Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“A imprensa tem obsessão pelo governo”

O antropólogo Roberto DaMatta, professor da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, é um dos mais importantes intelectuais brasileiros da atualidade. Escreveu, entre outros livros, Carnavais, Malandros e Heróis, A Casa & a Rua, O que faz o Brasil, Brasil?, Conta de Mentiroso e Torre de Babel.

Nesta entrevista, em que lhe foi solicitada uma análise da imprensa brasileira, Roberto DaMatta afirma que há no país “verdadeira obsessão pelo governo e por tudo o que faz o governo, em contraste com o que ocorre na sociedade”. Essa visão reduz a sociedade ao governo. “E como ninguém da elite pode gostar do Brasil, não se pode ler o governo a não ser de modo negativo”: este é o ambiente mental que aceita o denuncismo frenético. “No Brasil, o pessimismo, como a obscuridade mental, é mais que uma atitude, é um modo de ser ‘bom’ e inteligente”.

DaMatta sente falta, no panorama jornalístico brasileiro, de uma revista de ensaios tipo New York Review of Books, “que trata das coisas da vida, do mundo, das sociedades e da intelectualidade com mais calma, mais distância, mais precisão”. Pede honestidade e honradez na prática do jornalismo: “Ninguém sabe tudo e pode ter consciência de tudo. Focalizamos um lado deixando de lado outros. Mas a honestidade serve de aval para a nossa inevitável alienação”.

Discorda da idéia de que o Brasil esteja emperrado: “Nunca esteve. Nosso problema sempre foi o de como tirar melhor partido de nós mesmos, o que exige mais observação, mais amor a nós mesmos e menos fórmula fixa ou feita – menos comparação rígida com os chamados ‘grandes centros de cultura do Ocidente’.

O melhor programa para o Brasil, conclui, “é não ter programa, exceto o compromisso de ouvir-se a si mesmo”.

A entrevista foi dada a Mauro Malin, por correio eletrônico.

OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA O Brasil tem a imprensa que merece?

Roberto DaMatta – Não sei se o Brasil tem a imprensa que merece. Sei que tem a estrutura jornalística que merece: alguns jornais de peso muito alto, poucos jornais locais de prestígio, um estilo jornalístico que tem pendor para a denúncia e para o comentário contundente (como se o forte fosse o certo), uma clara hierarquia e uma certa despreocupação com a discussão ética. Mas isso não é algo isolado.

Ocorre na imprensa e ocorre em outras áreas. É comum, no Brasil, uma pessoa escrever discurso para político, trabalhar em campanha eleitoral, atuar diretamente para um governo e continuar ligado a um jornal. O caso do Samuel Wainer foi nesse sentido instrutivo para uma pessoa como eu, que não é jornalista profissional ou que jamais pesquisou a história da imprensa no nosso país. No seu diário, ele mostra como a ética era uma palavra que não existia no seu vocabulário. Mas nele havia muito espaço para a lealdade, para a amizade e para a honra pessoal. É bom ler também o livro do Castellinho sobre a renúncia do Jânio.

Deste modo, penso que é preciso haver mais crítica e mais competição. É um trabalho duplo: ocorre na sociedade e no jornal, que é, diga-se de passagem, a sociedade vista de um certo ângulo.

O.I. – Eis algumas deficiências da imprensa brasileira alinhadas por Alberto Dines em nossa edição de fim de ano. Por favor, comente estes tópicos: hegemonia do marketing sobre os princípios fundamentais do jornalismo; supremacia do mercado sobre a sociedade; arrogâncias e simplismos; fragmentação, autarquização e colunização de veículos que deveriam ser orgânicos e cósmicos; fetichismo de números aleatórios substituindo-se à informação contextualizada; homogeneização da concorrência quando a democracia exige diversidade.

DaMatta – O primeiro ponto não posso comentar porque fala mais da cozinha do jornal e eu não sou versado em fabricação de jornal. Dos outros eu posso falar porque sou um leitor atento (com minha mulher, Celeste) de pelo menos cinco jornais diários. Neste caso, estou com o Dines. E digo mais: a arrogância é parte e parcela do nosso estilo colunístico que hoje faz o grande jornal.

De fato, temos jornais seccionados em colunas, onde correm soltas opiniões, fantasias, truculências e, eventualmente, brilharecos. Há uma competição clara pelo brilho em contraposição à busca da compreensão dos fatos. A ignorância se disfarça naquilo que o Millôr chama de “falsa cultura”. Há uma confusão de informação com erudição, por exemplo: o sujeito lê uma biografia de Wittgenstein e pensa que conhece filosofia.

Quanto aos números, como eles dão legitimidade num universo fundado pelo mercado e pela quantidade, o nosso mundo capitalista, eles surgem sem a preocupação da leitura de suas implicações.

O.I. – Que ingredientes faltam no modus operandi da imprensa brasileira, hoje, a seu ver? E quais são excessivos, indesejáveis?

