O conflito entre a tecnologia digital e a indústria do jornalismo saiu do plano do debate teórico para a arena política nos Estados Unidos e, por tabela, vai contaminar todo o resto do mundo no segmento da comunicação. Os dois lados esgrimem argumentos ligados aos negócios e às leis, mas a questão é mais profunda e tem a ver com duas culturas ou formas de ver o mundo dos negócios.
Visto de outra forma, a divergência surgida entre as redes sociais na internet e os grandes grupos midiáticos do planeta é uma consequência das mudanças provocadas no mundo da comunicação e da informação pela disseminação no uso das novas tecnologias digitais (TICs). É um confronto entre a cultura analógica e a cultura digital, um choque inevitável porque mexe com interesses daqueles que querem ser hegemônicos e aqueles que não querem perder a hegemonia usufruída até agora.
Enquanto o debate era marcado por preocupações acadêmicas, ele se desenvolveu num ambiente civilizado, mas agora quando o choque de culturas envolve bilhões de dólares, o jogo está ficando mais bruto e fica difícil prever como ele vai se desenvolver. Uma coisa, no entanto, parece clara, a digitalização e a internet vieram para ficar, o que inevitavelmente vai condicionar o desenlace desta guerra que tem um fundo cultural mas vai ser decidida no terreno econômico e político.
O foco da discórdia entre as redes sociais, como Facebook, e os grandes impérios jornalísticos no planeta é a questão do pagamento de produtos jornalísticos como notícias, reportagens, documentários e artigos analíticos. Os jornais alegam que os produtos custam dinheiro e estão protegidos por direitos autorais consagrados em lei. A contra argumentação das redes sociais digitais também tem um lado econômico mas é fundamentalmente tecnológica e política.
Batalha de gigantes
As corporações jornalísticas pretendem usar todo o arsenal jurídico e político para exigir que as redes paguem pela veiculação de notícias produzidas na imprensa tanto impressa como audiovisual. Como em geral são corporações muita ligadas ao establishment tradicional, suas relações como governos e empresas são fortes e podem envolver até a cobrança de favores eleitorais e financeiros. É um lobby poderoso.
Por sua parte, as redes sociais alegam que sua ampla penetração social (só o Facebook já tem mais de um bilhão de usuários) permite que notícias reproduzidas de jornais e revistas tenham uma circulação social muitíssimo superior à da tiragem das publicações impressas. Logo as redes funcionam como instrumento de divulgação e promoção do material reproduzido. A empresa Google, que controla o site noticioso Google News, diz que a maior parte da audiência obtida pela versão online de jornais impressos é gerada a partir de consultas no seu site de buscas Google.
Obviamente, as redes sociais resistem a pagar pela reprodução de notícias originárias de versões impressas ou online de jornais tradicionais por uma questão financeira e também por uma questão prática. É quase impossível evitar que usuários da internet troquem entre si notícias captadas em jornais impressos. Como o controle da reprodução de notícia por notícia é inviável na prática, o que pode acabar sendo proposto pela imprensa analógica é uma espécie de imposto ou taxa para autorizar o uso do material publicado.
As redes sociais, baseadas nas ideias dos visionários do Vale do Silício (a meca de alta tecnologia), sabem que a informação deixou de ser uma commodity comercializável para se transformar no elemento fundamental na produção de conhecimento, responsável pela inovação, hoje o móvel principal da economia digital. Quando a informação podia ser materializada em impressos ou em sinais eletromagnéticos (rádio e TV) ela podia ser vendida ou trocada, mas quando ela assumiu a forma de dígitos imateriais, seu valor comercial passou a ser outro, o de gerar produtos que incorporam conhecimentos. A informação perdeu valor na razão direta da valorização dos produtos que ela permite criar.
As fake news
A batalha pelo pagamento ou não das notícias é um fenômeno conjuntural porque está sendo condicionado pelas circunstâncias do momento atual vivido por duas categorias de empresas:
a) As corporações baseadas na cultura analógica desejam prolongar o máximo possível a sobrevida da notícia como uma commodity comercial e como base do seu modelo de negócios;
b) As mega empresas digitais do Vale do Silício sabem que o futuro está do lado delas, pois a digitalização da informação é irreversível, o que significa que seu valor tende a desaparecer como item monetizável.
O problema é que a “guerra cultural” tem outro lado menos charmoso. As corporações midiáticas tradicionais estão comprometidas com uma série de valores como credibilidade, embora nem sempre os pratiquem, e alegam que as redes sociais difundem notícias falsas, as populares fake news, capazes de induzir as pessoas a tomarem decisões equivocadas.
Nas últimas semanas várias empresas multinacionais de grande porte como Coca-Cola, Ford Motors, Adidas e Unilever retiraram anúncios da rede Facebook como pressão para que ela intensifique o controle da disseminação de notícias falsas pela internet. Trata-se de uma atitude corporativa que procura evitar que o mundo dos negócios seja associado ao previsível uso das fake news na campanha eleitoral norte-americana deste ano.
É o grande ponto fraco das redes porque elas não conseguem controlar totalmente a circulação de boatos, rumores, mentiras, a promoção do discurso do ódio e a difamação. Pior ainda, redes como o Facebook ganham um bom dinheiro ao olhar para o outro lado quando grupos econômicos usam a internet para espalhar notícias falsas usando inclusive robôs eletrônicos.
O conflito de interesses entre as corporações/governos e as mega empresas do Vale do Silício, como Google, Microsoft, Facebook e Apple vai ser longo porque está no centro de uma luta por poder na transição de um mundo baseado na mecânica analógica para outro de natureza analógico digital. A duração do confronto é uma consequência da complexidade das questões nele envolvidas. Não se muda rapidamente comportamentos e valores entranhados há séculos na cultura da maior parte da humanidade.
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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.