhosos jornalistas.

?Boçalidade?

JPL- Você estuda o relançamento da sua obra, depois da exibição do especial?

CM- É de crer que o especial vai ajudar a vender o livro. Mas tudo vai depender da editora. No meu caso, da Editora Record, a maior do país. O dono da editora, Sérgio Machado, adora meu livro. Mas ele deve pensar, lógico, em termos de vendas absolutas. E em termos de vendas absolutas o meu livro perde feio para Paulo Coelho. É sempre um drama: hoje, o estoque do meu livro tem apenas seiscentos exemplares. Supõe-se que o especial da Rede Globo vá catapultar as vendas instantaneamente e é de prever que vão ser vendidos muitos exemplares, talvez mais do que meramente seiscentos. Mas até ontem a editora não se decidiu a rodar mais. O máximo que ela fez foi abastecer as livrarias do Rio e de São Paulo com cinco, seis exemplares cada uma. É muito? Eu acho que, para um livro que inspira um especial da Rede Globo, é pouco. Mas é o que temos.

JPL- Como produzir uma obra dessa envergadura e ainda conciliar com o esfalfamento do dia-a-dia jornalístico?

CM- Eu tinha medo da divisão entre a necessidade de entregar-me ao projeto e as cobranças do dia-a-dia. Resolvi de uma maneira simples: juntei um bom dinheiro e dei-me um ano para pesquisar e escrever. Deu certo. Conheço colegas que conseguem chegar em casa às dez da noite e produzir bem. Eu não consigo. Preciso me focar, me concentrar. O ideal é que tivéssemos no Brasil o saudável hábito, a generosa ferramenta de financiar o trabalho de pesquisa e revelação histórica. Alguém é competente para realizar um projeto e uma empresa, uma entidade, o governo paga para pesquisar e escrever. Mas a gente sabe que isso é sonho, não existe no Brasil.

JPL- O seu livro pode influenciar uma revisão entre os jornalistas que defendem a pena de morte?

CM- Sei que existem jornalistas que defendem a pena de morte, mas eu acho um absurdo inominável um jornalista defender a pena de morte. Jornalista é um ?overcidadão?: tem as obrigações corriqueiras de cidadania e mais um monte de obrigações extraordinárias. Sua função de distribuidor de informação isenta para o restante da sociedade, além de profundamente democrática, cobra um comprometimento com uma larga escala de teses humanistas. Somos duplamente cidadãos: porque defendemos nossos direitos, e porque ajudamos os outros a defenderem seus direitos, principalmente aqueles que não sabem ao certo como fazê-lo. Pena de morte é boçalidade, é ignorância, no macro é medo potencializado da falta de soluções sociais eficazes. Você pode, pois, imaginar um médico ou um engenheiro a favor da pena de morte. Um jornalista, não. Pode parecer imodesto, mas meu livro tem mais um mérito não citado lá atrás. Coqueiro agiu como culpado, os indícios o apontavam como culpado, os poderosos e a sociedade achavam que ele era culpado. No entanto, ele não era culpado. Pior: ele sabia quem era o mandante do crime, mas por razões especialíssimas não podia incriminá-lo. Mais do que uma narrativa de um caos, meu livro, pois, é um depoimento candente contra a pena de morte. Eu não consegui -nem quis- esconder: é um livro de posicionamento, eu sou obviamente contra a pena de morte em toda e qualquer circunstância, e não tenho nenhuma razão religiosa para isto. Minha razão é a própria razão.”