Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dinheiro não resolve a crise da mídia

Há décadas, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) alerta a sociedade sobre os prejuízos que um sistema de comunicação concentrado em sua propriedade, na produção de conteúdo, na destinação de recursos e gerido de forma autocrática causa à cultura e economia do País. No passado, governos de diferentes colorações políticas ignoraram esse alerta e continuaram a lidar com a área das comunicações de forma clientelista e cartorial. Agora, o governo federal, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ao abrir linhas de financiamento de R$ 2,5 bilhões para atender às empresas de comunicação, resolveu tratar de forma pública um aspecto dessa questão.

Em dezembro de 2003, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a Fenaj e outra dezena de entidades nacionais assinaram uma carta aberta ao governo Lula. O documento propõe condicionantes e contrapartidas para a liberação de recursos públicos:

** Transparência tanto nas informações quanto nas negociações e decisões;

** Tratamento equânime entre os segmentos privados, estatais e públicos da mídia, incluídos os veículos comunitários, universitários e alternativos;

** Impedimento de participação no programa de empresas que exercitem práticas históricas de evasão (INSS, Cofins, PIS e FGTS) e elisão fiscal;

** Garantia de que o programa de apoio não se confunda com a base necessária de recursos para a introdução da tecnologia digital na comunicação social eletrônica;

** Incentivo à produção brasileira audiovisual independente nacional e regional;

** Criação de uma infra-estrutura técnica e profissionalizante para a área das comunicações, visando a regionalização da produção artística, cultural, educativa e informativa nos meios de comunicação social e geração de emprego e renda;

** Garantia de que os financiamentos não serão usados para agravar a concentração da propriedade dos meios de comunicação;

** Garantia de acesso aos recursos por parte de novos empreendedores para estimular a concorrência.

A pressão exercida pelo Fórum colaborou para a abertura de um diálogo inédito junto à sociedade. Mas antes que fosse dimensionada a verdadeira crise da mídia, o BNDES levou o pedido das empresas para o Congresso Nacional. E para lá também remeteu a proposta oficial de financiamento.

Neste momento, é dever histórico dos jornalistas reunidos em torno da Chapa 1 – ‘Mais Fenaj’ informar sociedade que a crise da mídia continua sendo tratada apenas como demanda particular. Governo, empresas e parlamentares insistem em resolver a questão do ponto de vista estritamente financeiro. No entender de nossa Chapa, acionar o BNDES seria a última, e não a primeira, etapa do processo.

Dentro deste cenário, reivindicar recursos de igual monta para qualquer segmento da comunicação limitar o papel da sociedade brasileira ao mero julgamento de quem merece ser brindado com financiamento público. O debate nacional, na visão da Chapa 1, mais amplo e gira em torno de saídas para questões como:

Vazio jurídico-institucional

A legislação brasileira que regulamenta o setor de comunicações é da década de 60 e desde lá é desrespeitada por parte das empresas privadas e do próprio Estado. Alguns dos avanços alcançados pela Constituição de 1988, registrados em seu Capítulo V, permanecem desregulamentados até hoje. Um dos principais, que incide sobre a complementariedade dos sistemas público, estatal e privado de comunicação, poderia servir de balizador para a liberação de recursos por parte do BNDES.

Concentração dos meios e da produção audiovisual

O vácuo legal patrocinou o surgimento de redes nacionais de rádio e televisão que hoje estão presentes em cerca de 98% do território nacional. A partir do eixo Rio-São Paulo, estes grupos controlam 90% das emissoras de TV existentes no Brasil. Mais do que a propriedade da maioria dos canais, controlam também a oferta de conteúdo audiovisual ao manterem estruturas milionárias de produção de novelas, seriados, musicais, documentários e outros programas.

Modelo de financiamento

Sustentar esta engrenagem exige dinheiro. O mercado publicitário do Brasil em 2003, conforme o projeto Inter-Meios, destinou R$ 14,8 bilhões para os veículos de comunicação. Deste total, o meio TV recebeu mais de 60%. Daquele mesmo montante, a Rede Globo e suas emissoras afiliadas abocanharam uma fatia média entre 70% e 80%. Estes números revelam que o modelo está com os dias contados e tende a reforçar este ciclo permanente de concentração. Antes de inventar linhas de crédito, o governo deveria pensar em um mecanismo para evitar que periodicamente as empresas retornem aos cofres públicos para sanear suas dívidas.

Novas tecnologias e novos atores

Mais do que mero financiador de empresas privadas, o Estado deve ser o principal agente indutor de políticas públicas que visem a inclusão social, o desenvolvimento da cultura e da economia nacional e a democratização do acesso aos meios de comunicação. Partindo desse pressuposto, não se pode ignorar que a introdução da tecnologia digital na comunicação social eletrônica é um dos fenômenos que determinará transformações fundamentais em nossa sociedade. Antes de fortalecer a posição dos líderes de mercado com os recursos do BNDES, seria conveniente pensar como a TV e o rádio digital poderão contribuir para modificar este cenário de concentração estabelecido na área das comunicações. Assim, novos competidores – como fundações públicas, universidades, organizações do terceiro setor, associações de moradores – entrariam em cena com condições mínimas de competição e sobrevivência.

A busca de saídas e a popularização destas informações passam necessariamente pela construção de espaços democráticos de controle público das comunicações e pela capacitação da sociedade para debater este tema de forma mais ampla que somente os fatores financeiros. No que depender da Chapa 1 – ‘Mais Fenaj’ estaremos sempre dispostos a insistir no desafio de contribuir para a reflexão e o desenvolvimento de uma área onde, até hoje, a democracia passa ao largo.

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Jornalista e professor universitário