Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O perfume da discórdia

Uma campanha publicitária da rede de lojas O Boticário para o Dia dos Namorados causa enorme repercussão nas redes sociais há dez dias e ganha espaço nos principais jornais do país na quarta-feira (3/6). O filme “Casais” já teve mais de 1,15 milhão de visualizações no canal Youtube e gerou mais de 40 mil citações espontâneas no Twitter, o que significa que a mensagem ganhou vida própria e passou a transcender o conteúdo publicitário original.

É bastante possível que a propaganda venha a impulsionar as vendas de cosméticos e perfumes da maior empresa varejista do setor, mas o mais interessante aqui é analisar as causas e efeitos da grande polêmica que tem produzido.

Uma das primeiras reações registradas nas redes sociais foi a tentativa de boicote de representantes de igrejas denominadas neopentecostais, mas uma onda de defensores do anúncio praticamente abafou a reação dos conservadores. A peça de propaganda, exibida em larga escala, inclusive nos horários de maior audiência da televisão, mostra casais heterossexuais e supostamente homossexuais se presenteando com produtos de O Boticário e se abraçando carinhosamente.

Segundo os jornais, os dirigentes da empresa estavam conscientes de que a iniciativa poderia provocar reações contrárias, levando-se em conta a onda de conservadorismo que tem caracterizado recentemente as relações sociais no Brasil.

Desde a campanha eleitoral de 2010, quando a mídia deu grande destaque a manifestações de líderes de seitas religiosas discutindo propostas como a da descriminalização do aborto e a oficialização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a onda conservadora tem sido amplificada e manipulada por órgãos da imprensa. Essas escolhas da mídia são utilizadas como instrumento político de pressão contra o governo federal, bem como contra personalidades e intelectuais que defendem publicamente certas bandeiras progressistas.

Inserida nesse contexto como uma cunha, a campanha de O Boticário obriga milhões de pessoas a tomarem uma posição pública e clara sobre a questão da diversidade sexual e mostra que o perfil médio do brasileiro é de mais tolerância do que se imagina quando se observa o barulho de pastores, padres e outros agentes do obscurantismo.

Arriscando o futuro

A progressão das manifestações nas redes digitais revela que os indivíduos cuja visão de mundo impele a uma condenação liminar da homossexualidade se expressam mais rapidamente: até o começo da noite de terça-feira (2/6), os que condenavam a mensagem publicitária eram a maioria nas redes digitais.

Natural: a palavra irrefletida sai mais facilmente da boca.

Mas no último registro dos jornais, feito pela Folha de S. Paulo no fechamento da edição de quarta-feira (3), os números de “curtir” e “descurtir” no Youtube mostravam uma virada no jogo, com uma maioria de 211,4 mil clicadas a favor do anúncio contra 155,7 mil, contra.

Observe-se que a iniciativa de condenar a peça publicitária foi estimulada por alguns movimentos organizados por lideranças religiosas, que vinham convocando seus seguidores a assistir ao vídeo e clicar na opção negativa. Aos poucos, porém, a própria divulgação impulsionada pelos que condenam a mensagem provocou o engajamento espontâneo da parte do público que considera legítimo o relacionamento amoroso entre pessoas do mesmo sexo.

O movimento levou a empresa anunciante a mensurar o efeito da campanha, com uma pesquisa sobre as reações dos consumidores, mas o resultado só deverá ser conhecido após o balanço das vendas do Dia dos Namorados.

O episódio traz importantes lições para observadores da cena social e, ainda mais valiosas, para os analistas dos campos comunicacional e político. A primeira delas é a constatação de que a fração conservadora da sociedade brasileira tornou-se mais ativa e barulhenta, mas não representa necessariamente a maioria. A segunda é que, embora demore mais para se manifestar, a parcela mais progressista acaba dando a última palavra.

A campanha de O Boticário levanta uma outra vertente, esta de interesse especial para as empresas de comunicação: o risco de se aliar a grupos de opinião extremamente conservadores.

Engajada numa longa cruzada contra todas as políticas progressistas, desde a inauguração dos primeiros programas sociais, a mídia tradicional vem dando espaço e holofotes para o que existe de mais retrógrado no espectro ideológico, ajudando a tirar do anonimato figuras virulentas que radicalizam o embate político.

Num primeiro momento, como se vê, tais forças reacionárias fazem muito barulho, mas no longo prazo predomina a reflexão mais ponderada.

Cada vez mais identificada com o obscurantismo, a imprensa está comprometendo seu próprio futuro.