Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Regra do valor-notícia é ignorada na cobertura dos atentados em Paris

No mundo imaginário da cobertura que a imprensa do Brasil impõe à opinião pública, é algo comum do cotidiano, jovens do ensino médio ocuparem os prédios de colégios estaduais para protestar contra o governador do estado pelo fechamento de 94 escolas, o que irá atingir 311 mil alunos que terão, por sua vez, que continuar seus estudos em outros locais, talvez longe de casa. O rompimento da barragem da mineradora Samarco em Mariana (MG) que devastou a cidade e já atinge outros nove municípios em dois estados – colocou Governador Valadares (MG) em estado de calamidade pública e deve assassinar a quinta maior bacia hidrográfica do país – não resulta em editoriais e colunas inflamadas contra o que a empresa privada trata como apenas um simples acidente. O site da Samarco enuncia: “Acompanhe as informações e comunicados oficiais sobre o acidente envolvendo as barragens de Fundão e de Santarém.”

A mídia parece ter aceitado essa tese e seguir trabalhando como uma assessoria de imprensa da mineradora: noticia os fatos decorrentes do rompimento da barragem e os auxílios da mineradora às famílias e cidades afetadas. Não há uma reflexão sobre as consequências dos descuidos do setor privado motivado pelo lucro para toda uma coletividade. Não é uma questão aqui de falta de discussão sobre o mercado: poderia se discutir o custo social (um termo usado entre os economistas) do trabalho de uma mineradora. Trata-se de uma seletividade do que abordar e criticar. A mídia, entretanto, paralisa sua cobertura rotineira para noticiar os fatos decorrentes do atentado do Estado Islâmico à França na última sexta-feira (13/11). Os ataques mataram 129 pessoas e feriram 352.

Em uma rápida verificação em portais de notícias no momento em que este artigo era escrito, no domingo (15/11), percebe-se o espaço dado ao fato. No portal G1, de 27 notícias na página principal às 10h51, exatamente metade era relacionada aos atentados. Apenas uma tinha relação com a lama tóxica que continua a avançar pelo Rio Doce. O destaque também era dado aos atentados nas páginas iniciais dos sites R7, UOL, Folha de S.Paulo e Estadao.com.br, mas com espaço menor, já que as homes destes portais possuem espaços mais ou menos delimitados para as várias editorias de notícias.

Valores-notícia

A página inicial do site de notícias das Organizações Globo não é presa a essa demarcação. A formulação teórica do gatekeeping é um método interessante de analisar o comportamento de costume da imprensa, perceber o que foge ao comum e, assim, tentar estabelecer os porquês. Conforme Jorge Pedro Sousa (http://goo.gl/kEapYv), valores-notícias explicam por que determinados fatos ganham mais espaço da mídia.

Vejamos alguns deles: Momento e Frequência (fato tem mais chance de ser noticiado quanto mais foi recente ou frequente), Intensidade e Magnitude (acontecimento tem mais chance se transformar em notícia o quanto mais foi profundo ou envolver mais pessoas e fatos), Consonância com as Expectativas (acontecimento que se assemelha mais ou menos ao que costuma ser noticiado e se adequa ao que os jornalistas enxergam como notícia), Proeminência Social (fato tem mais chance de ser noticiado o quanto mais próximo for do público, seja geograficamente ou de maneira abstrata, como culturalmente), Proeminência das Nações Envolvidas (fato relacionado a um país com maior destaque mundial tem mais noticiabilidade do que um relacionado a uma nação avaliada como menos importante), Equilíbrio (fato equilibra o noticiário do ponto de vista temático, sem deixar um tipo de assunto ter volume maior do que outro), Inesperado (o quanto menos previsível for o acontecimento, mais noticiabilidade ele tem) e Negatividade (o que tem caráter mais negativo, tem mais chance de virar notícia, de modo que “as más notícias são as boas notícias”).

Destes oito valores notícias, apenas dois justificam uma maior cobertura dos atentados da França, em relação ao costume dos veículos midiáticos noticiarem atentados de grupos terroristas e à importância do país europeu para o mundo, uma das principais potências da União Europeia. O desastre ambiental que deve se ampliar mais após o rompimento da barragem em Mariana (MG) é algo mais raro de se acontecer, de maiores consequências, mais próximo geograficamente dos brasileiros, mais imprevisível e por conta de sua magnitude, algo de cunha mais negativo. O portal G1 ilustra bem como o valor-notícia do Equilíbrio é quebrado quando o site deixa de destacar fatos de diversos outros tipos de assuntos para dedicar metade de sua página inicial a sua editoria Mundo. O fato de um atentado na Europa ser algo mais comum de ser noticiado e menos inesperado de ocorrer, mas mesmo assim ter recebido grande destaque, ilustra o compromisso da mídia com determinados valores. Já saíamos aqui da comparação do destaque ao desastre Mariana (MG) com o dos atentados, até porque o primeiro fato não recebeu grande destaque desde quando devastou a cidade turística, a primeira vila, cidade e capital do estado.

