Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Para quem falam os diários?

O gestor de um dos maiores fundos de investimentos do país só lê jornais no final da tarde, para reduzir o risco de tomar decisões equivocadas. Chefes de mesas de operações a serviço de alguns importantes fundos privados admitem que esperam dois ou três dias antes de levar em consideração o que lêem nos diários.

Essas informações, colhidas por este observador em conversas recentes com profissionais de instituições financeiras, podem nos ajudar a entender algumas características que a imprensa vem apresentando nos últimos dez anos, e que afetam suas chances de encontrar um modelo menos vulnerável a crises.

Estudos realizados no final dos anos 1990, com muito mais rigor do que as conversas deste observador, já revelavam a tendência à diminuição da credibilidade da imprensa nos extratos mais educados e de maior poder aquisitivo – o que, somado ao fenômeno do aumento da capacidade de compra de parte das famílias de baixa renda, como conseqüência do Plano Real, caracterizou o surgimento dos jornais populares com mais conteúdo de reportagens e serviços e a consolidação do modelo representado por O Dia e Extra, ambos do Rio.

Atrás dessa tendência veio a rendição da chamada grande imprensa aos paradigmas do sucesso fácil, da predileção pelo escândalo em detrimento da veracidade, do jornalismo espetaculoso.

Essa questão, que está a merecer maiores cuidados dos pesquisadores, relaciona-se diretamente à necessidade que têm as empresas jornalísticas de encontrar um modelo sustentável e ao papel que ainda se pode esperar da imprensa na sociedade brasileira daqui para a frente.

No fundo, o que está em jogo é a sobrevivência do jornalismo como o conhecemos e da sua importância como instituição essencial à democracia e distribuidora de informações relevantes para o exercício da cidadania.

Sem contexto

O desafio da sustentabilidade foi respondido com estratégias equivocadas na década passada. A opção pela oferta de brindes, combinada com o corte linear de custos em detrimento da maior qualidade jornalística, revelou-se desastrosa em poucos anos, com o encolhimento das tiragens e a perda de participação nas receitas de publicidade. Em suas análises públicas, os gestores dos jornais têm transferido a culpa para as crises econômicas, negando-se a olhar para dentro de casa.

Neste ano de 2004, quando as empresas jornalísticas, de modo geral, têm conseguido amenizar suas crises internas – ainda que à custa de sacrifícios adicionais para seus funcionários – e começam a tirar proveito da estabilidade econômica com crescimento, não há sinais de inovação no modelo de negócio e na proposta de relacionamento com o público.

Nesse sentido, convém atentar para a constatação enunciada ali em cima. Não se trata apenas de um efeito adicional da concorrência oferecida pela internet, nos sites de informações financeiras e nos boletins produzidos por bancos e corretoras. A falta de credibilidade dos jornais, entre executivos que tomam decisões de milhões de reais em investimentos, se prende à redução da capacidade da imprensa diária de oferecer ao leitor informação de qualidade – precisa e contextualizada. É disso que sentem falta os decisores.

Uma análise do comportamento dos fundos que têm como cliente a elite econômica do país indica uma indiferença olímpica desses investidores em relação àquilo que é normalmente objeto de preocupação da imprensa diária.

Com acesso a informações mais qualificadas e menos influenciada por escolhas editoriais da mídia, essa elite parece não se abalar com as chamadas turbulências do mercado, que tanta adrenalina injetam nas redações. ‘Much ado about nothing’, resume um diretor de banco, citando Shakespeare sobre aqueles que fazemmuito barulho por nada’. A mídia preferencial dos muito ricos chama-se research centers, assim mesmo em inglês – os centros de análise dos asset managers.

O desempenho desses ativos cresce quase linearmente desde 1998, tendo apresentado apenas um soluço em janeiro de 1999, na ocasião da desvalorização do real, enquanto o índice Bovespa – naturalmente mais vulnerável à influência da mídia – oscila em ziguezague no mesmo período, sempre na proporção inversa à do comportamento do dólar, como ocorreu na crise energética de maio de 2001 e nos atentados terroristas de setembro daquele mesmo ano.

Abismo social

O jogo dos poderosos é estável. A especulação, de que tanto se ocupa a mídia de tempos em tempos, é apenas marginal, garante um gestor de fundos privados de um banco multinacional com forte presença no Brasil. Da mesma forma, os rankings de investimentos publicados por jornais e revistas não carregam investidores – apenas causam aborrecimento naqueles que fizeram escolhas ruins, afirma o executivo.

A informação de qualidade para a elite vem do noticiário sobre desempenho de grandes companhias, decisões governamentais que afetam o longo prazo, indicadores sociais e, evidentemente, o cenário internacional. Mas essas informações só têm valor quando maturadas em cenários históricos.

Na imprensa, são levados em consideração principalmente os veículos especializados – como Gazeta Mercantil e Valor Econômico – e algumas publicações segmentadas, pela capilaridade com que conseguem penetrar nos variados setores da economia. Mas os executivos mais qualificados aprenderam a ignorar notícias evidentemente nascidas de press-releases ou claramente ‘empurradas’ pelas assessorias de imprensa.

Um exemplo do que é qualidade para essa elite: notícias sobre investimentos da Petrobras são mais valiosas quando projetadas sobre ações estratégicas do governo no sentido de reduzir a necessidade brasileira de importação de petróleo. A vinculação desses dois vetores com a confirmação de que o setor petroquímico pode passar por uma ampla reformulação, por exemplo, pode significar ouro puro nos research centers.

Os jornais diários raramente conseguem prestar um serviço com esse padrão, seja na editoria de economia e negócios, seja na política ou até mesmo no noticiário metropolitano e de comportamento. Ao aceitar o jogo abaixo dessas exigências, ao carregar o noticiário com apuração malfeita e interpretações apressadas, condicionadas por premissas que roncam nas cabeças de seus donos, a imprensa diária não especializada torna mais vulnerável a posição da grande massa de leitores – a classe média que se impressiona com o noticiário de varejo.

Quando, sem um esforço maior pela qualificação da informação, a imprensa amplia sua influência sobre os ‘remediados’ e, por conseqüência, sobre os mais pobres, ela não apenas contribui para consolidar o abismo social ao dar a impressão de que democratiza a informação. Quando contribui para a perpetuação de privilégios, a imprensa joga, no longo prazo, contra seus próprios interesses de preservação.

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Jornalista