Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O que o BNDES ainda não disse

A semana que começa deve marcar a continuidade da movimentação que se iniciou há cerca de dez dias em alguns gabinetes do Congresso Nacional. Senhores em ternos discretos, chamando-se fraternalmente entre si de ‘irmãos’, têm partilhado água e cafezinho com outros não tão discretos nem tão fraternos, em torno de um tema absolutamente terreno: como bloquear um possível fluxo de recursos – mediado pelo BNDES – para a Globopar, holding que controla o Grupo Globo.

Um dos gabinetes mais agitados hospeda um deputado paulista que se elegeu como repórter de TV supostamente dedicado à defesa do consumidor. Mas o que se diz ali passa a longa distância do interesse do consumidor. As conversas começam na crise da mídia e deságuam no apoio a uma possível candidatura do deputado à Prefeitura de São Paulo. Um assessor jurídico alinha eventuais possibilidades de bloqueios judiciais, a serem disparados na ocasião mais adequada, com o declarado objetivo de estrangular a gigantesca rede de comunicações fundada por Roberto Marinho.

As conversas que, segundo um lobista indiscreto a tagarelar no aeroporto de Brasília, dominam tais encontros, constituem um retrato fiel do bazar em que se transformou a mídia brasileira. No entanto, tudo que dali vier a vazar para a opinião pública haverá, sem qualquer dúvida, de circular envolvido na indefectível embalagem do apelo à liberdade de imprensa e à democratização dos meios de comunicação – expressões que em certas bocas soam como verdadeiros vitupérios.

Dona da bola

A mídia brasileira é formada por 3.647 emissoras de rádio legalizadas – das quais 1.676 transmitem em amplitude modulada (AM) e 1.971 transmitem em freqüência modulada (FM) –, 1.194 revistas de circulação regular, 2.684 títulos de jornais, dos quais 523 são diários, e 290 emissoras de TV. Esse complexo, ao qual ainda se juntam as emissoras de TV paga, as retransmissoras e os domínios de internet – que já abrigam a 9a. comunidade da rede mundial – movimentou em 2003 um total de R$ 7.745.447.000,00 em verbas publicitárias.

Desse bolo de dinheiro, 46% vai para a televisão, 34% vai para jornais e 10% para revistas. O Grupo Globo, como um todo, é o destino de 30% dessa verba, ou seja, quase 2,6 bilhões de reais. Dentro do gigantesco aparato abrigado sob o guarda-chuva da holding Globopar, o dinheiro se dilui entre 115 emissoras de televisão, 3 jornais, 30 revistas, 44 emissoras de rádio, 6 emissoras de TV a cabo, uma operadora de TV a cabo, um portal de internet e uma produtora.

O Grupo Abril, segundo colocado no setor de mídia, possui 87 revistas, uma emissora de TV, uma operadora de TV a cabo e um portal de internet. Os demais grupos ficam a uma distância ainda maior da estrela-mãe da mídia nacional.

A televisão alcança 46 milhões de lares, ou seja, 86,5% das casas dos brasileiros possuem pelo menos um aparelho de TV. A Rede Globo atrai pelo menor 58% desse público – mais de 26,5 milhões de famílias com pelo menos quatro pessoas são influenciadas pela ampla gama de programas do grupo, entre os quais se destacam o mais importante noticioso da TV brasileira, novelas e programas de bisbilhotice.

Com essa audiência, a Globo torna-se destino de quase 80% da verba publicitária dirigida à TV comercial.

Interferência devida

O Grupo Globo é detentor também de 60% do total da dívida de 10 bilhões de reais que entreva a mídia brasileira. Seus executivos lideram o movimento por uma operação de socorro do governo, iniciado oficialmente pelos jornais e assumido pelas entidades que representam toda a mídia nacional.

Na contramão desse movimento, as emissoras que tentam mordiscar a fatia de mercado da Globo fazem declarações públicas pregando uma moralidade que não se reflete em suas programações e, em alguns casos, em seus modos negociais. Enquanto isso, as emissoras públicas morrem à míngua, com equipamentos obsoletos e sem recursos para disputar talentos e bons projetos.

No lado oficial do balcão, encontram-se representantes de um governo formado por políticos e profissionais supostamente empenhados na formação de uma sociedade mais satisfatória do que aquela que se nos apresenta. Pelo menos foi esse o projeto que os conduziu ao poder.

Eles e nós sabemos que uma mídia saudável e comprometida com os interesses da população é fundamental para a concretização dessa sociedade. Mas o que se ouve de trás do balcão é apenas o linguajar frio das formulações financeiras, dos procedimentos burocráticos, de garantias e despachos. Nenhuma referência a qualquer vinculação entre uma possível ajuda do governo e uma contrapartida das empresas de mídia em favor de mais qualidade na comunicação.

Já é hora de o governo falar sobre o que interessa nessa história de socorrer a mídia. Em poucas palavras: exigir das empresas de comunicação uma contrapartida de mais qualidade e respeito ao cidadão não é interferência indevida. É condição anterior à concessão do acesso ao negócio, que se constrói em grande parte com base em privilégios tarifários e outras facilidades que só se justificam se o seu resultado for medido por benefícios sociais amplos e democráticos.

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Jornalista