Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O futuro e o retrato da ruptura

Quando os chamados gurus da era digital se referiram, dez anos atrás, a uma idéia então obscura de revolução nos meios de comunicação, muitos centímetros de coluna foram produzidos na mídia impressa para tentar derrubar pelos argumentos o que os fatos vêm progressivamente confirmando: estamos vivendo em plena ruptura e deveremos participar, ainda nesta década, do surgimento e consolidação de um ambiente completamente novo na mídia.

São inequívocos os sinais captados no estudo ‘The State of the News Media 2004’ (em tradução literal, ‘O estado da mídia informativa – 2004’), elaborado pelo Projeto para a Excelência em Jornalismo (PEJ) da Universidade de Colúmbia, em Nova York: os meios tradicionais de informação estão perdendo público, receita e credibilidade nos Estados Unidos, enquanto crescem os meios baseados na tecnologia digital e algumas alternativas segmentadas na mídia impressa.

É um caminho sem volta, revelador de um comportamento completamente novo e mais cambiável do que aquilo que sempre caracterizou o típico leitor de jornais e revistas de papel. Não apenas os processos de produção de conteúdos, mas também o perfil e qualificações do jornalista e formas de relacionamento com o mercado estão sob xeque, numa extensão que provavelmente irá conduzir a uma necessária revisão dos modelos de negócio vigentes e no perfil dos jornalistas. É hora da reinvenção da imprensa.

A primeira geração de internautas se manteve fiel aos meios tradicionais por uma série de fatores, entre os quais a incipiência dos meios de transmissão – no começo do casamento da Tecnologia da Informação com a Tecnologia das Comunicações, TI foi o carro-chefe das mudanças; só nos últimos quatro anos TC passou a oferecer condições adequadas de tráfego para dados e imagens, e a real mobilidade do usuário só agora começa a se tornar acessível para um número significativo de pessoas.

Além disso, os meios tradicionais se apropriaram das novas tecnologias de um modo conservador, fiel a antigos paradigmas, que não estimulou mudanças de comportamento. Pelo contrário: continuamos chamando a novíssima mídia de jornal online. Informação disponível a qualquer tempo não pode ser empacotada sob o conceito de jornal, dada a distância que existe entre a realidade apreendida num átimo e aquela idéia antiga de jornada, de fatos agrupados na medida de tempo de um dia.

Online é outra expressão que perde rapidamente o sentido, pois não dependemos necessariamente de uma linha telefônica, mas de sinais em ondas, para nos manter na rede. Em breve poderemos variar de faixas de onda sem perder os sinais. Nem será conveniente falarmos em conexão, pois o novo ambiente tecnológico conduz ao conceito de imersão em ambiente de ondas.

Impacto de valor

O estudo do PEJ indica que os periódicos impressos (jornais e revistas) ainda são o meio de comunicação mais conceituado nas grandes cidades americanas, mas as projeções indicam uma queda global de leitores, à média de 1% ao ano, de 1990 a 2002. A circulação de publicações em inglês caiu 11% e os programas noticiosos na televisão perderam 34% de audiência no mesmo período.

Publicações segmentadas, como aquelas destinadas ao público hispânico que vive nos Estados Unidos, publicações semanais alternativas e noticiários na internet foram os meios de informação que mais cresceram nos 13 anos medidos pelo estudo. Os jornais em língua espanhola quadruplicaram suas tiragens, chegando a 1,7 milhão de exemplares diários; revistas alternativas mais do que duplicaram sua circulação – de 3 milhões de exemplares semanais em 1999 para 7,5 milhões, em 2002.

A queda na venda de diários pode ser ainda maior, já que o Audit Bureau of Circulation – o correspondente americano do nosso Instituto Verificador de Circulação – passou a contar como circulação paga os exemplares distribuídos em hotéis e aviões, mesmo que na maioria desses casos a compra tenha sido feita como parte de permuta por anúncios. No USA Today, por exemplo, 46% dos 987.670 exemplares diários que imprime chegam gratuitamente às mãos dos leitores nos pacotes de aquisição de hotéis e empresas aéreas.

A aparente força dos jornais alternativos ou de língua hispânica não revela claramente uma tendência de migração dos leitores. Refere-se mais claramente à eventual inclusão, nas faixas médias de consumo, de grupos que se encontravam à margem do mercado de informação e que também engrossam a audiência dos canais de TV hispânicos. Ou uma reação defensiva de ‘tribalização’ das populações que, num ambiente desfavorável, buscam a convivência dos iguais para se proteger de políticas públicas excludentes ou discriminatórias.

Esse fenômeno na mídia impressa segmentada, portanto, pode ser apenas resultado de uma transição nas preferências de leitura. Cruzados com dados de outras fontes, os resultados do estudo da Universidade de Colúmbia apontam uma rápida e avassaladora migração de leitores para a internet: segundo o último levantamento da Nielsen NetRatings, concluído em fevereiro passado, por exemplo, cerca de 75% da população americana – ou 204,3 milhões de pessoas – têm acesso à internet em casa, contra 66% de internautas contados em fevereiro de 2003. O relatório do PEJ informa que entre 50% e 70% dos internautas acessam sites informativos com freqüência, o que já é uma proporção maior do que o total de leitores habituais de jornais em relação à população geral.

