Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Corte, costura e tricô

O profundo corte na redação da Folha de S.Paulo, que obscureceu a segunda-feira, 19, de três dezenas de jornalistas e seus familiares, está sendo associada por alguns observadores a um suposto processo de negociação da empresa com investidores estrangeiros. A busca por um sócio, que já contrapôs recentemente o presidente do grupo, Luís Frias, a seu irmão Otavio Frias Filho, diretor de redação do jornal, passa pela conveniência de ‘enxugar’ a empresa, no dizer de um consultor que já atuou como conselheiro – ‘adviser’, no jargão do setor – em processos semelhantes na indústria de mídia brasileira.

O tema foi assunto de recente indiscrição de um executivo financeiro presente a um encontro sobre investimento de risco promovido pela organização Endeavor na sede das Faculdades Ibmec, em São Paulo. Para alguns especialistas, as chances de uma empresa brasileira de mídia atrair o interesse de investidores estrangeiros variam conforme certas características de imagem do seu principal produto ou marca, mas são determinadas fortemente pela capacidade da empresa de gerar resultados positivos num prazo de três a cinco anos. Portanto, no caso da Folha, a característica agressividade do jornal precisaria ser apoiada por uma estrutura eficiente e de custos aceitáveis na empresa.

Pauta explosiva

O problema é associar esses dois aspectos à qualidade do jornal, que, evidentemente, passa a correr maiores riscos quando jornalistas mais experientes são dispensados em função de corte de custos. Se os cortes na redação e nas sucursais fossem seguidos de um trabalho de renovação de quadros, em busca de mais diversidade, poderia haver um ganho no propósito de melhorar o produto e renovar ou até mesmo ampliar o interesse dos leitores.

No entanto, o que se viu até agora é a velha prática do corte-e-costura: eliminam-se quadros conforme uma relação custo-benefício primária, movem-se os mais hábeis (em teclar comandos no programa de edição) e se reduz a capacidade de inovar, como conseqüência de uma rotina ainda mais estafante para quem foi poupado.

No caso da Folha, uma antiga cultura do improviso torna o programa de edição mais flexível e até mais eficiente do que o padrão, talvez porque os jornalistas mais jovens são também os mais ousados no trato com a tecnologia e não costumam aceitar passivamente certas restrições da rotina.

Mas não se pode prever quais serão os limites de resistência de cada profissional diante do estado latente de pressão e da asfixiante sensação de instabilidade que perdura por meses após cada corte. Em geral, como o jornalista precisa sempre fechar a trama que se inicia com a sugestão de pauta, pode-se afirmar o seguinte: esgotadas as possibilidades de compressão do tempo no período de apuração, pelo uso abusivo do telefone e da internet, e alcançados os limites do programa de edição, é na escolha final do texto – no que define o valor, o teor e a essência da informação publicada – que irá se concentrar o risco.

Assim, uma pauta explosiva – como o caso da suposta espionagem que, a partir de uma disputa entre empresas no setor de telecomunicações, pode ter atingido figuras do governo – acaba se esvaziando em ramificações que dão em figuras menores e opiniões transversas. De um fio que poderia conduzir à meada do programa de privatizações criado pelo governo anterior – de onde, aliás, já brotaram dezenas de denúncias e investigações, nenhuma delas levada a termo rigoroso – corremos o risco de acabar num tricô de comadres.

Ponto de partida

Quem de alguma forma tenha familiaridade com o trabalho das empresas de gestão de crise, como a Kroll Associates – que, aliás, acaba de ser adquirida pelo grupo Marsh & Mc Lennan, um gigante de 11 bilhões de dólares anuais –, haverá de estranhar a valorização de personagens menores, como o lusitano Tiago Verdial – autêntico espião de anedota – e o abandono das pistas que conduziriam a apuração ao processo de privatização das empresas de telecomunicações.

Após brindar seus leitores com uma história que prometia sabores intensos, levando o mérito de haver levantado a cortina do caso, a Folha poderia hoje estar inscrevendo na história da nossa imprensa um capítulo definitivo sobre deuses e heróis da modernidade brasileira, e possivelmente nos ajudando a concluir que certas histórias de caubóis não têm mocinhos.

À falta de tempo e de recursos para entrar fundo nas fissuras que deixam entrever alguns dos vícios que marcam o entrelaçamento das relações de negócios com o negócio das relações, estamos perdendo nova oportunidade para lançar alguma luz sobre a corrupção no seu lado mais obscuro – o das empresas. Quando o noticiário, que nasce vigoroso e ousado, acaba em declarações de oportunistas e dirige seu foco para a interessante, mas irrelevante, aparição de um misterioso espião que já serviu a sua majestade, a rainha da Inglaterra, não se pode simplesmente culpar os editores ou acusar os repórteres de falta de energia para a investigação.

O ponto de partida está lá em cima, no corte de custos que tira de cena jornalistas experientes.

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Jornalista