Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Rodízio e manipulação

Às vésperas do segundo rodízio de automóveis de São Paulo, convém lembrar que a cobertura jornalística sobre a operação, no ano passado, foi inepta e facciosa, como este OBSERVATÓRIO aponta desde aquela época (ver as edições de 20/8/96, 5/9/96 e 20/4/97).

A imprensa foi contra, antes e durante. Não estava sozinha: também foram contra, entre outros, a Fiesp, a OAB, o Sindicato dos Médicos, os donos de transportadoras. À medida que os dias passavam e a cidade funcionava de modo menos desumano, foi preciso maneirar: a população apoiou a medida, e resultados positivos, sobretudo para o trânsito, tornaram-se inocultáveis. Nove meses depois, O Estado de S.Paulo daria em manchete de edição dominical (11/5/97): “Cresce o apoio dos paulistanos ao rodízio”.

A imprensa exerceu o sagrado direito de opinar, mas não precisava ter brigado tanto com os fatos. Nem ter usado má-fé, distorção de informações e dados de pesquisa, facciosismo na edição do noticiário. Não é novidade. Mas o engajamento, nesse caso, passou das medidas habituais. A Veja São Paulo editorializou na capa: “O mico de agosto”. O Estado de S.Paulo gastou nada menos do que oito páginas do caderno Cidades, no primeiro dia seguinte, para tentar mostrar que a coisa não ia funcionar.

Manipulação: no dia em que o rodízio se iniciava, pesquisa do Estadão indicava que 51,7% dos entrevistados achavam que ele iria contribuir para diminuir ou controlar a poluição, mas na manchete o que se leu foi “Rodízio começa e 43,4% duvidam do resultado”. A hesitação inicial da opinião pública não impediu que mais de 89% dos automobilistas, temerosos da pesada multa prometida, aderissem no primeiro dia, e que esse índice fosse crescendo até o final. Se o povo não aceitasse, multa não resolvia. Quando o povo não acata uma lei, a polícia não tapa o sol com cassetetes. Margaret Tatcher ainda se lembra desse ensinamento.

O que a imprensa não conseguiu ver na época:

1) Embora a população paulistana tenha crescido 41 vezes ao longo do século, a área de São Paulo aumentou ainda mais, fazendo dela a cidade mais extensa do mundo, com mais de 80 quilômetros (eixo leste-oeste) por mais de 40 (eixo norte-sul), e, segundo o professor Mílton Santos, da USP, onde mais se trafega em transportes de superfície sobre pneus. Em 1970, o guia de ruas Mapograf cobria uma área de 850 km2 e apresentava 19.000 logradouros. Em 1995, cobria 2.127 km2 e apresentava 85.000 logradouros.

2) Em 1930, a violência respondia por 2% da mortalidade geral no Brasil. Em 1989, chegava a 15,3%. Acidentes de trânsito e homicídios são as principais “causas externas” de mortes, que, em 1989, vitimaram na cidade de São Paulo 9.400 habitantes, ou 98,22 pessoas por 100.000 habitantes. Em acidentes de trânsito, no ano anterior, 1988, morreram aproximadamente 3.720 homens e 360 mulheres. Aqui só estão computadas mortes, não ferimentos, traumas, prejuízos outros.

A imprensa demorou a perceber os benefícios colaterais advindos do rodízio, concebido para prevenir o agravamento da poluição ambiental. (A idiotia ecológica, que consiste sobretudo em desligar as questões ambientais das questões sociais, persiste. Em dezembro de 96, o deputado estadual Roberto Gouveia, do PT, ainda insistia em condicionar a operação rodízio a “parâmetros objetivos de concentração de poluentes na atmosfera”.)

As pérolas abaixo, colhidas no ano passado, ilustram essa dificuldade e servem como advertência para o noticiário que será oferecido em breve.

* Na véspera do início do rodízio, dia 4/8/96, a edição dominical do Estadão estampava em manchete de página: “Aumento da procura pode complicar transporte. Sistema de ônibus, metrô e trem não tem estrutura nem planejamento para suportar provável crescimento do número de passageiros”. Coisa nenhuma. O metrô teve aumento de 0,7% em relação à média diária e o número de passageiros dos ônibus cresceu 5%.

* Entre os conselhos dados inutilmente às multidões de motoristas que deveriam aventurar-se temerariamente em meios de transportes coletivos, a Folha conseguiu a proeza de estampar os seguintes: “Saia com muita antecedência. Lembre-se que é preciso esperar o ônibus no ponto e que sua velocidade média é bastante inferior à do carro”. Ou: “A maior parte das linhas não funciona após a 1h” (o rodízio vigorava entre 7h e 20h). Leitor, leitor: pense bem no conceito em que têm o seu cérebro…

* Na segunda semana, confirmando a vocação brasileira para o drible (futebol, carnaval, malandragem, etc.), um repórter do Estadão deu-se ao trabalho de fornecer instruções para que, fazendo caminhos alternativos, motoristas pudessem fraudar a proibição sem sofrer punição.

* Foi preciso que a jurada de programa de auditório Elke Maravilha, entrevistada (a favor), ensinasse ao Estadão que rodízio em Buenos Aires é coisa antiga (até então, o único exemplo apontado, negativamente, era o da Cidade do México). Depois, com a vinda de autoridades para um debate, os jornalistas ficaram sabendo que em Milão – sempre uma referência relevante em São Paulo – a lei determina a completa paralisação do tráfego quando a poluição passa de determinado grau, e que em Santiago do Chile o método se aplica regularmente desde 1986.

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Leitor paulistano: seja qual for sua posição diante do rodízio, seja qual for seu desconforto pessoal, abra o jornal calmamente, respire fundo e repita mentalmente três vezes, antes de começar a ler: “Prometo pensar com minha própria cabeça”.

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