Para se chegar a conclusões mais definidas sobre as revelações do estudo do PEJ é preciso fazer várias leituras cruzadas, a partir de questões pontuais. Por exemplo, se ponderarmos os números de circulação dos diários aos domingos com a circulação média da semana e os números dos dias úteis, percebe-se que a queda atinge o meio jornal como um todo, como fonte de informação.

No período que se sucedeu às grandes reformas gráficas, nos anos 1990, as alentadas e bem-sucedidas edições dominicais haviam se transformado em moeda valiosa para as negociações com os anunciantes, dadas as grandes tiragens alcançadas. O estudo atual revela declínio acentuado nos níveis de leitura aos domingos, para todas as faixas etárias, com exceção dos indivíduos com mais de 65 anos de idade, que se mantêm relativamente fiéis ao jornal. No curto prazo, esse aspecto vai causar um impacto ainda maior no valor da mídia jornal, na medida que restringe a gama de produtos que vêem valor no consumidor mais idoso.

Confiança declinante

O estudo completo tem mais de 500 páginas e está organizado de modo a permitir análises sob ângulos variados. Está prevista sua continuidade nos próximos anos, o que permitirá acompanhar com elementos mais concretos a futura configuração da imprensa neste momento de transição.

Pelo que se permite depreender desse primeiro grande mapa, não se pode garantir que teremos nos próximos dez anos um sistema a que possamos chamar de imprensa, no sentido orgânico que tem hoje. O processo de fragmentação dos meios é tão claro quanto o processo de oligopolização. Grandes conglomerados de mídia tanto podem se consolidar por décadas como ruir ou se desmembrar em poucos anos. Uma relação mais íntima entre o público e a notícia impõe o desenho de um novo perfil para o jornalista, que deverá se dedicar à formação de redes de relacionamento – transformando-se, o profissional, em mídia, em mediador entre fonte e público.

Atualmente, a relação entre o jornalista e seu leitor está em declínio. Não apenas em função de escândalos de comportamento, como o caso do repórter Jayson Blair, que abalou o New York Times, ou o episódio revelado semana passada, envolvendo Jack Kelley, do USA Today, mas principalmente porque o crescente envolvimento de empresas de mídia em outros negócios vai minando a credibilidade da imprensa.

A confiança dos americanos nas fontes de informação declinou de 80% em 1985 para 59% em 2003, enquanto a credibilidade dos noticiários da televisão caiu de 74% em 1996 para 65%, em 2002, mesmo com a exibição mais intensa de imagens e fatos ‘ao vivo’.

Chá de boldo

Na pesquisa do PEJ, fica claro que o engajamento e a identificação de valores entre o público americano e a mídia vem caindo nos últimos vinte anos. Os americanos pensam que os jornalistas são imprecisos, menos profissionais, menos engajados nas questões de interesse público, menos sensíveis à moral, menos honestos em relação a seus erros, mais parciais e preconceituosos e geralmente mais nocivos à democracia do que eram nos anos 1980. Não é pouco, para quem se julga baluarte da civilização e juiz da moral alheia.

Quanto à imprensa em si, o número de americanos que considera as empresas jornalísticas altamente profissionalizadas caiu, no período, de 72% para 49%. Diminuiu de 54% para 39% a proporção dos que consideram as empresas jornalísticas moralmente saudáveis, enquanto os que afirmam que a imprensa é imoral – assim, explicitamente – subiu de 13% para 36%.

A fatia dos que percebem que as empresas jornalísticas tentam encobrir ou dissimular seus próprios erros subiu de 13% para 67%, e a porcentagem dos que acreditam que a imprensa trata os fatos objetivamente caiu de 55% para 35%.

Está ruim? Bem, na essência do que sempre foi considerado o papel da imprensa é que vem o pior: caiu de 41% para 30% o total de americanos que acreditam que a mídia se preocupa com as pessoas que são objeto do noticiário – e subiu de 45% para 59% a proporção dos que entendem que as empresas jornalísticas são politicamente comprometidas.

Claramente, o trabalho da Universidade de Colúmbia contém aspectos específicos do mercado americano, mas no geral pode-se prever por aqui o chamado efeito Orloff, como na propaganda que celebrizou a vodca: eu sou você, amanhã.

Após ter atrelado estratégia e práticas aos grandes jornais americanos, até mesmo na identidade dos consultores importados para as reformas gráficas que fizeram moda por aqui na última década, e tendo perdido o bonde das Tecnologias de Informação e Comunicação, a imprensa brasileira pode ir preparando o chá de boldo. Quem sabe, depois da ressaca, haverá de sobrar bom senso para uma retomada com base em estratégias inovadoras e mais realistas.

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Jornalista