Ocidente x Oriente

A cobertura do atentado na França vai contra a lógica costumeira da própria mídia porque ela está comprometida com os valores imperialistas nas nações que se contrapõem ao Oriente, como a França. Não se trata aqui, claro, de menosprezar o sofrimento e as mortes de civis comuns que nada têm a ver com a política externa executada pelos seus países. A França, hoje, é um dos países que realiza bombardeiros na Síria, país em guerra civil e uma das regiões onde surgiu o Estado Islâmico, alvejado pelos ataques. A declaração do presidente dos Estados Unidos ilustra bem o discurso com o qual a mídia se compromete e, por isso, dá determinado espaço de cobertura sem uma reflexão profunda da origem do que ocorre. “Trata-se de um ataque não só contra os franceses, mas contra toda a humanidade e contra os valores que compartilhamos”, diz Barack Obama, faltando apenas dizer que só o Ocidente compõe uma “humanidade”. Obama se compromete a trabalhar com a França para “levar os terroristas à justiça”. Quem se recorda da execução de Saddam Husseim, Osama bin Laden e a guerra contra o Afeganistão e Iraque, sabe o que significa “justiça” para os Estados Unidos. Os quinze países membros do Conselho de Segurança da ONU emitiram declaração conjunta em que condenavam “da maneira mais firme os ataques terroristas odiosos e bárbaros” cometidos em Paris. Este discurso amplificado pela mídia ajuda a dividir o mundo, na compreensão da opinião comum, em uma parte civilizada e moderna e outra atrasada, composta, em parte, apenas por areia, bombas e camelos. Encobre toda a imposição geopolítica que a Europa (e depois também os Estados Unidos) faz ao ocidente desde que o continente europeu começou a deixar de ser uma periferia política, econômica e cultural do Mediterrâneo e do mundo muçulmano, a partir do século 15. Países europeus neocolonialistas, como a França, partiram entre si regiões árabes com o Acordo Sykes-Picot, passando a régua no mapa e separando tribos, etnias e culturas. Muito disto resulta nos conflitos que vemos entre diferentes grupos islâmicos, assim como as invasões estadunidenses no Afeganistão e Iraque com o interesse no controle do mercado de petróleo por detrás do discurso do combate ao terror.

A questão política é escondida pela religiosa, mas mesmo esta não explica o radicalismo islâmico. Entrevista (http://goo.gl/jpo0wN) da professora de pós-graduação de Ciências da Religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Maria José Rosado Nunes demonstra a ignorância do discurso preconceituoso ao islã alimentado pela mídia, relacionando-o ao terrorismo. “Acho que a gente poderia fazer uma má comparação dizendo que o catolicismo é pedófilo, como se a gente passasse a tratar algo que acontece dentro do catolicismo como alguma coisa caracterizadora.” Outra entrevista (http://goo.gl/4fmXGk), publicada em maio em blog do Estadao.com.br, demonstra a relação do imperialismo com o terrorismo. “Como o islã pode produzir o Isis e, ao mesmo tempo, Malala Yousafzai, a mais recente vencedora do Prêmio Nobel da Paz? Ambos se baseiam no islã como fontes de inspiração”, pergunta o professor de religião Todd Green. “São as condições políticas que levam à emergência do Isis. Não haveria Isis se não fosse pela invasão e ocupação do Iraque pelos EUA, que abriu a porta para a al Qaida no Iraque, o grupo precursor do Isis. Não podemos contar a história do Isis separada da política externa dos Estados Unidos”, afirma Green.

As duas entrevistas permitem fazer a ponderação de que há espaço na mídia, sim, para o discurso contrário ao mais corrente. Mas o espaço é pequeno em parte, muito provavelmente, devido ao menor número de vozes que se contrapõem aos países que controlam hoje os rumos do Ocidente e que também influenciam os do Oriente.

A mídia, entretanto, falha em seu papel de mostrar o maior número de lados de um mesmo fato ao seguir o mainstream. O mundo da imaginação da grande mídia brasileira ainda não é distinto do imaginário promovido pela mídia internacional, até porque nossos jornais e sites são alimentados, na editorial internacional, em parte pelo material enviado por agências de notícias como a AFP (francesa), Reuters e BBC (britânicas) e AP (estadunidense). Mas isso não justifica sozinho o espaço dado nas páginas iniciais dos portais aos atentados. As redes sociais, como de costume, costumam ser um ambiente que mostra as consequências deste destaque. “Essa porcaria que é a tal religião da paz? O caos causado por muçulmanos no Ocidente está somente começando, muita coisa ainda irá acontecer… Islamismo = lixo, verme, câncer e esgoto da sociedade. O que dizer dos seguidores de um ‘santo profeta’ que foi estuprador, pedófilo, polígamo, mentiroso e assassino?”, comenta (https://goo.gl/UC7LeU) um internauta em uma notícia sobre os atentados compartilhada pela página do Facebook do port al G1.

Para não se esquecer: os protestos contra a reorganização de escolas pelo governo do tucano Geraldo Alckmin não merecem uma cobertura ao nível do desastre de Mariana (MG), nem dos atentados em Paris, mas, sem sombra de dúvidas, mereciam também maior destaque. A mídia, que se legitima como um poder moderador que fiscalizaria a manutenção da democracia, acaba por ser apenas mais um poder político que apoia o poder econômico, o qual a mineradora Samarco compõe; o discurso imperialista dos Estados Unidos e da Europa; e partidos políticos como o PSDB de Alckmin, mais alinhados ao poder econômico. Não será na grande mídia que leremos muitas críticas ao prejuízo ambiental provocado pelas grandes empresas capitalistas movidas pelo lucro, ao discurso opressor do Ocidente frente ao Oriente e a um governante de um partido alinhado à direita econômica. A conotação positiva de quarto poder dada à imprensa é um mito.

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Arthur Gandini é jornalista e estudante de Economia