Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

>>Uma discussão viciada
>>Semeando confusão

Uma discussão viciada


Na edição da semana passada, a revista Veja afirmou, em reportagem e editorial, que o ministro da Justiça, Tarso Genro, estava certo ao rejeitar o pedido de extradição do cidadão italiano Cesare Battisti, condenado em seu país por atividades terroristas.


Dizia a revista, justificando a medida do governo brasileiro, que Battisti  havia sofrido um julgamento irregular, tendo sido condenado com base nas afirmações de apenas um acusador, que deveria ser colocado sob suspeita por haver se beneficiado de acordo de delação.


O tal acusador, dizia a revista, estava desaparecido e não havia como comprovar a veracidade das denúncias contra Battisti.


Tanto na reportagem como no editorial, Veja opinava que o ministro da Justiça do Brasil deveria usar o mesmo critério quando estivesse em julgamento não um militante de esquerda, mas alguém com o perfil ideológico oposto.



Na edição desta semana, Veja reproduz informações colhidas do acusador de Battisti, publicadas pela revista italiana Panorama, na qual são reforçadas as alegações das autoridades italianas, segundo as quais o ex-terrorista teve amplas condições de defesa e seu julgamento foi correto.


Ponto para Veja, por sua determinação de continuar perseguindo o tema, acrescentando os dados que se tornaram disponíveis nos dias seguintes.


Mas a controvérsia não se esgota neste ponto.


Tanto no caso de Cesare Battisti como em quaisquer outros temas em que a interpretação depende em parte dos pendores ideológicos de quem opina, o que temos visto na imprensa brasileira é a contaminação da questão central pelo viés ideológico.



Esse é um fenômeno que vem afetando a capacidade de interpretação dos principais órgãos da imprensa brasileira há alguns anos.


Até mesmo a operação policial que resultou no pacote de acusações contra o banqueiro Daniel Dantas, que trata essencialmente de crimes financeiros, fraudes contra o Tesouro, e de crimes comuns, como falsidade ideológica e quebra de privacidade, virou objeto de disputa política no sentido mais rasteiro.


Altas autoridades da República, como ministros de Estado e representantes da mais alta corte de Justiça, disputam espaços na imprensa, atiçando um debate que nunca chega ao ponto central.


O leitor que ainda pretende observar o mundo com objetividade tem cada vez mais trabalho para buscar informações limpas, que não estejam contaminadas na origem.



Semeando confusão


O problema principal, quando a orientação ideológica determina as escolhas da imprensa, é que a própria imprensa perde credibilidade.


Mas as consequências podem ser ainda piores para a sociedade no longo prazo, uma vez que progressivamente se vão acumulando as desconfianças sobre as razões de cada lado, o que acaba por transformar os diálogos em perigosas altercações, nas quais a intenção do convencimento é substituída pela destruição das razões do outro.


Uma leitura cruzada do noticiário sobre os dois temas citados – o caso do italiano Cesare Battisti e as ações do Judiciário e do Ministério da Justiça contra o banqueiro Daniel Dantas – indica, por exemplo, que já há quem misture uma coisa com outra, identificando nas ações contra Dantas a mesma motivação ideológica que estaria por trás da negação da extradição de Battisti.



O avanço da irracionalidade é mais evidente na internet.


Autores e comentadores de blogues já fazem circular versões criativas relacionando o caso Battisti ao julgamento do controlador do Banco Opportunity, muito possivelmente como resultado das ações de lobistas a serviço de Daniel Dantas.


Da mesma forma, o noticiário contaminado pelo viés ideológico dá espaço para interpretações segundo as quais algumas iniciativas contra Dantas, o ex-prefeito Celso Pitta e outros personagens de escândalos recentes seriam motivadas por interesses políticos.


Como os novos meios de circulação de informações funcionam como espirais, nas quais um dado original é reforçado ou distorcido pela contribuição de muitos leitores e comentadores, em muitos casos versões delirantes ou de má fé acabam pesando tanto na formação de opiniões quanto o trabalho jornalístico bem fundamentado.



A imprensa brasileira está antecipando a disputa eleitoral de 2010, em meio aos esforços do governo, da iniciativa privada e dos setores sindicais para encontrar um caminho para fora da crise.


Ao alimentar interpretações ideologizadas para tudo que acontece, a imprensa dificulta o entendimento desses esforços e contribui para que o clima de campanha vá se tornando cada vez mais acirrado.


A sociedade não ganha com a irracionalidade.