DaMatta – É uma pergunta para jornalista. Mas vou arriscar. Vejo excessos na arrogância, na clara preferência por essa ou aquela linha política, onde deveria haver mais equilíbrio. E vejo sobretudo um defeito capital que talvez seja um reflexo do comportamento das nossa elites relativamente ao Brasil. Primeiro, uma verdadeira obsessão pelo governo e por tudo o que faz o governo em contraste com o que ocorre na sociedade; segundo, a total incapacidade de elogiar o governo.

É como se o governo fosse equacionado à sociedade brasileira, e como ninguém da elite pode gostar do Brasil (é sobretudo uma babaquice assim proceder), não se pode ler o governo a não ser de modo negativo. A atitude trai uma visão ingênua do mundo, segundo a qual o governo e o Estado tudo podem. Ora, essa perspectiva excessivamente onipotente relativamente ao Estado e ao governo leva a um equivalente desdém pela sociedade e pelo trabalho de suas forças. O resultado é esse claro maniqueísmo que se reflete nos jornais.

O.I. – O senhor sente falta de algum tipo de veículo no Brasil – jornal, revista, rádio, TV por assinatura, TV em rede aberta?

DaMatta – Sinto falta de uma revista de ensaios tipo New York Review of Books, que trata das coisas da vida, do mundo, das sociedades e da intelectualidade com mais calma, com mais distância, com mais precisão relativamente à pessoa que fala e sua posição, com mais tranqüilidade no que diz respeito ao tema e a quem fala do tema. E que fale menos de pessoas (estou cheio de colunismo social!!!) e mais de livros, músicas, quadros, filmes e idéias. Mas que fale sobretudo de livros! Sem badalações e idiotias… Disso eu sinto falta.



O.I
. – Como o senhor usa cada meio de informação brasileiro de que dispõe quando está nos Estados Unidos e quando está no Brasil? TV é entretenimento ou informação superficial? Jornal é conhecimento mais circunstanciado dos fatos?

DaMatta – Aqui nos Estados Unidos eu vejo mais televisão do que no Brasil. Aqui eu vou mais ao cinema do que no Brasil. Mas em ambos os lugares e, hoje, graças à Internet, eu leio jornal (e revista) do mesmo modo nos dois lugares. Mas há diferenças. TV aqui é diversão, no Brasil informação ou arredondamento de informação.



O.I
. – O senhor concebe um jornal principalmente como uma “cultura” (ou concepção, ou corpo de idéias) que vê e interpreta a realidade com um olhar próprio, e, em sua esfera, age, ou como um (suposto) “espelho” da realidade?

DaMatta – Vejo o jornal como um veículo pelo qual a sociedade se exprime a ela própria. Como um meio pelo qual a sociedade se pode encarnar e assim discernir a si mesma. O jornal é, como tantas outras coisas, um sistema cultural. Ou uma forma de dramatizar o mundo. Neste sentido ele não apenas reflete a sociedade: ele é a sociedade. É inclusive o que fica da sociedade… Tudo nele é básico e não básico, dos anúncios aos fatos mais quentes e bombásticos.

O jornal, como a sociedade, está dentro e fora da nossa luminosidade mental. Ele escapa da nossa consciência e está dentro dela. Por isso ele requer honestidade e honradez na sua prática. Ninguém sabe tudo e pode ter consciência de tudo. Focalizamos um lado deixando de lado outros. Mas a honestidade serve de aval para a nossa inevitável alienação.



O.I.
Existe incompatibilidade intrínseca entre a operação comercial dos veículos de comunicação – e interesses políticos que lhe são associados – e consciência ética? A observância de postulados éticos pode prescindir de uma pressão que emana do pacto social? Em outras palavras: a imprensa pode agir como “educadora”? Se pode, deve? Este seria mesmo seu papel, no pacto social? No caso brasileiro, se as respostas forem afirmativas, que direções específicas seriam hoje prioritárias, na sua opinião?

DaMatta – Tudo é uma questão de equilíbrio e, no fundo, de ética. De consciência dos nossos limites, dos nossos objetivos, da nossa capacidade de dizer não a nós mesmos. Creio que numa sociedade aberta pode haver todo tipo de jornal: o que trabalha para o anunciante e para o marqueteiro; e o que trabalha para o partido, para o político e para o ideológico. Haverá também os que trabalham para o entendimento do mundo e divulgação dos fatos, os que conseguem ser fiéis à construção da boa notícia, que é um modo de chamar atenção do leitor-cidadão para certos acontecimentos de sua cidade, região, país ou planeta…



O.I.
A imprensa toma conhecimento das condições de vida da grande maioria do povo e as aborda na medida necessária? O senhor tem mais medo da proximidade da imprensa em relação ao Estado ou da distância da imprensa em relação à massa do povo?

