Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os exemplos de lá e de cá

‘Então nós chegamos a uma encruzilhada e há dois caminhos que podemos seguir. Um conduz a mais concentração e a uma erosão de diversidade em nossos mercados locais. O outro mantém as restrições de propriedade racionais para permitir as empresas de mídia locais controlarem e disseminarem notícias e informações localmente relevantes, assim como uma programação que é exclusivamente adequada para as comunidades para as quais estas empresas se dirigem.’ (Senador Fritz Hollings, democrata, Membro da Comissão de Comércio, Ciência e Transporte, do Senado americano; 2001)

O trecho acima é parte de um inflamado discurso do senador Fritz Hollings, proferido em 17 de julho de 2001. A fala de Hollings foi dirigida aos membros da Comissão de Comércio, Ciência e Transporte do Senado americano, durante as audiências públicas realizadas por aquela comissão para discutir a revisão das regras de controle de propriedade que seria levada a cabo pela FCC (Federal Communications Commission) dois anos mais tarde.

Uma pequena digressão. A lei que regula o sistema de comunicações dos Estados Unidos (incluindo as telecomunicações) é o Communications Act, de 1934. É este diploma legal, por exemplo, que institui a FCC, apresentando sua configuração e suas atribuições. Em 1996, após vários anos de audiências públicas, o Congresso americano aprovou uma nova lei geral de comunicações, o Telecommunications Act, a qual modifica, em vários pontos, a legislação original.

No momento da redação do Telecomunications Act, os congressistas perceberam que, dada a velocidade das alterações no mundo das comunicações, era necessário pensar, institucionalmente, revisões periódicas de alguns pontos da nova legislação. Neste sentido, para casos como as regras que limitam a propriedade, há previsão de que a agência reguladora tenha que fazer revisões bi-anuais do texto legal.

Contudo, apesar do mandato legal – de proceder as revisões – ser da agência, o Poder Legislativo, representante máximo dos interesses dos cidadãos, não se alija do processo. Nos dois anos que antecedem cada revisão, as comissões pertinentes do Congresso conduzem uma série de audiências públicas com o intuito de verificar se: 1) uma revisão é necessária e, em caso afirmativo, 2) qual a magnitude desta revisão.

É neste contexto que aparece a fala do senador Hollings.

Como muitos devem saber, apesar dos inflamados apelos do senador Hollings, dois anos mais tarde a FCC decidiu, em meio a muita polêmica, abrandar as restrições, definidas pelo Telecommunications Act, referentes aos controles de propriedade.

A decisão da FCC

Em 2 de junho de 2003, os Conselheiros da FCC, presididos pelo republicano Michael Powell, filho do secretário de Estado Colin Powell – e, mais importante do que isto para o caso: ex-membro do Conselho de Administração do Grupo AOL-Time Warner –, decidiram abrandar uma série de restrições que visavam diminuir a concentração de propriedade dos meios de comunicação que haviam sido estabelecidas pela lei de 1996.

É importante entender o contexto no qual a decisão foi tomada.

Em primeiro lugar, uma série de fusões e aquisições foram responsáveis, na última década, e em escala planetária, pelas maiores corporações de comunicações da história – e, em alguns casos, as maiores corporações, considerados todos os ramos de atividade. Tais fusões conduziram a um cenário no qual, estima-se, 90% de tudo que um norte-americano lê, ouve ou vê seja produzido por 6 (seis!) grandes conglomerados de mídia. Em segundo lugar, dado o poder de influência de tais conglomerados, setores do Judiciário daquele país começaram a expedir sentenças favoráveis à revogação das proibições de 1996, mesmo antes da decisão da FCC. Em terceiro, o governo republicano de George W. Bush (o mesmo que nomeou Powell para a presidência da FCC) estava às voltas com uma guerra acerca da qual era necessário construir um consenso – para o que necessitaria, e muito, da colaboração dos órgãos de mídia. Colaboração esta que, ao menos em um primeiro momento, obteve.

A despeito dos veementes protestos de grupos de interesse, de parte da mídia impressa e de importantes fatias do Congresso, o cenário era aparentemente favorável para que uma decisão pelo abrandamento das restrições ao controle de propriedade fosse tomada. Favorável, talvez, pelo desconhecimento por parte da maioria dos cidadãos acerca do que realmente estava em jogo na decisão que seria tomada pela agência. Desconhecimento este em muito produzido pelo completo desinteresse dos meios de comunicação em noticiar o que estava na pauta da FCC naquele dia 2 de junho de 2003. Pesquisa realizada nos dias seguintes à decisão revelou que 72% dos norte-americanos sequer haviam ouvido falar no tema.

As principais alterações feitas pela FCC foram as seguintes:

** aumentou de 35% para 45% o percentual de residências com televisão a que podem chegar os sinais de uma estação;

** acabou com a limitação de propriedade cruzada (televisão/jornais) nas cidades médias e grandes;

** diminuiu as restrições para que um mesmo grupo domine mais de um canal de televisão na mesma localidade.

Os potenciais impactos de tal decisão eram grandes. Em 1996, quando da aprovação do Telecommunications Act, que havia aumentado de 25% para 35% o share de residências com televisão que poderia ser atingido por uma mesma estação, houve 185 aquisições de estações de televisão. Naquele mesmo ano!

Os primeiros reveses

Apesar da maioria dos cidadãos não ter tido conhecimento do que foi decidido naquele 2 de junho, os interesses fortemente organizados de grupos de consumidores não deixaram que a decisão se tornasse fato consumado. Não sem protestar.

Devido aos contornos democráticos do processo decisório da agência (o que não se pode negar) e à organização dos grupos de interesse, tanto de empresários como de cidadãos, a discussão do tema extrapolou os limites da burocracia da FCC. Durante os 20 meses de discussão que antecederam a decisão final, a agência recebeu 520.000 comentários acerca da revisão que teria lugar no dia 2/6/2003.

Imediatamente após a decisão, os grupos de interesse contrários conseguiram que a Justiça barrasse parte daquilo que havia sido decidido. O Congresso americano também se manifestou. Já em 20 de junho de 2003, o Comitê de Comércio do Senado revogou as decisões mais importantes tomadas pelo órgão. Entretanto, era preciso que uma lei de revogação fosse aprovada por todo o Congresso.

Com tantos protestos, não foi possível mais deixar o assunto longe da opinião pública. Mais e mais aumentaram os protestos contra o que havia sido acordado pelo Conselho da FCC.

Não é para menos. A concentração dos meios de comunicação nos Estados Unidos efetivamente se constitui em problema grave. Logo, o abrandamento de restrições só tenderia a cristalizar um status quo preocupante: 80% dos jornais, no ano 2000, estavam nas mãos de cadeias de mídia (eram 1,4% em 1900); 3 cadeias de rádio controlam 70% do mercado e 4 redes de televisão controlam 75% do mercado.

O empresário Ted Turner, a quem não podemos atribuir um título de paladino pela não concentração da mídia, chegou a declarar, por ocasião da decisão da FCC, que:

‘A crescente concentração do controle de empresas que produzem e distribuem informação limitará o debate público, inibirá novas idéias e fechará as pequenas empresas de comunicação’

A recente possibilidade de aquisição do Grupo Disney pelo maior grupo de televisão a cabo americano apenas acirrou o debate, o qual nunca deixou de ser quente.

Ponto para a democracia

Este artigo tem, caro leitor ou cara leitora, a pretensão de apontar-lhe, rapidamente, algumas diferenças entre a discussão da ‘questão das comunicações’ nos Estados Unidos e no Brasil, lá e cá. Fomos impelidos a trazer esta discussão à tona pela recente decisão do Senado americano que revogou, por meio da aprovação de uma lei, as decisões tomadas pela FCC exatamente um ano atrás [veja, abaixo, remissão para o artigo ‘Senado dos EUA contraria grupos de mídia’, de Stephen Labaton, do New York Times, reproduzido na seção Entre Aspas desta edição].

As decisões ainda não haviam sido postas em prática, pois estavam congeladas pelos tribunais até que o mérito fosse julgado. Entretanto, a vitória é parcial, pois é preciso aprovação pela Câmara dos Deputados, onde a batalha será mais árdua.

Lá e cá

Nas linhas acima, podemos colher diferenças importantes entre o cenário de discussão as questões regulatórias relativas ao setor das comunicações, nos Estados Unidos e no Brasil.

Em primeiro lugar, a diferença mais evidente e talvez mais importante, é que aquele país discutiu e aprovou uma forte atualização de sua lei geral para o setor de comunicações em meados dos anos 1990. Este processo de reformulação do setor ocorreu, no final da década de 1980 e início da de 1990, em diversos países e está amplamente relacionado com as reestruturações empresariais que se verificaram; mas, também, com as modificações tecnológicas – as quais, diga-se, permitiram que a onda de convergências tivessem lugar.

Assim foi lá: o código de 1934 foi reestruturado e, concordemos ou não, procurou-se, em 1996, dar conta da nova realidade. Cá, ainda estamos com um código de 1962, em muito regulado por um decreto do regime ditatorial.

Em segundo lugar, a constatação da existência de um processo de revisão previsto em lei. Não há situações consolidadas. Se o setor é dinâmico, é preciso que a legislação também seja dinâmica. Tal dinamismo não implica necessariamente que algo seja revisto a cada dois anos, mas que haja reflexão e discussão. É possível não mudar nada, é possível diminuir as restrições, é possível aumentar as restrições. O essencial, porém, é que os interesses conflitantes tenham a possibilidade de debater o assunto ao longo dos dois anos que antecedem o período de revisão. E isto efetivamente ocorre, conforme pudemos verificar com as menções ao debate travado pelo senador Hollings.

Já no Brasil… Cabe perguntar se um processo plural como este seria possível em um Congresso (e até mesmo em um ministério) onde aqueles que deveriam trazer pluralidade ao debate são interessados de primeira hora na manutenção do status quo. É importante lembrar que muitos deputados e senadores estão umbilicalmente conectados a empresas de comunicação pelo país afora.

Tal isenção dos congressistas americanos permitiu a revogação da decisão da agência.

Em terceiro, lá há uma agência reguladora a qual, apesar do deslize nesta decisão específica, traz a possibilidade de uma discussão independente de interesses políticos. Se houver erro, lá, como vimos, há um sistema de checks and balances para corrigi-lo. Cá, nenhuma coisa nem outra.

Em quarto, lá os grupos de interesses organizados são fortes e vão além dos grupos de empresários.

Por fim, mesmo que o Brasil adotasse o sistema de restrições configurado pela decisão branda da FCC, ainda sim teríamos uma mídia menos concentrada do que aquela que temos hoje. Lá há preocupação com as afiliadas, com a programação local, com a representação das minorias. E cá? O que há?

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Pesquisador associado no Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, consultor da Agência de Notícias dos Direitos da Infância – ANDI