DaMatta – Eu já disse acima que a nossa imprensa está mais próxima do Estado e, mais ainda que do Estado, do “governo” (a sua administração aqui e agora) do que do povo e da sociedade. Há, no Brasil, um forte viés personalista e hierárquico que nos faz “gostar”, “admirar” e bajular os poderosos. E a construção do Estado brasileiro, sempre centralizando tudo, ajudou a depender de quem quer esteja no governo. Com isso, um deputado é mais notícia do que milhões de favelados e indigentes. Se os jornais tivessem um pouco mais de interesse no povo, já teriam informado sobre as suas “mortes” pela PM (a mais contundente e aparente), pela Previdência, pela aposentadoria, pelos cartórios, pelos documentos, e pelo uso e abuso da autoridade em geral.



O.I.
Na sua opinião, o tom geral da imprensa brasileira é “otimista” ou “pessimista” em relação ao que é e ao que pode vir a ser o país? Se o tom não é suficientemente equilibrado, como corrigi-lo?

DaMatta – O tom é oscilante, mas a tendência é sempre pessimista porque a elite não gosta do Brasil, não gosta de viver no Brasil e, assim, não consegue separar crítica de flagelação e de apocalipse. Nada é mais saboroso para qualquer jornal do que denunciar uma falcatrua (o que é bom para o sistema) e em seguida implicar que o Brasil é uma m…

Não conseguimos distinguir até hoje rebeldia e indignação (que apontam os erros e os errados, mas indicam como o sistema pode ser salvo) de revolução, que é uma visão de mundo na qual nada deve ser salvo, pois toda a estrutura é vista como podre. Nossa longa socialização como meninos revolucionários e iracundos, como gostava de cobrar o Darcy, nos tornou a todos demagogos que pela manhã querem ver a catástrofe e à tarde correm para o bar mais chique da cidade para bebericar o seu nobre uísque 12 anos, com água Perrier. No Brasil, o pessimismo, como a obscuridade mental, é mais que uma atitude, é um modo de ser “bom” e inteligente.



O.I.
Onde o senhor localiza os fatores que emperram o Brasil? São os mesmos com que trabalha a consciência imperante nos veículos de comunicação? Tomando-se como referência o processo que se convencionou chamar de globalização, quais são os trunfos do país? Os meios de comunicação contribuem para que seus públicos tenham consciência desses trunfos?

DaMatta – O Brasil não está emperrado. Nunca esteve. Um antropólogo aprende que nenhuma sociedade se emperra. Elas podem ser violentadas, dominadas, destruídas, e até mesmo autovioladas. Mas tudo isso é um caminho. Não fazer é, do ponto de vista sociológico, fazer. Primeiro porque não há sistema perfeito, depois porque a gente só pode avaliar uma cultura em termos de outra, comparativamente. Finalmente, porque, num mundo em globalização, todo mundo vai ser mais cedo ou mais tarde como nós: mulatos culturais. Nosso problema sempre foi o de como tirar melhor partido de nós mesmos, o que exige mais observação, mais amor a nós mesmos e menos fórmula fixa ou feita – menos comparação rígida com os chamados “grandes centros de cultura do Ocidente”.

Somos um país com uma elite heterogênea e com um povo múltiplo. Somos um país “cultural e ideologicamente mulato” e isso é muito mais básico do que ser “racialmente mulato”, como gostavam de dizer os antigos. Temos, em conseqüência disso, um sem-número de modelos e de soluções para como o Brasil deve ser.

Para sair dos impasses dessas visões contraditórias e desses interesses múltiplos, temos que ter muita sabedoria e muita paciência. Há que se engolir muito sapo e fazer muita política no sentido brasileiro do termo: bater muito papo, dar alguma coisa aqui e ali, ter paciência e saco de filó. É necessário um gigantesco processo de mútua socialização. Mas sem perder de vista o objetivo final: criar uma sociedade que tenha alguns mínimos denominadores comuns em termos de moradia, saúde, alimentação, educação, condições de trabalho, vestimenta, lazer e cidadania política, que, no fundo, significa: obediência a leis que valem para todos.

No fundo, precisamos de um governo que seja menos Estado e mais veículo para todas as essas vozes e modelos. Alguns só vão mudar se surgirem em cena claramente; outros quando tomarem alguma prefeitura ou até mesmo estado, enfrentando a dura experiência de “virar governo”. Mas o principal é que todas essas forças possam aparecer para que delas se tire a lição da sua coerência, sabedoria ou absurdidade. Sem um governo que esteja aberto ao diálogo dentro da regra da lei, que, sabemos bem, machuca e contém opróbrio e maledicência, não iremos a lugar algum. Estamos vivendo um momento em que podemos ouvir as nossas próprias vozes. E algumas surgem como “duras”, “absurdas” ou “impossíveis”. É essa abertura que vai levar o Brasil a um patamar mais adulto de relacionamento consigo mesmo.

Em suma, o melhor programa para o Brasil é não ter programa, exceto o de ter o compromisso de ouvir-se a si mesmo. E para isso é preciso construir um amplo e espaçoso auditório, coisa que parece ser igualmente complicada, se eu leio bem a cena nacional do momento.

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